sexta-feira, 3 de julho de 2020

diferença entre indivíduo e singularidade


Inspirando-se em Espinosa, Deleuze distingue duas noções : indivíduo e singularidade. Por exemplo, quando Van Gogh assina  seus quadros, sua assinatura não é apenas a realidade das letras escritas na tela. A “assinatura-Van Gogh” também são suas cores, os traços característicos de suas pinceladas , seus tons, suas intensidades, sua perspectiva, ou seja, a assinatura-Van Gogh expressa uma multiplicidade de signos-ideias-afetos que Van Gogh criou, para assim devir um estilo, uma obra de arte eterna. Enquanto o nome “Van Gogh” designa um indivíduo que viveu em certo lugar, em certa sociedade, durante um tempo determinado que a história documenta e informa, a “assinatura-Van Gogh” expressa um acontecimento que mudou a própria arte, pela potência de vida  que esse acontecimento continha. O indivíduo Van Gogh viveu uma vida de imensos sofrimentos, vida essa que ele pôs fim com um tiro no coração. Mas o tiro atingiu o coração do indivíduo, não o coração da singularidade-Van Gogh, que ainda vive na eternidade que conquistou para si. O nome próprio  designa o indivíduo Van Gogh, mas a singularidade Van Gogh ganha corpo e vida assinada como criação,  arte. 
Quando Espinosa terminou sua obra cujo título é “Ética”, ele não quis colocar seu nome nela. Pois Espinosa viveu de modo tão autêntico , que pouco individual  ele foi, para ser plenamente singularidade. O nome “Ética” em seu livro não é apenas um título, também é a assinatura pela qual  se reconhece um  filósofo-artista-pensador : como pensar, agir e sentir éticos. A singularidade-Espinosa expressa tudo aquilo que o indivíduo Espinosa viu e pensou, mas que não cabia em sua vida individual, que não era   apenas de sua pessoa. O nome “Espinosa” designa um indivíduo que foi excomungado, que tentaram calar e matar, que sofreu as maiores injúrias e ofensas que um indivíduo já sofreu. Mas isso não fez dele um   ressentido,  amargo ou conformado. Espinosa  nunca voltou atrás no que ensinava e jamais se vendeu ou se traiu. A singularidade-Espinosa vive assinada em suas ideias, em seus afetos, conectada  ao infinito que ele viveu, pensou e sentiu. Quando o lemos, também aprendemos  como ele venceu aquelas injúrias e ignorâncias, e como  seu pensamento ainda nos é necessário na luta contra as  ignorâncias que, ao longo da história, apenas mudam de nome . A assinatura-Espinosa também expressa aquilo que em nós se afeta, pensa e resiste: quando uma obra nos afeta e nos impele a pensar-agir-criar, é porque ela também assina aquilo que em nós vai além de nosso próprio indivíduo e pessoa.

( imagem: “Estrada com cipreste e estrela”/ Van Gogh)




obs.: Em algumas filosofias existe a ideia de uma "matéria assinalada" nascida na fecundação. A fecundação  é mais do que a mera união de uma forma a uma matéria. A fecundação   é  a interpenetração da forma humana com a matéria, que passarão a existir juntas, inseparáveis, como um único ser . Antes de acontecer a fecundação, a matéria era uma realidade apenas física , pertencente ao mundo ; ao passo que a forma humana era quase nada, apenas uma forma vazia, uma casca sem fruto dentro ;quando há a interpenetração-fecundação, a forma humana "assina" tal matéria, dizendo: "essa matéria é minha". Pois "assinalada" significa "assinada". Quando a matéria é assinalada, ela se torna parte de um corpo vivo humano : nasce assim o embrião. Desse modo , antes  mesmo de o embrião se desenvolver , nascer e se tornar um bebê que receberá um nome, o próprio embrião já é uma assinatura ou expressão singular  da Vida.

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