segunda-feira, 25 de setembro de 2017

o tordo e o vulcão (2)






O vídeo mostra um fluxo de lava se lançando ao mar. O fluxo passa entre sólidas rochas que um dia já foram lavas. Hoje, essas rochas se acumulam, camadas sobre camadas, formando estratos, segmentos. Um fluxo não tem segmentos, tampouco estratos. Um fluxo se expressa em velocidade e lentidão, avanços e paradas. Um fluxo nunca vai para trás, para o passado. Um fluxo vai para a frente com o máximo de força que tiver. Tornar-se rocha não é o destino do fluxo-lava, tornar-se rocha é seu passado. A rocha sólida é um testemunho da lava que já foi.
Os fluxos são sempre primeiros, eles têm primazia, diria Manoel. Já se começa a redescobrir o que já sabia Lucrécio  séculos atrás: o universo é um rio, um fluxo. E mesmo o mito já dizia: a Via Láctea, o “caminho leitoso”, é um fluxo de leite que jorrou dos seios amorosos de uma deusa. 
Mas ninguém pode viver nos fluxos, podemos desejar apenas nos aproximar o mais possível deles. Somente os vulcões expelem tais inícios, porém ao preço de se explodirem eles mesmos.
Deleuze  e Guattari  nos falam da existência dos fluxos e dos estratos, do liso e do estriado. Tudo é composto de fluxo e de estratos. Os estratos são mais visíveis , já os fluxos são imperceptíveis, embora também reais.
A linguagem possui seus estratos gramaticais, mas o fluxo do sentido constitui uma agramática poético-filosófica.
É danosa a estratificação da vida mental em id, ego e superego, pois nos leva a imaginar que o id, o inconsciente, é também um estrato, como o são o ego e o superego. O inconsciente não é um estrato contiguo ao estrato ego, ele é um fluxo sem contiguidade, dado que suas margens se fazem e desfazem. Gênero masculino e feminino, e outros, são estratos; porém fluxo é a sexualidade (nenhum dos estratos é dono dela).
Os estratos podem se opor dialeticamente, e lutarem pela supremacia sobre o outro; no entanto, todo fluxo é indivisível, nunca ele se opõe a ele mesmo. Os estratos constituem poder ( potestas), anseiam por  “empoderamentos”; porém de potência (potentia) são feitos os fluxos. Mas os fluxos não são evidentes, é preciso achá-los, por vezes inventá-los, se força tivermos para não nos deixarmos reduzir a um estrato.
Porém, é preciso cautela e cuidado nesses processos, advertem Deleuze e Guattari. Não por acaso, o anel de Espinosa trazia a inscrição latina : “caute”, cautela, cuidado . O anel era parte da mão que  pacientemente polia “as lentes”. Segundo Deleuze e Guattari, é preciso manter algum estrato quando nos aproximamos dos fluxos. É preciso manter vivo o ego quando fazemos a viagem ao inconsciente. E de tal viagem o ego retornará outro: menos ego e mais devir-outro.
O melhor exemplo talvez seja a vida de um pequeno pássaro: o tordo. Este passarinho possui três espécies de canto. Os dois primeiros servem aos estratos biológicos para a conservação de sua vida própria. São  cantos que ele emite quando quer obter um território e conquistar uma fêmea. São cantos belos. Aparecem rivais de estratos diferentes, há então duelos, medições de força. Vencerá quem mais poder tiver. O território assim obtido é um estrato. 
No entanto, esse passarinho emite ainda um terceiro misterioso canto. Ele o emite em dois momentos do dia: o vespertino e o matutino, o crepúsculo e a aurora. Ele o canta sozinho, sem disputas, sem rivais. Ele se põe então em certo galho elevado de sua árvore. O galho constitui o limite de seu território-estrato. O galho se torna o estrato mais próximo de perigosos fluxos. Pois, cantando, o pássaro pode ser achado pela soturna coruja, sempre cobiçosa por  predá-lo. Não obstante, entrega-se o pássaro ao misterioso e vivo canto.

Este último estrato não é vencido por voos físicos feitos por tangíveis asas, vez que apenas o canto pode ir além dele, em um “voar fora da asa”. Não é um canto belo, é um canto sublime. Na estética, o belo é um afeto pela forma, pelo limite, ao passo que o sublime é um afetar-se por aquilo que não tem limites. É, por isso, um canto de limiares. Não é um canto entrecortado, segmentado, como o são os outros dois cantos. É um canto contínuo, sem intervalos, onde o pássaro parece alcançar os seus limites canoros. Mais do que para o sol, ele canta para seu fluxo luminoso. 



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