sábado, 16 de junho de 2018

a metafísica


                              O QUE SIGNIFICA METAFÍSICA?[1]

A metafísica é a disciplina mais nobre da filosofia. Ela é a mais digna, a mais elevada, a mais afastada dos interesses meramente utilitários ou pragmáticos. A palavra metafísica é composta de duas outras palavras que se agenciaram: meta e physis. Erradamente se traduz “meta” por “além”. Isso pode levar a imaginar que a busca pela metafísica seria como uma viagem de desterro, um ir para longe, para o alto e distante. Às vezes perguntamos a  alguém: “qual é sua meta?” . Isso pode significar: “o que você quer alcançar? O que você deseja?” .Se alguém perguntasse à semente qual é sua meta, ela responderia dizendo que sua meta é ser uma  árvore, uma árvore que dê frutos e sementes. Se alguém indagasse às letras qual é sua meta, talvez elas respondessem: minha meta é ser palavra poética no papel ou na boca de alguém que canta. É pouco provável que letras tivessem como meta tornarem-se palavras mentirosas, que negassem a si mesmas, privadas de dignidade. Em metafísica, dignidade é a virtude do que é verdadeiro, autêntico.
A meta de uma semente de abacateiro é tornar-se uma árvore: o abacateiro. Mas a árvore que a semente será já existe na semente, como a sua razão de ser ou finalidade. Essa árvore que existe na semente está além da mera existência material da semente, porém não lhe está fora, distante. Essa árvore enquanto meta da semente é sua essência. A árvore, enquanto essência, já está na semente, mas não enquanto matéria. Essa essência é a forma. A forma é a causa de a semente se tornar árvore. Uma semente de abacateiro não se torna um abacateiro devido ao acaso: há uma razão de ser. Por isso, a semente tem na forma a sua finalidade de existir. A essência-árvore é a causa de a semente se tornar árvore. Contudo, não é uma causa que age de fora, tal como um cinzel moldando o mármore. A essência é uma causa que age dentro, no ser mesmo da semente, e dá inteligibilidade à sua existência individual de semente. É a  essência-árvore que dá vida à semente. Essa essência ou forma existe metafisicamente na semente.
Assim, meta não é o que está além no sentido de algo a ser alcançado. “Meta” também é um movimento de alcançar o que precisa ser criado. Meta-físico não é o que está além do físico , como o céu está além do chão. O meta é o que dá sentido ao físico, o organiza, o faz ter uma forma, um aspecto, um querer. Uma realidade metafísica não é uma realidade distante e além, ela é uma realidade diferente da realidade física, e não está além ou aquém desta, mas junto, embora diferente.
Toda realidade metafísica é incorpórea. Porém, nem tudo o que é imaterial é metafísico. Por exemplo, posso imaginar que estou a correr em uma praia, embora eu esteja na verdade aqui sentado no sofá de casa. Essa imagem ou fantasia não existe por si mesma, ela existe em minha mente apenas. Ela não tem autonomia. Essa imaginação pode ser apenas o efeito de meu enfado de estar em casa. Tal fantasiar existe apenas enquanto realidade psicológica. As realidades psicológicas existem em razão das vivências de um ego. É sempre o ego , ou algo que sobre ele age, que explica o surgir de uma imagem ou imaginação. O mesmo aconteceria se eu , ao invés de imaginar , me lembrasse da ocasião em que estive em uma praia e corri sobre sua areia. Coisa diferente, no entanto, é se indagar acerca do que é o eu, ou do que é a imaginação ou do que é a mente. Para tais coisas, seria preciso formar ideias. E ainda mais: indagar acerca do que é uma ideia! A metafísica não se encerra nos produtos da mente, ela indaga acerca do que é a mente e também sobre o que existe fora dela.
A metafísica conheceu ou conhece duas maneiras de se expressar. A primeira delas se confunde com sua origem grega, ao passo que a outra nasce e traduz a posição moderna, mais próxima de nós no tempo. Entre os gregos, a metafísica nascia de uma experiência. Não a experiência com algo já visto, mas experiência com algo que põe no limite todo ver. Não era uma experiência meramente teórica ou conceitual. O motor dessa experiência era um afeto: a admiração ou o espanto. Não o espanto ou admiração diante de um fenômeno natural ou fato grandioso , tampouco espanto ou admiração diante de um prédio enorme ou um artefato técnico feito pelo homem. O espanto era em relação à existência. Não exatamente com a  própria existência daquele que se admira  ou com a existência  de algo externo que se vê ou percebe. O espanto e admiração eram em relação à existência inteira, toda, imensurável, infinita, absoluta. Era uma admiração por aquilo que não se podia abarcar, com o olho ou com o pensamento, mas que  estimulava o olho e o pensamento, mais do que as cores , para aquele, e mais do que teorias, para este. Esse espanto ou admiração eram afetos afirmativos, expansivos, confiantes, que faziam a vida própria transbordar para fora e ir além (“meta”).
Essa admiração pelo infinito  vinha sem aviso, sem preparação ou estudos em livros. Ela nascia de um certo desapego ao habitual e familiar, para que o grego pudesse se  familiarizar com o mais estranho e inaudito. Era uma espécie de acordar de um sono, sono este ao qual a doxa  chama de realidade. Esse despertar não se fazia apenas com o espírito, pois dele também participava o corpo, através de um olhar que se metamorfoseava em uma visão fontana, diria o poeta. Era o inaugurar do ver no ato mesmo de ver, e isso depois de tanto olhar sem ver. Nesse olhar o conhecimento e a poesia ainda estavam unidos no mesmo jorro indistinto da vida ,  e esta convidava o pensamento  a ser o seu destino, livremente.
Enquanto a metafísica grega se apoiava no ponto de exclamação, será o ponto de interrogação a motivação da metafísica moderna. A metafísica moderna pode ser expressa em uma pergunta: “por que existe o ser e não, antes, o nada?”. A metafísica moderna introduz algo impensável para o grego: o nada. Quando Parmênides, por exemplo, fala em não-ser, este não é o "nada", e sim ignorância do Ser.
Enquanto no mundo grego a metafísica constituiu o acabamento ou fundamentação das ciências, no mundo moderno haverá radical cisão entre a ciência e a metafísica. A ciência moderna se debruça sobre fatos ou fenômenos: ela não indaga sobre o ser, ela procede mediante recortes que lhe darão seus respectivos objetos. Assim, a física não estuda o ser, mas os objetos físicos. A química não estuda o ser, e sim os objetos químicos. Para um cientista, pensar o nada é loucura...além de perda de tempo. E mais perda de tempo ainda é pensar o Ser...
O mundo grego desconheceu o que é isso: o nada. Segundo Heidegger, a ciência é um esquecimento do ser, ela se inscreve  ainda dentro da história da metafísica, mas como seu epílogo, como o lugar de um esquecimento daquilo que tornou o humano humano: a indagação ,sem fins utilitários, acerca do sentido da existência. Para Heidegger, está vedado para nós para todo sempre aquilo que os gregos experimentaram e chamaram de existência. Não sabemos mais o que é isso, ficamos apenas com a letra e nos fugiu o espírito.




[1] Texto elaborado pelo Prof. Elton Luiz como complemento às aulas.


                          

(Haroldo de Campos)


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