quarta-feira, 14 de julho de 2021

delírios ônticos

 

Esta história se encontra em La Fontaine ( que aqui interpreto): Eros, o Amor, entrou em conflito com Atena, a Razão ( nessa história, Atena é identificada à Razão que apenas conta,mede e calcula). Eles brigaram porque , ao decidirem andar juntos, Atena só dava um passo adiante ao  ver, antes , o caminho;  já o Amor gostava de ir por onde não havia trilhas: se à frente havia  um abismo, Eros  abria suas  asas e o atravessava ,  confiando em sua força alada. Atena, sempre com os  pés no chão, não aprovava esses ímpetos e voos. Desentendidos, a Razão e o Amor brigaram...

Os deuses do Olimpo  ficaram do lado de Atena. Como punição, Eros foi privado de ver a Luz do Olimpo, tornando-se cego. A luz do Olimpo era como um sol a iluminar o mundo visível onde vivem os homens com suas opiniões e certezas.

Afrodite interveio e pediu a Zeus que fosse dado a Eros ao menos uma bengala para ele poder caminhar. Zeus assim respondeu : “É indigno ao Amor viver apoiado em bengalas e outros tipos de amparo  que não sejam suas próprias pernas e asas.” Dinheiro, posses, dogmas, poder, segurança...Se o Amor se sustentar nessas coisas, atrofiam suas asas.

Zeus não mandou, portanto,  uma bengala para o Amor, e sim um guia:  a “Loucura” . Os gregos chamavam de “Mania”, ou “Loucura Divina”, essa Loucura que guia o Amor. Embora cego, o Amor passou a ver a partir do coração, pois foi no coração do Amor que a Loucura Divina se instalou.

 Essa Loucura deu ainda mais coragem a Eros para  abrir suas asas ( “coragem”: “ação que vem do coração”). Pois  essa   “Loucura” não é uma enfermidade mental negadora da Razão; ao contrário,   ela é  uma força  transmutadora que guia o Amor  a achar  caminhos que a própria  luz da Razão não consegue encontrar sozinha. É essa mesma “Loucura” não resignada  que  guia tanto o poeta  como , no campo pedagógico-político, o libertário. Quem ama o que faz e age, precisa de coragem assim.

O poeta  Manoel de Barros assim chama essa “Loucura”: “delírio ôntico” . Em grego, “on” é “ser”. Enquanto o delírio mórbido, delírio por poder,  é negação da vida e da multiplicidade do ser, o delírio ôntico, delírio poético, é afirmação e criação de novos  sentidos para as mil possibilidades diferentes que há nos seres.

 

“Se uma pessoa fizesse apenas o que entende,

jamais avançaria um passo.”(Clarice Lispector)

 

( este livro é apenas uma sugestão de leitura)



 

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