quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

livro: poesia pode ser que seja fazer outro mundo

                                         
         




(trecho do livro a sair em março/2018, pela editora 7letras)



                Poesia pode ser que seja fazer outro mundo
               - Uma homenagem ao centenário de Manoel de Barros -

 Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
                               O segundo é letral:        
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry. 
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.
                                                                        (Manoel de Barros, Poemas rupestres)      
           
                                                                                                   
- Inventar aumenta o mundo

"Poesia pode ser que seja fazer outro mundo" é um verso do próprio Manoel[1].  Mil sentidos podem ser extraídos dele,  inesgotável é sua riqueza. Acreditamos que a ênfase deve ser colocada no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta, tangível, reconhecível, etiquetável, prestes a virar propriedade de um dono. Sempre haverá mundo para a poesia fazer, a poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos políticos, psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre múltiplos. É da invenção fazedora de mundos que o poeta deseja ser o dono, não do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve"[2], diz o poeta.
Se estivesse vivo, Manoel de Barros completaria 100 anos em 2016.  Mais precisamente, no dia 19 de dezembro. Esse número tão expressivo parece contrastar com a imagem que o poeta imprimiu à sua obra. Não são as datas e a passagem do tempo que o interessam, mas “as origens que renovam”[4]. Quanto mais o tempo passa, mais a obra de Manoel de Barros parece nos encantar como seus inauguramentos, seus exercícios de ser criança: “Quem é quando criança a natureza nos mistura com suas árvores, com as suas águas, com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência”[5].
Este livro nasceu de evento-homenagem ao poeta acontecido em outubro de 2016, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tal como no evento, quisemos fazer um livro-homenagem também plural, transdisciplinar, reunindo filósofos, poetas, pesquisadores, enfim, profissionais que encontraram na obra do poeta um caminho para a invenção de ideias. Manoel foi para nós um intercessor. Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões idênticas ou semelhantes, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer "nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando. O intercessor-Manoel nos colocou em estado de embrião, como forma em rascunho, no limite de nós mesmos, desabrindo-nos. Somente dessa maneira pudemos, com Manoel, ousar um “afloramento de falas”.
É de se notar, hoje, a variedade de campos envolvidos nas produções acadêmicas que tomam o poeta como tema. Além da Teoria Literária, há estudos em Filosofia, Dança, Geografia, Psicologia, Pedagogia, Museologia, Teatro…Essa pluralidade expressa a riqueza de uma poética que ainda se oferece por descobrir, exigindo um rico trabalho de diálogo interdisciplinar em sua hermenêutica. Mas Manoel é arisco: a expressão reta não o apanha...
O livro deseja contribuir para a divulgação de um pensador originalíssimo de nossa cultura, com influência crescente nas mais diversas áreas da vida brasileira. Apesar do reconhecimento midiático, a poética de Manoel ainda é relativamente pouco conhecida e estudada, e falar dela também é, sem dúvida, pensar nossa sociedade, nossa linguagem e as formas plurais mediante as quais produzimos conhecimento. Esta é a originalidade do poeta: uma simplicidade sem pose, uma simplicidade múltipla, pois toda autêntica simplicidade é vária, com-plexa: múltiplas coisas estão dobradas e implicadas nela.



"Por coisas singulares entendo coisas que são finitas e têm existência determinada. E se vários indivíduos concorrem em uma ação de forma que todos juntos são causas de um efeito, considero-os todos, nesta medida, como uma coisa singular".(Espinosa, Ética, Segunda Parte, definição VII)






[1] Encontros: Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 68.
[2] Entrevista concedida ao jornalista José Castello e publicada no site Jornal de Poesia, em 30/05/2005.
[3] Encontros: Manoel de Barros, p. 135.
[4] Poema “Aprendimentos” , Memórias inventadas – as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta, 2010, p. 109.
[5] Manoel de Barros, Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros, p. 113.                                   

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