segunda-feira, 17 de agosto de 2020

a calça, pollock, manoel & maiakovski

 

Eu ainda cursava  o antigo segundo grau, vivíamos  o  fim da ditadura. Para não dar trabalho à minha mãe, certo dia resolvi lavar uma calça jeans minha que eu  sempre usava .Na época, existia apenas calça jeans escura, padrão. Minha  calça jeans era bem simples, muito usada pelos trabalhadores-operários ( por ser muito resistente) . Lavei a calça à mão ,  não tínhamos máquina de lavar. Para secá-la, usei o varal. Horas depois, devido ao vento, encontrei a calça caída com uma das pernas numa bacia . Recoloquei a calça no varal. Na manhã seguinte, vi que não era apenas água e sabão o líquido da bacia, havia também água sanitária, pois a perna que imergiu estava completamente desbotada! Ao ver o acontecido, “desabriu” em mim um olhar novo. Comandado por esse olhar subversivo,  mergulhei   a calça  inteira na bacia com água sanitária...

No dia seguinte,  ficou  pronta a obra: nunca antes vi uma calça parecida. Era  mais do que uma calça agora : era arte nascida da vida. A calça dizia o que não poderiam dizer palavras. O desbotado deixou o azul mais claro, parecendo um céu;  e as manchas brancas , nuvens . Um verso de Maiakovski diz: “Não serei homem, mas uma nuvem de calças!” Minha calça, ao contrário ,  parecia que se vestia de  nuvens...Ao pôr a calça, senti que vestia mais do que meu corpo , vestia também minha diferença , agora já não mais reprimida. Na minha inocência, porém,  imaginei que todos amariam minha re-invenção, e aprovariam me ver    vestindo criatividade. Mas quando saí à rua fui fuzilado pela ditadura do  olhar  dos fiscais do “mesmal”,   sempre vestidos  com o uniforme  de um viver homogeneizado. Esse uniforme os veste sobretudo por dentro. Tive que tomar ali a decisão mais importante da minha vida   : ou voltar para casa e vestir  calça e alma “mesmal e acostumada”,  ou afirmar minha diferença enfim vestida e conquistada. Tomei coragem, reuni forças e segui em frente.

Chegando ao colégio, um amigo do peito gostou daquele poema que inventei sob a forma de calça. Ele  quis saber como fiz  aquela subversão , para ele  fazer também a sua,   à sua maneira. E assim eu já não estava mais sozinho : diferenças agenciadas sempre podem mais do que sozinhas. Hoje sei que aquele  meu seguir em frente também me trouxe até Espinosa, Manoel, Deleuze...enfim, me trouxe  até a mim mesmo, para com eles continuar a seguir em frente.

 Como eu também pintava, as tintas coloridas que respingavam na calça  não a sujavam: acrescentavam cores, múltiplas cores. Anos depois, vi algo que me fez lembrar essa calça: um quadro de Pollock.

 

“ Se pudesse dizê-lo em palavras, não teria razão para pintar.” (Hopper)

 

( imagem: “Polos de azul” , de Pollock)



Segundo Deleuze, a tela nunca está totalmente  branca antes de o pintor começar a pintar, pois clichês ocupam virtualmente a tela, e querem que o pintor os reproduza. Quando o clichê deixa de ser apenas virtual e se torna atualidade na tela, isso pode agradar a opinião domesticada e acostumada , porém à arte é uma traição. Não é fácil vencer os clichês, pois eles também colonizam a cabeça sem que o colonizado saiba. Então, é preciso romper com toda forma de representação para chegar novamente ao caos inicial da sensação, pois todo mundo novo, já nos ensinava Hesíodo, nasce de um caos inaugural.





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