terça-feira, 21 de maio de 2019

o zero e o um


A zeroidade é o plano de imanência do pensamento.
Deleuze

Quando eu era bem criança, antes mesmo de saber ler e escrever , fiz uma rica descoberta que não cabe  no  que ensinam cartilhas e tabuadas: aprendi que se podia brincar também com o pensamento. Foi assim: após aprender a contar de zero a dez, descobri que o zero nem sempre é zero, isto é , nada. Ele é nada quando é visto sozinho, isolado, como se fosse um ego ensimesmado. Mas se engana quem acha que o zero é só isso. Pois quando o zero é colocado para fazer companhia ao 1, e este aceita a companhia do zero, o 1 vira 10. Como pode o zero fazer o mero 1 se tornar dez “uns”, isto é, dez unidades dele mesmo? E essa interrogação levava a outras: colocando dois zeros , o 1 cresce ainda mais, sem deixar de ser 1, mas ao mesmo tempo já não sendo : ele se torna 100! Colocando mais um zero, nasce o 1.000! Descobri então que o zero não é um “nada”, a não ser que se o reduza a isso. Mas se a gente  coloca o zero  na companhia de outro número dele diferente, do encontro  nascem outros números, como se dentro dele existissem potencialidades que a gente só conhece quando ele “desabre” ( “desabrir”  é  prática que nos ensina  o poeta Manoel de Barros) . O  zero precisa do 1 para se saber mais do que zero. É a diferença, o outro, que o enriquece. Quando o zero  conhece a si próprio, ele vê então o que ele é de verdade:  não um nada , mas um “ovo”, uma realidade cheia de potencialidades.  Depois de fazer  essa descoberta, ainda bem criança, sempre que alguém perguntava minha idade eu respondia: “Tenho mais de 1.000 anos!”, e os adultos riam achando que eu não sabia contar os anos. Mas na verdade eu  queria dizer , brincando, que o pensar  faz a alma aumentar em mil seu tamanho. Depois aprendi com poetas e filósofos libertários que o pensar só é autêntico quando faz a gente agir para sair do ovo . E quanto mais gente sair ( mil, milhares, milhões...) , mas difícil fica para o poder nos  reduzir  a nada.

( imagem: livros como escudos, lápis como  lanças. Foto compartilhada da página A Casa de Vidro) 




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