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(trecho do artigo)
1.Introdução:
os afetos e a imaginação
Quem
não tem instrumentos de pensar,
inventa.
Manoel
de Barros
Segundo
Spinoza, são três os afetos originários: o desejo, a alegria e a tristeza.[1] Esses afetos estão na
origem, todos os outros afetos derivam deles. Eles estão na origem não porque
remetam ao passado, ao que passou, e sim em razão de que eles são a origem do
que somos agora, enquanto duramos, com nossa mente envolvendo um corpo. Eles não se originam de nós, somos nós que nos
originamos deles. Originar-se, aqui, não significa um ir para fora e
separar-se, significa um estar envolvido,
ao mesmo tempo que um envolver, pois
não podemos existir a não ser envolvidos
pelo viver. Desses três afetos se originam outros dois: o ódio e o amor.
Desejo,
alegria e tristeza não são estados da alma, são o existir mesmo. A alegria é
uma passagem [transitio] a uma perfeição maior, a tristeza é uma passagem a uma perfeição menor.[2] A perfeição é o existir mesmo,
ela é o desejo. A perfeição não é um modelo a alcançar, da perfeição não há
modelos. A perfeição não é algo externo a se desejar, senão a própria origem do
desejo. O desejo é a existência mesma, existência esta que uma essência ou
ideia envolve. Por aqui se vê que é
impossível escrever sobre Spinoza sem que logo surja este verbo: o envolver.
A
tristeza nunca vem do desejo mesmo, ela pode vir, e vem, de algo externo que
envolve o desejo. Mas esse algo externo não deve ser visto apenas como a coisa
que existe lá, no mundo objetivo. A tristeza é um afeto que acompanha o desejo,
mesmo estando ausente o ser que a causou. A tristeza não se mantém pela
presença do objeto, ela se mantém na diminuição do desejo, ela é a passagem a essa diminuição, e não o
próprio estado. É por isso que é difícil apreender essa tristeza de que fala
Spinoza, pois ela não é apenas um estado da alma, não é somente psicológica.
Ela é uma passagem a uma perfeição menor. A perfeição só é sentida como menor
quando conseguimos compreender a perfeição, a sua ideia adequada, para assim
conhecer as variações dela mesma: para se saber se um grau de azul é mais
intenso do que outro, ou menos intenso, é preciso, antes, formar uma ideia
adequada do azul. Um grau de azul pode ser qualificado como mais ou menos azul
em comparação com outros graus da mesma cor, mas primeiro é preciso existir o
azul, que é plenamente ele mesmo sem precisar ser comparado com outra cor.
Mesmo na tristeza há uma perfeição, uma
existência, e é a partir da compreensão desta que a tristeza pode ser vencida.
Aquele que está em uma perfeição menor, porém carece da capacidade de fazer uma ideia adequada da
perfeição, isto é, da existência e do desejo, pode imaginar que está em uma
existência perfeita, desde que o circundem coisas, posses, propriedades, bens.[3] Ou seja, a perfeição será
avaliada de acordo com coisas externas.
A
alegria é a passagem a uma perfeição
maior. Ela é a passagem a essa perfeição, e não a própria perfeição. A alegria
e a tristeza são afetos nascidos no encontro
do desejo com as coisas externas. Elas são, por isso, paixões: paixões alegres
ou tristes. O amor, nesse nível, é a imaginação de que nossa alegria tem por
causa algo externo. O ódio, ao contrário, é a imaginação de que nossa tristeza
tem por causa algo externo. Quando sentimos alegria, esse afeto vem
acompanhado, envolvido, pela ideia da
existência do ser que nos causou tal afeto. O amor é a imaginação-desejo de que
devemos nos unir a ele. A tristeza, por sua vez, é envolvida pela ideia-imagem do ser externo que
imaginamos ser sua causa. Tanto a alegria quanto a tristeza, embora
imaginações, podem levar-nos a ações, e não apenas imaginá-las. De tal modo que
me esforçarei para fazer o bem a quem amo, e mal a quem sinto ódio. Esse agir
não é bem um agir, ele é um reagir, pois minha ação será explicada por aquilo
que imagino, e não pelo que compreendo.
[1] Para o que se segue: Ética, Terceira Parte, “Definição dos
afetos”. Empregaremos aqui a edição bilíngue, trad. Tomaz Tadeu, Editora
Autêntica, 2013 (3ª edição).
[2] “Digo passagem porque a alegria não é a própria perfeição” (Spinoza, Ética, “Definição dos afetos”, nº 3: A
tristeza, explicação). No original latino, o termo “transitio” não está em
itálico, apenas na tradução.
[3] No Tratado da correção do intelecto, por exemplo, são a essas coisas que
Spinoza identifica como motores da opinião e da mera imaginação.
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