sábado, 22 de agosto de 2020

o muro

 

Anos atrás, após o fim de uma aula encerrando o semestre, uma aluna veio até mim e me entregou um papel com algo escrito,  e disse: “Professor, tudo o que você disse no curso de Introdução à Filosofia acho que tem a ver com essa história.” A história era anônima;  seu autor ,  um agente coletivo de enunciação . Interpreto aqui a história  e acrescento  perspectivas, mas a essência dela é o que segue.

Cinco doentes graves estavam numa enfermaria. A única comunicação  da enfermaria com o mundo  exterior era uma pequena janela. Perto dessa janela cabia apenas uma maca, na qual  ficava um dos pacientes  a narrar o mundo lá de fora, mundo este que os outros pacientes não podiam ver. “Daqui vejo o mar , até sinto  sua brisa. Vocês também conseguem sentir?”, perguntava  aos outros doentes.  Apenas um  dizia  não conseguir sentir. Os que sentiam, recriavam  um mar na alma e “horizontavam-se” . No dia seguinte,  prosseguia o paciente-narrador: “Daqui  posso ver e ouvir crianças brincando numa pracinha . Vocês também conseguem ouvi-las?” . O mesmo paciente que não conseguia sentir a brisa também não conseguia ouvir as crianças . Os outros conseguiam, e algo    dentro deles brincava também e regenerava. Enfim, o paciente da janela  passava o dia a transpor em palavras a vida , de tal modo  que suas palavras viravam  remédio para quem as  ouvia: elas eram cura também.

Certo dia, porém , o paciente da janela emudeceu. Chamaram a enfermeira. Ela constatou, sem surpresa, que ele havia morrido. Só então os outros souberam que  o homem da janela era o mais doente entre eles.   Agora, cada um queria que a própria maca fosse colocada perto da janela, aquele lugar de abertura por onde entrava um ar , mas concordaram que para lá fosse o doente de  sensibilidade embotada. Só lhe fizeram uma exigência: continuar  as narrativas.  “ Farei melhor que o poeta que aqui estava !”, gabou-se. Então, perto da janela ele foi instalado.

Quando ele  olhou pela janela, porém, ficou mudo...Perguntaram : “o que houve!?” Resignado, disse: “em frente à janela não há mar, paisagem ou praça. Há apenas um  muro cinza... Um espesso   muro cinza”, repetiu. Ele só conseguia dizer a palavra mais sem vida  que existe : aquela que apenas repete o que está dado. Pois era verdade: sempre houve aquele muro.

O muro cinza simboliza  tudo aquilo que nos rouba a visão de horizontes, horizontes que nos estão fora e dentro, mesmo que ainda em esboço, virtualmente ( como o pássaro que Magritte libertou do ovo...). Há muros que a gente somente transpassa criando palavras cujo sentido    abra linhas de fuga  para a vida  com força libertária  mais potente do  que as  marretas.

 

“É preciso transver o mundo.” (Manoel de Barros).

( imagem: “ A clarividência”, de Magritte)







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