devir-índio...


Certa vez, um antropólogo inglês entrou na oca de um índio e viu uma máquina de escrever pendurada na parede da oca  como se fosse um "desutensílio", diria o poeta  Manoel de Barros. Isso aconteceu em 1950, época em que a máquina de escrever era o símbolo técnico da cultura autointitulada “civilizada”. O antropólogo nada perguntou ao índio, e retornou   a Londres para tentar entender aquele ato que subvertia o significado e uso costumeiros daquele objeto. O antropólogo   consultou teses e tratados, porém nada encontrou  na teoria que explicasse   o gesto do índio.  Até que , de repente, ele olhou para a parede de sua biblioteca e viu um arco e flecha pendurados como enfeite...Então,  o acadêmico compreendeu que aquilo que ele fizera com o arco e flecha, o índio fez com a máquina de escrever... Graças ao ato artístico-subversivo do índio, o antropólogo compreendeu mais acerca de seu próprio “mundo civilizado” do que lhe ensinaram os livros científicos.  O índio era o outro do branco, mas o branco também era o outro do índio. Nem todos são brancos, nem todos são índios, mas todos são outros: o outro é o valor mais universal. É esta universalidade da Diferença o que o poder paranoico  mais teme, e é contra ela que ele quer impor seu modo de viver  homogêneo, “mesmal”. Nada contra o olhar científico, nada contra o olhar objetivo e racional. Mas para conseguirmos enxergar o que nos faz humanos nessa época trevosa, na qual até a barbárie é tecnológica,  só mesmo redescobrindo em nós  o olhar ancestral.

"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios” (Manoel de Barros)







quinta-feira, 29 de agosto de 2019

assobios...


Há uma passagem do livro “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche, na  qual Zaratustra cede às lamúrias de um anão que o seguia. Queixando-se de fragilidade, o anão suplicava amor e amizade  a Zaratustra, e lhe  pedia para ir em seus ombros. Uma vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor: o anão veria o caminho e guiaria Zaratustra. Então, Zaratustra instalou o anão sobre seus ombros e seguiu sua viagem. Porém  não avançou muito, pois logo o anão começou a advertir Zaratustra dos perigos do caminho, perigos estes que o anão acreditava ver logo ali adiante. Zaratustra, contudo, nada via. O anão insistia, desesperado. Afirmava que logo ali havia um abismo, e antes deste um muro, e antes destes ainda ladrões, e lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando pelo destino dos dois, já se imaginando roubados, envenenados, traídos, mordidos, dilacerados, enfim, vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar, sentar, talvez se ajoelhar, e implorar aos carrascos perdão. Zaratustra já se inclinava para prostrar-se  derrotado  quando, de repente, um grito veio de dentro dele e protestou : “Pera lá, anão! Você quer é me submeter à tua covardia, às tuas pernas curtas!”. Livrando-se das seduções  da autopiedade, Zaratustra  expulsou o anão de suas costas. Foi a voz da vida,  da vida que resiste e avança, que protestou contra a resignação que já tomava conta do querer de Zaratustra. Em alguns, essa voz se faz alta para acordar e  levantar  quando carrascos nos querem ajoelhados; noutros, nos já despertos, essa voz  se faz poesia e se transfigura assobio, como em Manoel de Barros.



quinta-feira, 22 de agosto de 2019

o burro, o leão e a criança


Nietzsche diz que o homem pode passar por três metamorfoses : a do burro, a do leão e a da criança. O burro é aquele que diz “sim” ao que está dado: ele aceita, passivamente, os valores estabelecidos. Sua forma de aceitação é “dar as costas” para carregar. É assim que o burro se sente “útil” : carregando o peso que em suas costas colocaram. Todos nascemos mais ou menos burros, pois carregamos , desde a infância , os valores de um mundo que já achamos pronto, dado. Quando o poder  diz que só se deve ensinar às crianças tabuada e gramática, e nada de artes e filosofia, o que ele quer é manter submissos seus carregadores também no futuro. O leão pode nascer do burro quando este sofre uma metamorfose, aprendendo a dizer “Não”. Ninguém sobe no dorso de um leão: ele  vê em tudo uma jaula onde querem prendê-lo. O leão  é ferozmente  crítico e cético, imaginando que ser  potente é negar . O leão pode mais do que o burro,  porém  é incapaz de criar , pois para criar é preciso crer. E o leão em nada crê.  O leão imagina que  crer é ser como o burro que ele já foi. Do leão pode surgir nova metamorfose:   a criança, aquela que redescobre a força do “Sim”. Pois o Sim da criança não é como o sim alienado  do burro. O Sim da criança sobreviveu ao não do leão, o incorporou como crítica, porém vai além dele, tornando-se afirmação de uma  potência criativa . A criança não carrega, como o burro; nem ruge e ameaça, como o leão. Ela libertou-se de todo peso, corre e dança, e há nela uma força mais poderosa que a dos dentes e garras. O burro é refém dos valores do  presente que o esmaga e aliena; já o leão nasceu quando este presente virou passado que o leão não quer mais que se repita. Mas a criança é , ao mesmo tempo, metamorfose no presente e libertação do passado em razão de uma  crença ativa  no futuro , uma “linha de fuga”, como criação de novas possibilidades para a vida, a despeito das forças obscurantistas que ameaçam retê-la. Não se trata de otimismo ou esperança:  “Só podemos destruir sendo criadores”(Nietzsche)



domingo, 18 de agosto de 2019

o canto de orfeu


Certa vez as Fúrias, deusas do ódio e da vingança, queriam dominar o mundo, e viam no poeta Orfeu um obstáculo , pois o cantar de Orfeu despertava nas pessoas as ideias de  beleza,  dignidade e amor à vida. As Fúrias  ordenaram que Orfeu se calasse, porém o poeta não obedeceu. Então, elas despedaçaram o poeta, começando por lhe cortarem a cabeça separando-a do corpo. Mas a cabeça do poeta continuou  a cantar, e cantava ainda mais forte,   com seu canto   indo mais longe , pois a voz do poeta  uniu-se à  liberdade  e fez dela o seu corpo :sua voz  agora não era só dele, era de todos  que não se calam.

“A literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los.”(Deleuze)

( parte do que escrevi interpreta uma passagem deste  livro , um dos melhores sobre mitologia. A ideia de “criança divina” não tem conotação religiosa, mas puramente poética , como diz  Manoel de Barros: "A liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”)




sábado, 17 de agosto de 2019

os porcos e seus negócios...


O filósofo Leibniz dizia que se a gente prender uma semente na mão com o tempo ela apodrece. Mas se a gente plantar a semente, cuidar e cultivar, dela nascerá uma árvore. Da árvore nascerão incontáveis frutos : dentro de cada um, uma nova semente. Se a gente plantar essas novas sementes delas nascerão outras árvores, cada uma com inumeráveis frutos, cada um grávido de novas sementes. Naquela primeira semente havia virtualmente uma floresta inteira , uma floresta-potência, assim como  em uma criança está a humanidade à espera de crescer. Pois humanidade não é uma quantidade numérica afim a   rebanhos, mas uma potencialidade inseparável de nossa singularidade, e   que se cultiva com educação, afeto  e liberdade . Para uma potencialidade florescer, da semente ou de uma criança, é preciso um exercício de cuidado e um espaço aberto livre de estreitezas. Dentro de uma ideia viva  há outras ideias, infinitas ideias, pois toda ideia viva é plural e múltipla, já nos ensinava Espinosa. Educadores plantam ideias-sementes, obscurantistas se armam com  motosserras. Reduzindo a vida a mero negócio, esses obscurantistas   só aceitam sementes que possam manipular como se fossem moedas.  Quando  as plantam, tais sementes se tornam tão fracas que, para se manterem vivas, precisam de veneno, de muito veneno,  que mate as outras vidas diferentes delas . Então,  os obscurantistas derrubam as heterogêneas e múltiplas florestas , deixando no lugar  apenas morte e deserto  .  Depois  cobrem esse deserto  com soja  homogênea parecendo um rebanho vegetal , que vira ou óleo para fazer as engrenagens do Capital girarem  ou farelo que só aos porcos engorda.

“Poeta é ser que vê semente germinar. Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol” (Manoel de Barros).






quinta-feira, 15 de agosto de 2019

anti-tirania


Há um aspecto muito pouco citado,ou talvez pouco conhecido,em relação aos primeiros filósofos-pensadores gregos (assim chamados de "pré-socráticos"): eles se opunham aos tiranos , e por estes eram perseguidos .Esses primeiros filósofos eram chamados de "sábios" não em razão de virtudes teóricas contemplativas, mas porque a palavra "sábio" nasceu para designar a antítese do tirano. Assim, o sentido original de “sofia”, como raiz da filosofia, é : “anti-tirania”.



quarta-feira, 14 de agosto de 2019

a fonte, o rio e o mar


Quando um acontecido passa e se torna passado, e entre o acontecido  e nós vai aumentando  uma distância que só o tempo pode medir ( pois não é uma distância no espaço), esse passado que passou , sua passagem e o seu ficar para trás, é algo irreversível? O que passou se vai e nunca pode ser de novo vivido a não ser como um fantasma que se evoca ? Ou será que é o passado que retém e salva o que no presente passa? Afinal, dizia Bergson, não é o passado que passa, quem passa é o presente. Não é o acontecido que se afastou, fomos nós que nos afastamos dele? Somos como peixes que saíram da nascente do rio onde nascemos e fomos ao mar? É possível, tal como fazem os peixes, desterritorializar-se  do mar, entrar de novo na foz do rio, subi-lo contra a correnteza e alcançar de novo a fonte onde nascemos? Se isso for possível, esse retorno ao passado não é nostalgia, ele é o intuir a vida que nunca se separa totalmente de si mesma. Ir para o passado não é um voltar, mas um ir para dentro, cada vez mais próximo de onde o tempo brota, para assim descobrir, intuindo, que é o próprio tempo  a água que se torna rio, avança como fluxo e se horizonta, azul, como mar.




o nascimento de Bios


Segundo o mito, antes  de tudo  existia o Caos. Para os gregos, o “caos original ” não é destruição ou trevas. Um dos sentidos de caos é  “Abertura Ampla”, que não pode  ser cercada, limitada  ou contida. Manoel de Barros diz que “não se pode passar régua no Pantanal”, pois no Pantanal os rios saltam das margens e se horizontam. O Pantanal é o caos poético de Manoel.  E é por isso que em cada verso dele podemos achar aquela Abertura da qual vem um  ar vital  que não nos deixa sufocar. No mito, foi do Caos que nasceu a primeira divindade: Gaia, a Terra. A palavra "nascer" não é muito adequada, pois todo nascer pressupõe um pai e uma mãe. O Caos não é homem ou mulher, macho ou fêmea, tampouco o Caos é filho de alguma coisa. O adequado talvez seja dizer que Gaia emergiu do Caos, tal como uma ilha que sobe do fundo de um oceano insondável. Gaia é  a Ancestral Mulher. De Gaia nasceu Uranos, o Céu. Também aqui "nascer" é um termo inadequado, pois Gaia não tinha par: ela era plenamente ímpar, como tudo o que é singular. Talvez seja mais adequado dizer que o Céu-Uranos foi um pedaço da Terra que se separou dela, pondo-se acima a gravitar. Nessa época , a Terra era toda ventre, múltiplos ventres. Cada ventre era uma caverna  que se estendia até o Caos, a imanência fértil. E foi por um desses ventres que veio ao mundo Eros, o Amor. Este ocupou o lugar vazio entre a Terra e o Céu. O Amor tem por força unir o que está separado. Pela ação do Amor,  o vazio entre o Céu e a Terra foi vencido:  o Céu deitou-se então sobre a Terra, e  as estrelas do Céu  plantaram-se  na Terra, tornando-se   sementes.   Foi assim que nasceu “Bios” ( a “Vida”) : como estrela do céu tornada semente da terra. E  é de Bios que nasce tudo o que vive. De Bios  nasceram  o Tempo ( Cronos)  , a Justiça (Zeus) , a Arte (Dioniso)   e a Sabedoria (Atenas). Semente que nunca seca, apesar dos atuais desertos, de Bios  continuam a nascer  as   crianças , as flores, os bichos, as ideias, os poemas, as resistências, as utopias ...e o  desejo de que amanhã seja um novo dia.
                                                                                                                                                             
 "Poesia é celestar as coisas do chão."(Manoel de Barros)



sábado, 10 de agosto de 2019

a vida de Sofia


1. A filosofia não nasceu na Grécia. Ela foi deixada lá ainda criança, como aqueles bebês deixados   à porta de alguém que inspira confiança. Inclusive, a tez da filosofia é mais escura e mestiça do que a branca pele grega. Há quem diga que seus pais eram Egípcios; outros afirmam que foram os Assírios que a conceberam; e há quem defenda ainda que os pais da filosofia foram os nômades povos do deserto que se guiavam pelas estrelas e que nenhum império  , por mais que tentasse, conseguiu prender e escravizar . A porta em que a filosofia foi deixada para ser cuidada pertencia à casa de um homem digno chamado Tales, que deu o nome de Sofia  à criança. Ele a criou e a ensinou a ficar de pé.Com Heráclito Sofia aprendeu a brincar; com Nietzsche, a dançar; e  a fazer-se mais viva Sofia aprendeu com Espinosa, diante dos  obscurantistas  que a querem morta.
2. Quando alguém cobra honestidade dos políticos, este alguém está a filosofar, pois  exige  uma virtude ética: a honestidade. E Ética é uma disciplina da filosofia. Se  alguém diz:  “o que esse cara fala não tem lógica! ”, também está a filosofar, pois Lógica é uma disciplina filosófica. Quando alguém afirma : “ essa música é bela!”, também filosofa, pois o “belo” ( assim como  o feio, o cômico, o sublime, etc)  é uma categoria da Estética, uma disciplina da filosofia. Se alguém diz: “Sou pragmático, odeio teorias”, também está a filosofar, pois “Pragmatismo” (assim  como “Utilitarismo”) é uma  corrente da filosofia. E mesmo quando alguém questiona : “para que estudar filosofia?”, também está  filosofando, pois  indaga sobre a Teoria do Conhecimento ( ou Epistemologia), uma disciplina da filosofia. Enfim, é impossível alguém estar vivo  e não se colocar questões  como: “O que é a vida ?O que é o tempo? O que é a liberdade? O que é o amor? O que é a política? Quem eu sou?...” Quem formula tais  perguntas, vislumbrando sentidos para elas, também está a filosofar, mesmo que não tenha lido livros de filosofia,   pois essas são questões de uma disciplina da filosofia chamada “Metafísica”. Há  ainda  as crianças , que são filósofas /questionadoras por natureza, porém um sistema adestrador lhes corta as asas. Assim, uma coisa é a filosofia ,  esta se encontra  nos livros escritos pelos filósofos;  outra é o filosofar, cujo sinônimo é pensar. E o pensar é uma exigência da vida, quando vivida de maneira não resignada. Mas para potencializar o pensar próprio e vencer a mera “doxa” (opinião),      é necessário  ler os filósofos ou assistir aulas de filosofia. Quando  desse aprendizado advém uma paixão pelo pensar, nasce  o desejo de ser filósofo ou filósofa, para que Sofia continue viva por meio de nossas palavras e ações.
Os tiranos sempre temem o pensar, e fazem o máximo que podem para impedir que as pessoas, sobretudo os jovens, façam essa  descoberta do  pensar ,  ou se já o descobriram, não o exerçam  ( não importando a faculdade que tenham escolhido cursar). Descobrir o pensar é governar a si mesmo. E apenas os tolos e obedientes , os mortos em vida, dizem  “amém”  à  “cicuta” que esses protofascistas querem impor a todos ( e não apenas aos filósofos e sociólogos).



quinta-feira, 8 de agosto de 2019

o um de Dante


No mundo do racional Aristóteles, a realidade se divide em realidade primeira e realidade segunda, esta a depender daquela. A realidade primeira é a substância enquanto forma pura unida a uma matéria, que é o  suporte da realidade segunda, por Aristóteles chamada de   acidentes. São acidentes o tempo,  a quantidade, a qualidade, a ação, o lugar, etc. Os acidentes não existem em si: eles existem na substância. Da substância dependem os acidentes, e apenas de si mesma depende a substância para existir. É a substância o sujeito da essência. O poeta Dante fará a seguinte pergunta: e o amor, ele é um acidente de uma substância  ou a própria essência de uma substância? Se ele for acidente, existirá em outra coisa que não o amor. Mas pode o amor existir em outra coisa diferente dele? Não pode...Mas se o amor for a forma de uma substância, não é contrário ao amor ser uma pura forma? O amor morre se for apenas uma pura forma sem corpo; o amor  carece de essência se for apenas um acidente.
Para o poeta, o  amor é substância cuja essência é amar substancialmente , e que transmuta os acidentes em acontecimentos nos quais existe e persevera , de tal modo que  cada tempo é sua hora,  cada quantidade é seu número , cada qualidade  o colore , cada ação o realiza , cada lugar é sua morada, na vida e poema tornados  um. 





quarta-feira, 7 de agosto de 2019

sumário: livro sobre manoel







Inventar aumenta o mundo.
Manoel de Barros


O pensar não é do Ocidente ( Razão) e nem do Oriente (Mística).

Avicenna


SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS 5

INTRODUÇÃO 7

- PRIMEIRA PARTE: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DO DESLIMITE 18

1. A Expulsão do Poeta da República da Razão: o problema da Mimese , 18             
A quem deve pertencer a coroa do reino da linguagem? A Sensação não cabe em
uma forma A linguagem como espelho do Real O problema da Diferença A
razão como cocheiro Arte egípcia X arte grega

2- Estética da Forma e Estética do Deslimite38
Experiência e Experimentação Espírito Clássico e Espírito Romântico /
Geofilosofia Caos-Germe: a luta contra os clichês “Inventar aumenta o
mundo”

- SEGUNDA PARTE : UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO 60

1- “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada” , 60
O imperceptível Um sujeito larvar Espaços lisos Rebeldias

2- Ninguém pode “passar régua” nos Territórios Existenciais , 66
Da subjetividade Da necessidade de aprender a desaprenderUma fonte que se
alimenta de escuros

TERCEIRA PARTE: O DESLIMITE DA NATUREZA 72

1- Desformar a natureza , 72
O instinto lingüístico O deslimite Ordinário, extraordinário

2- Ignorãças , 80
Individuação e poesia “Nadifúndios”A arte de ser com as coisasDevir,
Repetição e Diferença A arte de ser Outro Inventar comportamento

3-Olhos de descobrir , 101
Transver o mundo Devir-Criança O que pode um corpo?

QUARTA PARTE : O DESLIMITE DA PALAVRA 111

1-Da Pragmática , 111
A Língua Representação e expressão A quarta dimensão da linguagem: o sentido

2- O agramatical , 120
Um devir-outro da língua Empoemar as palavras O delírio é uma sensatez

3- O reino da despalavra , 127
O afeto Desarrumar a cartilha, errar a língua

CONCLUSÃO: O VOO INTERROMPIDO POR UM PONTO 134


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 144

sábado, 3 de agosto de 2019

a imitagem


“Museu” provém de “Musa”. Originalmente, “musa” significa “conhecimento”. Tanto os poetas quanto os filósofos pré-socráticos evocavam as Musas para auxiliá-los na seguinte tarefa: vencer o esquecimento daquilo que não pode ser esquecido. Assim, o conhecimento das Musas não é só intelecto ou razão,  ele é , também, recordação: “re-cordis”, “trazer de novo ao coração”, como lugar do Afeto. No mito, as Musas são filhas de Zeus , divindade ligada à justiça e à ética, com Mnemósyne, Deusa da Memória.  Zeus uniu-se a Mnemósyne após uma guerra vencida por ele contra as forças da barbárie vinculadas à  ignorância em seus variados aspectos. Dessa união entre a ética e a memória nasceram as Musas, divindades da cultura e do patrimônio. Assim,  todo patrimônio cultural  nasce do matrimônio gerador de uma ética da memória, de uma memória da ética. A cultura não existe apenas para relembrar algo que se deu no passado e passou. A cultura existe para  fazer lembrar e dar a conhecer que se é possível vencer a barbárie da violência física e simbólica. Foi este acontecimento a origem da civilização , da educação e da cultura: a luta contra a ignorância, que apenas o intelecto sozinho não consegue vencer. Pois não é uma  ignorância em relação a não saber matemática ou “cartilhas”, mas ignorância acerca do que é a justiça, a ética, a arte, a natureza, enfim, a vida. Ontem e hoje, as forças da barbárie sempre ameaçam de destruição  a cultura,  porém  nunca conseguirão destruir sua ideia geradora, enquanto mantivermos viva em nós ,coletivamente, a recordação daquilo que nos faz  humanos, e não bestas acerebradas.
Segundo o poeta Manoel de Barros, todo ato criativo é uma “imitagem". A imitagem  não é  um tornar-se mera cópia de um Modelo ou Padrão. Ao contrário, a imitagem   é a produção de uma diferença  , como nos ensina  a pequena menina em sua  fabricação brincativa de um estilo . Em toda imitagem há uma   aprendizagem não escolar de uma diferença que se afirma compondo-se, em liberdade. Em sua imitagem, é a menina, e não a escultura, a obra de maior arte. Que a pequenina Musa, em sua inocência brincativa,  nos ajude a não esquecer o que precisa ser sempre lembrado: que  vida é invenção , justiça  e arte, e que isso nos dê forças ante a  barbárie.

"Às vezes começa-se a brincar de pensar. E eis que, inesperadamente, é o brinquedo que começa a brincar com a gente"(Clarice Lispector)

"Minha poesia não tem função explicativa, só brincativa (Manoel de Barros)






quinta-feira, 1 de agosto de 2019

a vida é inocente...


Nietzsche conta mais ou menos a seguinte história: Imagine que um homem ultraconservador (como esses que idolatram o bozo ) adquirisse  o poder de  julgar a  vida colocando-a como réu a ser julgada . Ele poderia  examinar sua própria vida como se fosse um filme que ele assistisse de frente para trás, do presente para o passado, com  o poder de “apagar” os acontecimentos que ele julgasse não terem merecido existir, por não estarem de acordo com sua rígida visão  moral e religiosa. Então , ele começa por examinar seus 20 anos e nessa idade vê que ele fizera coisas que não merecia ter feito, como se embriagar muito, por exemplo. Assim, ele “apaga” de sua existência esse acontecido. Porém, ele julga que a causa do “mal” está mais atrás ainda. Ele vai até aos 15 anos e descobre aí coisas a apagar, como  o ter se trancado no banheiro com revistas pornográficas. Ele apaga essas coisas que a moral condena. Mas ele julga estar mais atrás a causa do “mal”. Ele vai então aos 10 anos. Encontra também nessa idade coisas a apagar, como o ter matado aula para ir jogar bola . Porém, o “mal” parece estar em idade mais recuada : ele vai aos 5 anos  e mesmo aí acha o que culpar. Talvez, ter assaltado a geladeira para comer escondido o doce que a mãe proibiu, ou ter brincado escondido de médico com a vizinha. Mas  o “mal” parece estar mais atrás ainda. Ele vai então aos 12 meses de idade, mesmo aí a moral acha o que condenar, talvez o fato de o menino sujar as fraldas. O  homem prossegue ainda mais no exame de sua vida, pois crê que a causa do “mal” está mais atrás ainda. Ele se vê com três meses, e se envergonha em ver-se sugando o seio da mãe, a isso ele apaga...Ele vai ao 1 mês de vida, mesmo aí ele encontra o que condenar, talvez o chorar muito ...Mas o “mal” deve estar mais recuado: o homem se vê com 1 dia de vida, e mesmo aí ele encontra o que condenar e apagar, sabe-se lá o quê, talvez a nudez do corpo. Ele vai mais atrás ainda: se vê com 10 minutos de vida, com 10 segundos, 9, 8, 7...3, 2,1...ele vai nascer...Ele pode julgar esse acontecimento como um  mal e apagá-lo? Se ele julgar esse acontecimento como um mal e quiser apagá-lo, não seria esse homem um ressentido, um doente, um louco? A vida é inocente, é preciso protegê-la de tais homens, sobretudo quando  eles querem ter o poder  de  educar as crianças ou governar o Estado. Visto sob o ângulo existencial, homens assim  odeiam  ter nascido. E sua aspiração para ter poder teológico-político não é para governar, mas  para se vingarem  daqueles que afirmam ,com o máximo de potência que podem ,um  sim incondicional à vida.