quinta-feira, 29 de junho de 2017

o cardiologista e o clínico geral

A literatura é uma saúde.
Deleuze, Crítica e Clínica.

Eu estava prestes a fazer trinta  anos. Na videolocadora perto de casa, vi na prateleira um filme exatamente com o título “Trinta anos esta noite”. Era um filme de Louis Malle, realizado sob inspiração da filosofia existencialista. No original francês, o título é Le feu folletO fogo fátuo.O fogo fátuo é uma luz fugaz que somente pode ser vista à noite, com a presença da escuridão, pois sob a luz do sol sua presença não é notada. O fogo fátuo costuma ser visto em pântanos ou cemitérios, pois ele surge dos corpos orgânicos já sem vida, mortos. Tal luz quase indistinta do  escuro nasce da putrefação daquilo que antes foi vivo.Na idade média, e mesmo depois, os fogos fátuos eram tidos por fantasmas...
         O filósofo Sartre era a referência para o enredo da película. Trinta anos não é qualquer idade. Nesse período da vida há uma passagem, uma passagem mais difícil e dramática do que todas as passagens que vieram antes. É aos trinta, dizem os existencialistas, que somos de fato apresentados à existência. Antes disso, vivemos a vida como se fosse um filme ou peça na qual somos um personagem cujo papel fora escrito pelos pais, pela sociedade, por Deus ou por outra referência que, inconscientemente ou não, tomamos como modelo e Verdade. Aos trinta, porém, essa peça termina, abruptamente. Ela termina  sem um  final que dê sentido ao que viera antes. Desaparecem a peça, o roteiro, o diretor, o personagem... Fica apenas , nu, o ator. Diante deste, apenas o Nada, o Nada que ele descobre que é."A existência, diz Sartre, precede a essência". A existência não tem essência. Portanto, não pode ser definida ou conhecida teoricamente, a existência pode apenas ser vivida, sentida, experimentada, enfim, feita. Angustiado, o ator percebe a inautenticidade do mundo em que vivia. Agora,está só diante da folha branca, e essa folha branca, sem pautas, é sua vida a ser vivida. Antes, ele era o personagem de uma peça onde tudo tinha seu lugar e fazia sentido. Agora,  ele se sabe um ator cuja vida  carente de  sentido quer engoli-lo. Porém, se não há mais peça ou personagem, também não pode haver mais o fingimento do ator: o ator tem de desaparecer para que surja, enfim, a autenticidade de um ser a se inventar, a se fazer. Segundo Sartre, essa experiência da liberdade de fazer-se põe-nos face a face com a   angústia. Angústia diante de  seu próprio Nada.
De certo modo, eu vivia naquele momento uma situação parecida com a que relatava o filme. Minha vida, vida pessoal, profissional, afetiva e política faziam parte de uma peça que acabava. Ao assistir ao filme, beirando eu também os 30, nasceram mais muros do que caminhos. Resumindo: eu não estava bem.
Nessa mesma época, contudo, houve uma noite em que tive um sonho. Sonhei que estava em uma sala de hospital, uma sala de cirurgia. Eu estava deitado em uma maca, com luzes frias sobre mim. Eu seria operado do coração. Estava desesperado, angustiado; pensava que não sairia vivo daquela operação . De repente, a porta se abre, entra o cirurgião. Achei estranha sua aparência: ele vestia o avental branco que todo médico usa, mas aquele era um médico diferente. Ele usava um chapéu de abas largas, como aquele que usava Santos Dumont. Quando vi direito quem era, nasceu-me uma confiança, uma calma, uma fé: pois o médico que me operaria era nada mais nada menos do que o poeta Fernando Pessoa.
Ao me ver sorrindo, ele também sorriu, quando então lhe disse: “somente  um poeta para curar um coração que sofre”. Ao vê-lo de perto, notei que seu rosto tinha múltiplas faces :em cada uma delas o olhar de um  heterônimo do poeta  me olhava de forma diferente. “Qual deles me operaria?”, pensei comigo...
Senti ele abrir meu peito, porém não houve dor, tampouco sangue. Ele enfiou a mão direita para tirar meu coração do  peito, mas apenas esta mão, sozinha, não foi suficiente. Somente com as duas mãos ele pôde tirar meu coração e segurá-lo, como se apanhasse o peso de um paralelepípedo. “Seu coração está muito pesado, preciso extirpar o que lhe pesa”. Pensei que o poeta-cirurgião fosse cortar coisas físicas. Não é físico, porém, o peso mais pesado que pode deixar pesada a vida. Difícil descrever o que o poeta extraiu com sua clínica. Não eram coisas tangíveis, pois o coração no qual o poeta agia não era o mesmo que a cardiologia estuda. O poeta tirou de meu coração palavras que ouvi,  palavras de ódio dirigidas a mim, ditas por quem também já me disse, outrora, palavras de amor. Estas se foram, mas aquelas entraram mais fundo do que podia sentir e segui-las minha consciência. O poeta também tirou a lembrança daqueles que me decepcionaram, que foram ingratos e ardilosos, os quais pensava já ter esquecido ou mesmo perdoado, mas eles estavam ainda em mim  como inimigos a tomarem conta da minha própria casa, no mais íntimo dela. Ele também tirou a crença no Estado e nos partidos políticos. Enfim, o poeta foi extraindo de mim o passado, o passado que ainda estava  escondido, lá onde deveria estar apenas o meu desejo de futuro, jovem que eu ainda era. Por fim, a última coisa que o poeta extraiu foi a saudade de um futuro que desejei antes que fenecesse o presente antigo que o planejou.O pior fantasma é o sinistro fogo fátuo  que fica após   um plano de futuro desfeito, futuro este que  brilhava , acreditávamos,mais do que a luz do  sol.
Quando o poeta extraiu tudo, ele disse que agora colocaria novamente meu coração em meu peito. Olhei para a mão dele e vi um coração pequenino, como o de uma criança.  Com o peito ainda vazio, indaguei-lhe: “ poeta, com esse coração tão pequeno como irei sobreviver?”. O poeta então me disse: “de tudo o que viveu e morreu, tirei tudo. Deixei apenas , da vida, a semente. A arte fez sua parte, a outra parte cabe a você fazer”.  No peito vazio de afeto, o poeta pôs de todo afeto a semente. Acordei subitamente, sentindo que não foi apenas daquele sonho que acordei. Não sei ao certo a hora, mas pela janela vi que já nascia a aurora. Quando me movimentei na cama com o desejo de pegar caneta e papel para escrever o que sonhei, senti algo ao meu lado. Era um livro. Lembrei-me então que adormeci lendo-o, e dentro dele entrei, ele que entrara dentro de mim também. O livro se chamava “O eu profundo e os outros eus”, de Fernando Pessoa. 


Hoje, nada mais sei senão isso: a “clínica” que Pessoa me fez estando eu a sonhar e dormir, Manoel de Barros me faz estando eu acordado , quando o leio ou quando para outros ouvidos o falo. Lendo Manoel , são  outros olhos que abro:  não os olhos de quem aos trinta imagina, com angústia, os quarenta; ou que aos quarenta imagina, temendo, os cinquenta; ou que aos cinquenta imagina, com melancolia, os sessenta; ou que , estando vivo e não importando a idade, imagina, desesperado, a morte. A empoética terapêutica  manoelina nos faz criar olhos para ir até à infância e voltar. A alegria da infância, sua inocência e  “seriedade brincativa”. Nessa infância não há a visão do Nada, mas dos “nadifúndios”, que é a terra poética dos que não precisam de nada, a não ser daquela semente :“poeta é ser que vê semente germinar”, afirma Manoel. Se Pessoa foi meu cardiologista, Manoel é meu, nosso, clínico geral.


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o texto acima é versão modificada do original publicado no livro:






cena do filme Trinta anos esta


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