segunda-feira, 22 de maio de 2017

- a criação do homem na mitologia grega





Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que não tínhamos visto o que vemos.
                                         Paul Valéry



Após vencer Cronos,o Tempo, e gerar as Musas, para que estas fossem agentes da comemoração da vitória  ( co-memorar é criar memória daquilo que não pode ser esquecido), Zeus se preocupa então em criar a natureza.Até esse ponto da narrativa ainda inexistia o homem ,bem como todos os outros seres vivos .
Zeus pede então a dois irmãos seus que fizessem toda a obra. Estas divindades se chamavam Prometeu e Epimeteu. "Epi" significa "tarde demais", ao passo que a terminação "meteu" deriva de "métis": "prudência" ou "sabedoria prática" (“meticuloso” se origina de “métis”). Assim, Epimeteu significa "saber tarde demais o que deveria ter sido feito". Já Pro-meteu tem o sentido de "saber antes o que deve ser feito". Epimeteu é o que só vê depois, quando "já é tarde", enquanto Prometeu é o que planeja e projeta.
Zeus lhes incumbiu da tarefa de criar a natureza.  Ele  fez algumas exigências : cada ser criado deveria ser dotado de uma essência que lhe permitisse viver e se desenvolver. E o mais importante: a principal criatura a ser criada deveria ser o homem. E tudo deveria ser feito dentro de um determinado tempo, ao fim do qual Zeus retornaria para ver a obra. Prometeu era a divindade mais indicada para comandar a obra, pois Epimeteu era uma divindade cuja característica principal era a volubilidade e ausência de constância. Porém, por estar atarefado com outras coisas, Prometeu pediu a Epimeteu que este começasse a obra. Prometeu viria ao fim para concluí-la.
Quando Epimeteu voltou-se para a natureza para criar os seres deu-se conta que diante dele estava apenas uma matéria muito indeterminada e confusa, na qual as formas ainda não haviam se separado e distinguido da matéria .Ao invés de começar pelo homem , Epimeteu inicia a obra pelos animais. Encantado com as asas que vira em Eros, Epimeteu decide criar primeiro os animais alados. Criou asas sutis, ligeiras, que deu ao colibri; criou asas imensas, potentes, que pôs no Albatroz.
     A cada espécie criada ele a fazia dotar de alguma virtude da natureza, para que assim tal espécie pudesse se desenvolver e sobreviver. Em algumas espécies ele pôs a força, em outras ele colocou o veneno, em outras ainda o dom de cantar; e houve aquelas que receberam a capacidade de respirar debaixo d’água. Algumas espécies receberam um cobertor natural para que pudessem ,apenas com a espessa pele, suportarem o frio extremo. Outras espécies receberam uma visão tão arguta que mesmo à noite elas poderiam ver como se fosse sob o dia. Enfim, Epimeteu foi esvaziando a dispensa da natureza e dotando cada espécie com aquilo que a natureza poderia oferecer. Chega então Prometeu para inspecionar a obra. A primeira coisa pela qual ele procura é o homem. Onde está o homem? O eco da indagação do Deus pode ser ouvida até hoje, e  ainda hoje perdura a mesma silenciosa resposta...O homem, o ser humano, onde está?Epimeteu se dá conta então que se esquecera completamente do homem. Ele indica para Prometeu onde estava o homem: este era um simples esboço no barro, um rascunho que mal se distinguia daquela matéria. Em latim, barros é “húmus”. Etimologicamente, “homem” procede de “húmus”.
Prometeu percebe então que a criação do homem não poderia ser feita apenas a partir daquilo que a natureza material  poderia oferecer. Prometeu se decide a ir buscar no divino o modelo para construir o homem.
A primeira divindade que Prometeu buscou foi Hefesto, o deus artesão-operário. Este deu a Prometeu, para este dar aos homens,a habilidade de usar as mãos. As mãos passaram a ser empregadas para fabricar coisas. Nascia assim a técnica e, com ela, o homo faber: o homem que fabrica coisas para seu sustento. Este homem já não aceita simplesmente a natureza externa: ele a transforma.  Todavia, apenas usar as mãos não  tornou o homem  um ser completo, pois as feras conseguiam ainda assim destruí-lo e vencê-lo. Prometeu busca ajuda de outra divindade: Atena, a deusa da sabedoria. Esta aceita dar a Prometeu, para este dar aos homens, a capacidade de raciocinar: os homens recebem a inteligência. Com a inteligência, os homens aprendem a contar, a medir, a raciocinar, enfim, a falar. Com a inteligência, nasce o homo sapiens.
Todavia, os que receberam a inteligência não foram os mesmos que receberam a habilidade técnica-manual. Entre estes dois tipos de seres humanos, os trabalhadores/técnicos  e os intelectuais/teóricos,passou a existir então uma inimizade: cada um via no outro apenas a capacidade que faltava a este outro, e que era a capacidade daquele que julgava depreciativamente  a diferença. Cada classe desprezava a outra. Eles não se uniam, não viam entre si nada de comum. Inexistia entre eles a comunicação.Existia apenas rivalidade e ódio.Cada  um desprezava a diferença do outro e prezava apenas sua própria identidade.Assim, facilmente a natureza os vencia . Na verdade, o mito tematiza a danosa oposição que pode existir entre a teoria e a prática (ou a técnica) quando vistas à parte da natureza do homem como um todo.
Prometeu resolve ir então diretamente a Zeus e pedir-lhe ajuda. Este aceita conceder a Prometeu, para este conceder aos homens, o sentido ético da justiça. Zeus fez uma exigência: que este afeto fosse colocado em todos os homens, e não apenas em parte deles. Este afeto seria o impulso que os levaria a agir conforme o comum, e não apenas de acordo com  o interesse particular, individual ou de classe.Prometeu resolve então colocar o afeto pela justiça,pelo comum, exatamente no lugar que serviria para mediar os conflitos entre os intelectuais e os operários, entre a teoria e a técnica, enfim, entre o cérebro e as mãos. Este lugar mediador foi o coração. É o coração que equilibra o homem, o equilibra primeiramente dentro dele mesmo, para que assim ele possa se equilibrar na relação com os outros. Mais do que mero sentimento, o coração representa a sensibilidade no sentido maior da palavra.Este lugar de mediação entre a teoria e a técnica é o lugar da arte,o lugar da cultura.  Sobretudo, a cultura que tem como base a educação do homem.A técnica e a teoria podem servir à guerra e à destruição, ao passo que a arte que educa é instrumento de humanização do homem, humanizando igualmente a teoria e a técnica. Não por acaso, as Musas são as divindades que celebrarão a arte como maneira de vencer a barbárie, inclusive a barbárie que pode nascer da mera técnica desumana e da teoria estéril que serve ao poder.As Musas não são apenas divindades ligadas à memória: elas também são associadas à ética, pois são filhas de Zeus.
E é por isso que musealizar algo também é um ato ético. Além disso, há um aspecto das Musas pouco lembrado: elas também eram divindades que cantavam, elas cantavam para celebrar os matrimônios. Elas cantavam, celebrando, os matrimônios. Assim, elas co-memoravam: criavam uma memória em comum.
Patrimônio é um termo nascido do mundo jurídico romano, e significa: aquilo que se herda, sobretudo do pai.Sem dúvida,há algo de masculino na noção de patrimônio ( “patri” é “pai”).Mas para que um patrimônio seja reconhecido como tal, é preciso que haja um “matrimônio”, um enamoramento, um encontro. “Matri” pode significar  mãe ou mulher, e expressa,simbolicamente, o princípio feminino da sensibilidade. E é isto que as Musas fazem: celebram matrimônios, elas cantam elos nascidos de afetos que unem ( o tal “fundo comum” citado pelos autores da obra referenciada no início desse texto)  .
Todo patrimônio é precedido de um matrimônio, de um encontro. Ir ao museu deveria ser como adquirir um matrimônio com o conhecimento, com a cultura. Fala-se muito de “patrimônio cultural”,mas talvez seja necessário pensarmos também a idéia de um matrimônio cultural,cuja base é o afeto,o encontro,  e não meramente a masculina e jurídica razão.Simbolicamente falando, um patrimônio somente é reconhecido como tal se antes houver um matrimônio,um enamoramento. A exposição, enquanto espaço de mediação, é o lugar desse matrimônio cultural.
Voltando ao mito.Ao receber o afeto ético pela justiça,nasce enfim  o homo eticus.O afeto deveria ter a função de servir de mediação  entre a técnica,o mundo do fazer, e a teoria, o mundo do conhecer.
Seguindo a justiça, os homens aprenderam a cooperar: e assim nasceu a sociedade. O homem não era mais tão somente   um ser individual, ele se percebeu também um ser de comunidade, um ser social. E assim eles passaram a comandar a natureza: tanto a externa quanto a interna ( a natureza interna,em seu aspecto danoso, é aquela que  se manifesta  como passionalidade , ou seja , como  ódio, rancor, cobiça, ignorância,etc.).
Contudo, por muito tempo não durou aquela conduta pautada na justiça,guiada pelo afeto pelo comum.Como sabiam falar e dominar a inteligência,logo os intelectuais criaram leis. Depois, o Estado. E este passou a ser monopólio deles.O Estado passou a substituir o coração nos assuntos da justiça. Nasceu assim o déspota, o homem que faz do Estado um monopólio seu.E este passou a crer que possuía uma origem diferente: não o barro, mas o ouro. O déspota criou uma casta com privilégios, bem como um exército para reprimir os operários pobres, que foram então tornados servos. O homem passou a ser então o leão do outro homem, a serpente do outro homem, o lobo do outro homem. Horrorizado, Zeus pensou em destruir com um raio toda a humanidade. Mas decidiu se vingar com uma lição: levaria o homem a ser destruído pela sua própria ambição e pouco amor pela justiça.
Zeus então pede a Afrodite e Atena que criem um ser que seria o instrumento de sua vingança.Alguns outros deuses as ajudaram na tarefa, como o deus Hefesto, o deus-artesão, que modela no barro úmido o que Zeus vai pedindo a Afrodite e Atena.  O homem fora criado no barro seco, ao passo que este novo ser o será  no barro úmido, que Zeus umedecera com sua saliva. Por isso, este novo ser  será mais maleável e receptivo do que o homem, assim como o é o barro úmido em relação ao seco. O barro úmido é matéria que ainda se pode modelar, pois ele  é o símbolo da sensibilidade, base da educação no seu sentido mais amplo.Atena e Afrodite seriam os modelos divinos dessa nova existência a ser criada.Olhando para elas, e instruindo-se no que pede Zeus, Hefesto ia modelando o úmido barro.
       Zeus quer   que o homem, ao ver esse novo ser,  fique cego. A pele desse ser deveria ser tão macia que, ao tocá-la, o homem se esqueceria do aveludado das pétalas. Esse ser igualmente  deveria ser tão perfumado que o homem ,ao sentir seu perfume, também se esqueceria do perfume das rosas. Esse ser também saberia usar com sedução as palavras, para que o homem sempre acredite nelas. Para tal, Hermes, o deus da comunicação, põe na boca desse ser palavras sedutoras.Mas tais palavras nasciam apenas de sua boca, e não de seu ser inteiro: elas seriam    armas para lutar contra a força física do homem.  E o mais importante: esse ser deveria ter dois estômagos, para que a insatisfação fosse o seu estado mais freqüente, e nunca o homem pudesse preenchê-la totalmente.  O nome desse ser : Pandora, a primeira mulher que foi criada.Mais do que a mulher, Pandora representa, simbolicamente, o feminino.
Zeus a envia de presente aos homens. O mais poderoso dos homens a faz de esposa.Zeus envia um baú ao casal. Na tampa do baú estavam escritas as seguintes palavras: “Não abra antes do  permitido”.A irrefreável curiosidade também era uma das características de Pandora.Não obstante a advertência, ela abre o baú. Dele saem a doença, a pobreza, as pestes e o pior dos males: a morte. Até então os homens não morriam, tampouco procriavam. Quando Pandora se apressou em fechar o baú, dentro dele ficou apenas a esperança.
Entretanto, algo de misterioso acontece com Pandora, mais especificamente com aquele seu segundo estômago. A semente da vida nele se depositou, cresceu e se alimentou. O segundo estômago morreu para que no lugar dele nascesse o útero.
Ela que trouxe a doença e a morte, agora dentro dela estava sendo gerada a vida. O homem foi criado do puro barro seco. Mas a mulher foi criada tendo como modelo o divino. A mulher teve como modelo Afrodite e Atena.E sempre quando a mulher potencializa o feminino que está nela , através dela vemos o divino.
Zeus viu então um novo papel para Pandora (que, simbolicamente, representa a sensibilidade, a sensibilidade à vida). Que ela seja o instrumento da educação do homem.Que suas palavras expressem lições que não nasçam apenas na boca, e nesta morram. Que a sensibilidade à vida  auxilie o homem a entender o que a inteligência não compreende; que o amor à vida o ensine a apreender realidades que as mãos não podem tocar.
Por isso, em termos simbólicos, temos a essência eminentemente artística  da educação humanística, que difere da natureza meramente  operacional  do ensino técnico e do caráter exclusivamente racional do ensino  teórico.Nesse sentido, a comunicação, a mediação e a educação são termos que se complementam.

-Referência:
Hesíodo: Teogonia e Os trabalhos e os dias.









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