domingo, 29 de abril de 2018

o muro...


Cinco doentes graves estavam numa enfermaria. A única comunicação  com o mundo  exterior era uma pequena janela. Perto dessa janela cabia apenas uma maca, na qual  ficava um dos doentes a narrar o que acontecia lá fora. “Daqui vejo o mar , até sinto  sua brisa. Vocês também conseguem sentir?”, perguntava  aos outros doentes.  Apenas um  dizia  não conseguir sentir. Os que sentiam, recriavam  um mar na alma.No dia seguinte  prosseguia o paciente-narrador: “Daqui  posso ver e ouvir crianças brincando numa pracinha . Vocês também conseguem ouvi-las?” . O mesmo paciente que não sentira a brisa também não conseguia ouvir as crianças . Os outros conseguiam,e algo    dentro deles brincava também.Enfim, o paciente da janela  passava o dia a transpor em palavras a vida , de tal modo  que suas palavras viravam  remédio para quem as  ouvia.
Certo dia, porém , o paciente da janela emudeceu. Chamaram a enfermeira. Ela constatou, sem surpresa, que ele havia morrido; e só então os outros souberam que  ele era o mais doente . Todos queriam o lugar vago , mas aceitaram que para lá fosse o doente de  sensibilidade embotada . Só lhe fizeram uma exigência: continuar  as narrativas.  “ Farei melhor que o outro!”, gabou-se.
Quando ele  olhou pela janela, porém, ficou mudo...Perguntaram : “o que houve!?” Então, ele disse: “em frente à janela não há mar, paisagem ou praça. Há apenas um  muro cinza... Um espesso   muro cinza”, repetiu. Ele só conseguia dizer a palavra mais fraca e sem alma que existe : aquela que apenas repete o que está dado. Pois era verdade: sempre houve aquele muro. Instalou-se ali um silêncio resignado, a morte venceu.
O muro cinza é tudo aquilo que nos rouba a visão do horizonte, que é onde se vislumbra a virtualidade de novos mundos possíveis, que nos estão fora e dentro. Ver tais mundos requer outra concepção de verdade:uma verdade que transfigura o que está dado. “É preciso transver o mundo”, já dizia Manoel de Barros.












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