quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

centenário de jacob , o orfeu do bandolim





O mito é um passado que é um futuro 
disposto a se realizar no presente.
Octavio Paz

Descanse tranquilo onde cantam.
Os maus não cantam.
Schiller

Em grego, o nome “Orfeu” significa:”aquele que toca a lira”, “aquele que possui a arte de tocar a lira”. A lira é um instrumento singularíssimo, que requer muita sutileza e nuances para a sua execução. Na mitologia, ela é associada primeiramente a Apolo, o deus da forma, do limite (em muitas representações de Apolo ele aparece portando uma lira). Mas Orfeu vem de outra linhagem: ele é discípulo de Dioniso, o deus do ilimitado, das metamorfoses. Orfeu dará à lira uma dimensão que vai muito além de Apolo.Orfeu fará da lira a expressão tangível de suas  próprias cordas vocais, cordas estas que o intangível toca por intermédio das mãos da alma, para assim fazer viver, no som que se expande, o Afeto que a todos toca.
Em Apolo, a lira era instrumento para executar a música celeste, apenas audível aos deuses olímpicos. Orfeu era um homem, não um deus.Porém, ele alcançava uma dimensão divina com a música que extraía de sua lira, música esta que divinizava o terrestre: “celestava as coisas do chão”, como diz Manoel de Barros. 
A música é , dentre todas artes, a primeira a nascer.Na verdade, não foi o homem quem criou a música, esta sempre existiu. Segundo Pitágoras, a música surgiu junto com o universo.Para ouvi-la, era preciso ouvir também o universo, ou ao menos parte dele. O primeiro homem que assim se deixou afetar, ouvindo o universo,tornou-se músico.No mito, a primeira música que um homem ouviu nasceu quando este homem pôs as tripas de um carneiro para secar penduradas nos galhos de uma árvore.Quando o vento passava entre as tripas, podia-se ouvir um som que parecia dizer algo. Foi a capacidade de ouvir a natureza enquanto realidade expressiva que fez surgir , no homem, o músico, o artista. Finas cordas extraídas das tripas de um carneiro amarradas nos chifres de um bode, esta foi a primeira lira inventada, este foi o primeiro instrumento que nasceu para reproduzir, reinventando-a, a música que a natureza já fazia, música esta que a própria natureza era e é. Assim surgiu a música Apolínea, música que nasce da vibração das cordas.

A música dionísica tem outro nascimento.Certa vez, Pã enamorou-se de uma Ninfa e a quis como par. Mas esta fugiu e , querendo  esconder-se,metamorfoseou-se em caniços de bambu .Exausto de procurá-la, já querendo desistir, mas desejando expressar o afeto que estava encerrado dentro dele, Pã tem a ideia de pegar um feixe de  caniços que vê perto de si. Sem que saiba, esses  caniços eram a metamorfose de sua amada, o objeto de seu desejo.Ele os amarra e começa a soprá-los, ora sopra um, ora outro, ora todos. Assim nasceu a flauta.
Pã fizera o que Freud , Jung e Sartre chamarão de "sublimação". Sublimar não é reprimir um afeto, mas transfigurá-lo e expressá-lo sob a forma de um bem cultural no qual o afeto vai sobreviver desprovido de sua carga meramente individual e passional. "Pã" , que era um dos discípulos de Dioniso, significa: "todo". Pela música, o afeto sai da subjetividade e ganha o "todo", o mundo, o universo, através de um soprar que sai de dentro, ao contrário da música de cordas, que nasce de um tocar de fora, com os dedos ou outra coisa, as cordas. É por isso que a música apolínea pode ser matematizada, pois ela se mantém a certa distância do mundo interior, ao passo que a música dionisíaca é o próprio Pneuma, o sopro vital, que se tornou cósmico: através da música , o Pneuma se torna igual ao vento cósmico que produz  música, posto que é música. Daí o caráter paradoxal de  Orfeu: ele toca a lira, instrumento de Apolo, porém a toca com a alma, já que ele também canta. Com Orfeu, nasce a canção. Cantando, o Pneuma fazia vibrar também cordas, porém cordas "interiores", ao mesmo tempo físicas e espirituais : as cordas vocais. Orfeu não cantava as guerras, tampouco louvava inalcançáveis céus. Ele cantava a vida em sua simplicidade, e a transfigurava com seu canto, tal como, entre nós, Cartola, Paulinho  ou Noel. Orfeu celestava o simples, tornando-o sublime .
A música de Orfeu produzia encantamento. “En-cantar”: encher-se de canto.Cantar é mais do que falar ou dizer palavra, cantar é transformar em palavra o sopro vital.Quem canta faz cantar.Orfeu enchia de canto até mesmo os brutos, de tal maneira que o canto silenciava a brutalidade. Ninguém permanecia o mesmo ao ouvi-lo.
Muitos comparam a alma à lira: assim como esta, a alma é composta de cordas diferentes, heterogêneas. A razão, o desejo,a  imaginação, a memória...são as cordas da nossa lira.Saber pensar, saber falar, saber sentir, saber ouvir...são músicas que tocamos com nossa alma, com todas as suas heterogêneas partes.Pensar e sentir são vibrações. As cordas vibram porque elas são tensionadas. “In-tensidade”: qualidade do que existe tensionado (como a corda do arco que impulsiona a flecha, como as cordas do bandolim das quais nasce um chorinho: o bandolim é o tatataraneto da lira, e mesmo no "chorar" do chorinho há um cantar... ). Intensa era a música de Orfeu,pois viva era sua voz, seu canto;incontáveis eram seus acordes. E mesmo na divergência há acordes: acordes discordantes. A música que tocamos,a música que somos nasce de sabermos compor com essas cordas heterogêneas, plurais. A alma do artista nunca é monocórdica, uma vez que sua música nasce do agenciamento das cordas diferentes. Para essa música não há partitura, apenas o improvisar que já é o rascunho  como obra , como “forma em rascunho”.
A esposa de Orfeu se chamava Eurídice. Na Grécia antiga, na tradição órfica dos Mistérios,  “Eurídice” também era um dos nomes da alma (assim como Psiquê e Pneuma também o são: Pneuma, "sopro", foi traduzido para o latim como "Espiritus"...). Assim, era agenciado com sua alma,com seu "sopro",  fazendo-o intenso, que Orfeu produzia  o mistério poético do encantamento. Ele o fazia não apenas com uma parte da alma, mas com ela inteira. E a alma quando se torna inteira nunca cabe totalmente dentro de si própria: ela salta para fora, encontra para si um corpo em qualquer coisa, mesmo nos objetos aparentemente inertes. E tudo a alma pode então fazer ter alma.
Um afeto a guia nessa tarefa : a confiança. "Con-fiar": fiar junto. Fiar é produzir um fio , uma tecitura, uma narrativa.Fiar é produzir um sentido, que é o caminho sobre o qual se anda, avança, sem que o objetivo seja chegar a um ponto que se torne a morte do fio. Pois o sentido  de tecer e fiar é estender o fio ao máximo que ele pode chegar. Mas ninguém sabe qual é esse máximo, dado que o fio deve nascer de um novelo que concentre em si o mundo inteiro a se desdobrar, ampliar: "nov-elo", "novo elo". A razão de ser do fio é criar novos elos, e é sempre de um novo elo que ele também nasce.Somente os que produzem sentido narram, posto que confiam no sentido. Confiam não exatamente em si apenas, confiam em si enquanto instrumento de  produzir um sentido que os ligue ao outro, ao cosmos, ao infinito,permanecendo no entanto  ligado ao novelo de onde o fio nasce e nunca para de nascer.
Orfeu e Eurídice tiveram um filho, cujo nome é Museu,  poeta como o pai. Orfeu,porém, teve um fim trágico. Após morrer, Eurídice foi parar no Hades. Este era o lugar do Esquecimento. Ao morrerem , as almas esqueciam que viveram, tornando-se assim sombras.Elas esqueciam a vida. Simbolicamente , a morte de Eurídice significava que o poeta esqueceu-se da vida, perdeu-a. E o Mistério de onde a poesia nascia,o Mistério que a alma era,  tornou-se escuridão. A Escuridão é o que fica quando se tira o Mistério da vida. "Mistério" e "místico" provêm de uma mesma palavra: "mys", que significa "fechar a boca". Porém, esse "fechar a boca" não significa, como erroneamente se interpreta, ficar em silêncio. "Fechar a boca" , nesse caso , refere-se à boca que apenas diz palavra , e nada mais. Heidegger dizia que a diferença mais nítida entre a vida autêntica e a vida inautêntica reside no fato de que esta última é "tagarela". A tagarelice é um desperdício da palavra. "Mys" significa fechar essa boca que tagarela e nada diz. Os tagarelas tudo querem  dizer, embora nada digam. O mistério da fala poética é exatamente esse: um "afloramento de falas" que expressa o que a fala prosaica não consegue dizer.Misterioso não é o que se oculta ou se põe na sombra, ou diz coisas incompreensíveis; misterioso é o que se esforça para  calar a tagarelice da doxa, a começar a que pode estar nele,  para ousar dizer o que nunca foi dito.Não porque estivesse oculto, mas sim em razão de ainda não ter sido inventado.
Por algum motivo, a alma de Orfeu esqueceu-se do mistério e se viu na escuridão. Perdeu o sentido e perdeu-se do sentido.Ela se tornou o passado. Pois é isto a morte para a alma: ficar presa no passado.Não o passado que , do presente, a gente lembra sob a forma de recordação.Se a alma fica presa do passado, o presente já não existe para ela, tampouco o futuro.No passado não há mistério, mas também não há vida: há apenas um "viveu" que ainda se pensa vida.Para Orfeu libertar sua alma, para libertar a si mesmo, era preciso resgatar sua alma do passado. E assim ele fez, indo ao Hades procurar por Eurídice. Quando ele chega ao Hades, vê apenas sombras. Como achar novamente, no meio de sombras , a própria alma? Orfeu começa a cantar suas poesias e canções. Somente estas podem trazê-lo de volta a si mesmo.Ninguém pode resgatá-lo, a não ser ele mesmo.Ele não acha primeiro sua alma para depois reencontrar sua poesia. Ele cria sua poesia para assim achar-se como alma.
Todo retorno é difícil.Ainda mais quando se vai ao ponto onde se perdeu.O Deus Hades, senhor daquele mundo escuro, disse ao poeta: "vá e leve sua Eurídice, mas não se volte para olhá-la antes de ultrapassar totalmente a fronteira desse meu mundo".Mas onde termina essa fronteira? Onde cessa o passado e se inicia uma vida nova? Onde paro de me esquecer e me lembro? Talvez essas dúvidas tenham abalado  a confiança do poeta, levando-o a pôr-se em dúvida acerca de si mesmo. Pensando que sua alma já estivesse livre do passado que a fizera prisioneira, Orfeu volta-se para olhá-la, e este olhar a põe de novo lá, fora do alcance .E foi assim que o poeta perdeu-se de si mesmo, ficando totalmente mudo, ausente de si .  
As Fúrias, que eram as deusas da vingança, achavam agora que o poeta lhes cederia  , e colocaria sua arte a serviço delas.Mas o poeta recusou casar-se com elas e fazer da poesia um canto da morte . Não exatamente a morte física, mas a morte em seu sentido mais amplo, como morte ou banalização do sopro vital. Essa banalização/despotencialização  do sopro vital  pode ser ouvida , inclusive, em certas formas de música que , hoje, entopem televisões e rádios, de tal modo que parece que o Hades estendeu seus domínios não apenas aos mortos, mas também aos vivos. Enciumadas pelo amor que o poeta devotava à alma, as Fúrias, que eram divindades que desconheciam o que é amar( elas sabiam apenas o que é o odiar), elas então  fizeram Orfeu em pedaços. Quando Museu vê seu pai em pedaços, em fragmentos, nasce nele o desejo de reunir esses pedaços para fazer deles novamente partes de um todo, pois o todo, a essência de Orfeu, permanecia na alma de Museu, como parte também dele.Recriando Orfeu , Museu recriaria a si mesmo; e novamente, através dessas partes, Orfeu  renasceria e poderia ser conhecido por todos. Foi assim que nasceu a primeira exposição do mundo, tendo um poeta como tema, para dessa forma ensinar aos homens o que é a poesia, que é sempre o resgate lúdico da vida que está em nós mesmos, para assim potenciá-la. Museu   percebeu que o poeta  ainda permanecia vivo: Orfeu estava vivo  em cada coisa que ele produziu  e criou.  Ele estava vivo como vibração, como sentido.





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