quarta-feira, 15 de março de 2017

o profeta



No osso da fala dos loucos têm lírios.
Manoel de Barros


     Caminhando pelo Centro do Rio vi uma camisa que me chamou a atenção.Ela era vendida em uma barraquinha , dessas que ficam no meio do passeio público.A camisa  era toda preta e havia no peito uma inscrição em verde , amarelo e branco. As letras imitavam pinceladas,como se a camisa fosse um muro de rua, um espaço público, comum. As letras diziam: “GENTILEZA GERA GENTILEZA”.A tal camisa reproduzia dizeres que o Profeta Gentileza pintara em alguns espaços públicos do Rio, sobretudo espaços de travessia e comunhão: as pontes,mais precisamente as pilastras das pontes. Enquanto virtude,a gentileza é a pilastra que sustenta os caminhos e pontes que nos unem:vai de mim ao outro através do nós. A gentileza é o que sustenta ou deveria sustentar os elos, os agenciamentos.Certo ex-prefeito do Rio, não muito simpático a agenciamentos, quis pôr abaixo todos os caminhos e pontes cujo alicerce é a gentileza... Porém, a gentileza sobrevive, ela se convida a cobrir nosso peito sob a forma de uma simpática e simples camisa. Tornada versos em uma  camisa, a gentileza deveio  algo que pode nos vestir, nós que andamos tão nus da gentileza...



Quem mora no Rio e tem mais de 40 anos deve  lembrar-se desse personagem que caminhava pelas ruas do Centro : vestido com uma longa bata branca, como se fosse um profeta, barbas e cabelos longos e grisalhos, um sorriso simpático no rosto, a todos ele dizia, ao mesmo tempo oferecendo flores,sem nada pedir em troca: “GENTILEZA GERA GENTILEZA”.Todos o chamavam de “Gentileza”, o Profeta Gentileza.Ele não anunciava o fim do mundo,mas como o mundo poderia começar, recomeçar: através da gentileza.
     O que impede a gentileza? O Profeta respondia: “O que impede a gentileza é o capetalismo”.O “capetalismo”não é só o capitalismo como sistema econômico. O “capetalismo”, dizia ele, destrói o planeta.E isso ele já dizia bem antes de surgirem os movimentos verdes... O “capetalismo” também é o ódio, a avidez, a vaidade, o egoísmo...E ele dizia tudo isso sem ódio ,ele o dizia nos entregando flores .Os militares o tinham por subversivo.
     "GENTILEZA GERA GENTILEZA”.Este era seu mantra,seu ritornelo. Alguns riam dele e o supunham  louco; outros o tinham por sábio.Mas a todos ele ofertava, sorrindo, as flores.
Pois bem, comprei a tal camisa ( que,por sinal, era de preço bem modesto, ao contrário daquelas que ostentam midiáticas marcas...). Nela há apenas os dizeres, sem nenhuma referência ao autor que os disse e propagou. Talvez por isso, muitos hoje compram tal camisa sem saber ou  conhecer que existiu o  Gentileza. Quando ponho a camisa, e gosto muito de vesti-la, sinto que as pessoas  reparam.Algumas tomam coragem e  chegam a me indagar : “realmente, falta gentileza no mundo...”. Então, puxo conversa com elas e reparo que muitas não sabem que tais dizeres nasceram da boca do sábio/profeta/louco. Nessas ocasiões, muitas vezes me percebo sendo o “mediador” de tal patrimônio.O patrimônio se torna vivo através da minha vida que a camisa no entanto veste.Tal patrimônio começa por suscitar a conversa, é um patrimônio que aproxima, desde que haja a coragem para se ser gentil. A gentileza do profeta não é tão somente   o patrimônio tangível pintado nas pilastras; ela é a gentileza mesma como virtude-patrimônio
Como mostrar /ensinar/comunicar tal patrimônio a não ser sendo-o, esforçando-me para ser gentil?Se eu não o for, estarei apenas vestido com uma camisa que cobre meu corpo.Mas se me esforçar por ser gentil, a gentileza vestirá também minha alma, já não haverá distância entre o patrimônio e minha vida, já não haverá distância entre o conhecimento e o objeto, pois não haverá mais objeto,haverá apenas um único processo ou devir com duas faces: uma produção de singularização aberta à produção do comum ,uma singularidade que se amplia através de um agente coletivo, não egóico.
Kant ,o homem da Razão,ordenava o imperativo: “Sigamos a Lei Moral!”.O louco-gentil nos oferta flores e nos pede apenas gentileza.Não gentileza com ele, pois ele já a possui. Ele pedia gentileza para com os outros e para com a gente mesmo, gentileza com o planeta,gentileza com o conhecimento,gentileza com o cosmos, gentileza com Deus ,incluindo a gentileza de parar de implorar para Ele tantas coisas.
“Gentileza” provém de “gentil”. Em tempos idos, dizia-se “gentil” o homem ( o "gentil-homem") que era nobre,guerreiro,que se pautava mais pelas virtudes do que pelas posses ou pela mera violência. A gentileza é virtude das almas nobres. Gentil era Cartola. Gentil, gente e generoso procedem de uma mesma raiz: "gens", que significa exatamente gerar - como a gentileza que gera gentileza.
     Ser gentil não significa ser "bonzinho".O vaidoso é "bom" com quem o lisonjeia,o avarento é "bom" com quem lhe deixa migalhas, o viciado é "bom" com quem lhe paga uma dose,o tirano é "bom" com os obedientes.Tais "bondades" e outras afins nada têm a ver com gentileza, pelo menos com a gentileza que nos oferta a  travessia ,a diferença, como virtude que deseja o encontro, o agenciamento, a alegria espinosista.
     O oposto da gentileza é a vileza. Há "bondades"  vis, mas nunca pode ser vil a gentileza.Quando  julga apoiado na lei ou na justiça, e não no mero desejo de vingança,o juiz presta gentileza ao condenado; quando o amigo critica a outro amigo apoiando-se na amizade, tal crítica é uma gentileza que fortalece a autenticidade do vínculo; quando o professor corrige uma conduta referenciado na educação, e não no mero poder, ele também exercita a gentileza com os alunos, e também consigo mesmo, de tal modo que,mesmo criticando, ele não será odiado.Tais gentilezas são como as flores do louco-poeta ofertadas para o despertar do afeto,para o intensificar da vida, ao passo que as "vis bondades" se assemelham a flores da "tristeza", como aquelas que adornam o féretro.
Gentileza gera gentileza, gentileza é a causa da gentileza. A gentileza não nasce de outra coisa,mas dela mesma, como uma fonte. A gentileza não nasce de se ter dinheiro, herança ou mero acúmulo de educação formal. A gentileza não nasce do "se  ter",mas talvez do dester,como diria Manoel de Barros: "dester as coisas" é possuir a si mesmo a partir de uma "visão comungante" que nos liga às fontes,mais do que às suas variantes.A gentileza expulsa o “capetalismo” de nosso corpo e da nossa mente.A gentileza é “ecologia mental”,como dizia Guattari.A gentileza nos salva de nós mesmos na medida em que, como ensina Espinosa, ela não vai na frente e obriga que a sigamos,ou vai atrás nos empurrando: ela "nos conduz pela mão", como tudo que verdadeiramente educa e liberta,desde que experimentemos e vivamos a necessidade das travessias,como aquelas que nos despertam os Daimons. Não travessias que vão daqui para lá,mas travessias que vão daquilo que conhecemos ao que precisa ser inventado,produzido, a começar por nós mesmos.
Alguns gostam de fraque, outros cobiçam  fardões. Confesso que amo essa simples camisa que veste não apenas meu corpo;ela também  veste as ações que faço inspiradas no ritornelo que o louco ensinou,o louco inocente, o louco-criança-sábio.
Algumas camisas nos fazem pertencer a tribos (a tribo é uma identidade ampliada) ; já os uniformes nos tornam peças de um universal que se quer homogêneo e,por isso,apaga a nossa diferença. Confesso que quando ponho a camisa do Gentileza sinto que é minha diferença que experimento ampliada,dado que diante dela nasce uma ponte, um espaço de travessia,do qual a gentileza é a virtude-pilastra.




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