O vídeo mostra um fluxo de lava se
lançando ao mar. O fluxo passa entre sólidas rochas que um dia já foram lavas.
Hoje, essas rochas se acumulam, camadas sobre camadas, formando estratos,
segmentos. Um fluxo não tem segmentos, tampouco estratos. Um fluxo se expressa
em velocidade e lentidão, avanços e paradas. Um fluxo nunca vai para trás, para
o passado. Um fluxo vai para a frente com o máximo de força que tiver. Tornar-se
rocha não é o destino do fluxo-lava, tornar-se rocha é seu passado. A rocha
sólida é um testemunho da lava que já foi.
Os fluxos são sempre primeiros, eles
têm primazia, diria Manoel. Já se começa a redescobrir o que já sabia Lucrécio séculos atrás: o universo é um rio, um fluxo. E mesmo o mito já dizia: a Via
Láctea, o “caminho leitoso”, é um fluxo de leite que jorrou dos seios amorosos
de uma deusa.
Mas ninguém pode viver nos fluxos, podemos
desejar apenas nos aproximar o mais possível deles. Somente os vulcões expelem
tais inícios, porém ao preço de se explodirem eles mesmos.
Deleuze e Guattari nos falam da existência dos fluxos e dos
estratos, do liso e do estriado. Tudo é composto de fluxo e de estratos. Os
estratos são mais visíveis , já os fluxos são imperceptíveis, embora também
reais.
A linguagem possui seus estratos
gramaticais, mas o fluxo do sentido constitui uma agramática poético-filosófica.
É danosa a estratificação da vida
mental em id, ego e superego, pois nos leva a imaginar que o id, o
inconsciente, é também um estrato, como o são o ego e o superego. O inconsciente
não é um estrato contiguo ao estrato ego, ele é um fluxo sem contiguidade, dado
que suas margens se fazem e desfazem. Gênero masculino e feminino, e outros,
são estratos; porém fluxo é a sexualidade (nenhum dos estratos é dono dela).
Os estratos podem se opor
dialeticamente, e lutarem pela supremacia sobre o outro; no entanto, todo fluxo
é indivisível, nunca ele se opõe a ele mesmo. Os estratos constituem poder ( potestas), anseiam por “empoderamentos”; porém de potência (potentia) são feitos os fluxos. Mas os
fluxos não são evidentes, é preciso achá-los, por vezes inventá-los, se força
tivermos para não nos deixarmos reduzir a um estrato.
Porém, é preciso cautela e cuidado
nesses processos, advertem Deleuze e Guattari. Não por acaso, o anel de
Espinosa trazia a inscrição latina : “caute”, cautela, cuidado . O anel era
parte da mão que pacientemente polia “as
lentes”. Segundo Deleuze e Guattari, é preciso manter algum estrato quando nos
aproximamos dos fluxos. É preciso manter vivo o ego quando fazemos a viagem ao
inconsciente. E de tal viagem o ego retornará outro: menos ego e mais
devir-outro.
O melhor exemplo talvez seja a vida
de um pequeno pássaro: o tordo. Este passarinho possui três espécies de canto.
Os dois primeiros servem aos estratos biológicos para a conservação de sua vida
própria. São cantos que ele emite quando
quer obter um território e conquistar uma fêmea. São cantos belos. Aparecem
rivais de estratos diferentes, há então duelos, medições de força. Vencerá quem
mais poder tiver. O território assim obtido é um estrato.
No entanto, esse passarinho emite ainda um terceiro misterioso canto. Ele o emite em dois momentos do dia: o vespertino e o matutino, o crepúsculo e a aurora. Ele o canta sozinho, sem disputas, sem rivais. Ele se põe então em certo galho elevado de sua árvore. O galho constitui o limite de seu território-estrato. O galho se torna o estrato mais próximo de perigosos fluxos. Pois, cantando, o pássaro pode ser achado pela soturna coruja, sempre cobiçosa por predá-lo. Não obstante, entrega-se o pássaro ao misterioso e vivo canto.
No entanto, esse passarinho emite ainda um terceiro misterioso canto. Ele o emite em dois momentos do dia: o vespertino e o matutino, o crepúsculo e a aurora. Ele o canta sozinho, sem disputas, sem rivais. Ele se põe então em certo galho elevado de sua árvore. O galho constitui o limite de seu território-estrato. O galho se torna o estrato mais próximo de perigosos fluxos. Pois, cantando, o pássaro pode ser achado pela soturna coruja, sempre cobiçosa por predá-lo. Não obstante, entrega-se o pássaro ao misterioso e vivo canto.
Este último estrato não é vencido por
voos físicos feitos por tangíveis asas, vez que apenas o canto pode ir além
dele, em um “voar fora da asa”. Não é um canto belo, é um canto sublime. Na
estética, o belo é um afeto pela forma, pelo limite, ao passo que o sublime é
um afetar-se por aquilo que não tem limites. É, por isso, um canto de limiares.
Não é um canto entrecortado, segmentado, como o são os outros dois cantos. É um
canto contínuo, sem intervalos, onde o pássaro parece alcançar os seus limites
canoros. Mais do que para o sol, ele canta para seu fluxo luminoso.
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