terça-feira, 7 de março de 2017

a pequenina Musa...

Segundo o poeta Manoel de Barros, “quem se aproxima da origem se renova”. Assim compreendida, a origem não está apenas no passado. Agora, por exemplo, é meio-dia. A origem do meio-dia não é a hora que veio antes, as onze horas. A origem do meio-dia é o mesmo das onze horas e de qualquer outra hora. A origem de tais horas é o tempo. Não é o tempo que nasce das horas, são as horas que nascem do tempo. Renova-se quem acha o tempo , o redescobre, no seio mesmo das horas, e não alhures, além. E se renovará mais ainda quem achar o tempo vivo no meio das horas mortas...
O que vale para as horas vale igualmente para as palavras. A autêntica origem de uma palavra não é outra palavra. A origem de uma palavra é sempre um acontecimento. É preciso achar, na imanência de uma palavra, o acontecimento que a fez nascer. É preciso encontrar em uma palavra o seu sentido.
Sentido não é a mesma coisa que significado. Os dicionários semânticos fornecem o significado de uma palavra:  a uma palavra eles associam outras, exatamente aquelas que , semanticamente, definem  o seu significado. O significado vive preso em um círculo, eixo ou cadeia: a cadeia das palavras. Até onde se sabe, não existe cadeia que liberte, elas sempre aprisionam: aprisionam o corpo, as cadeias físicas; aprisionam a mente, as cadeias simbólicas.
Encontrar o sentido de uma palavra é libertá-la de uma cadeia, de um “acostumado”, diria Manoel de Barros. Libertar uma palavra é achar nela o acontecimento que ela expressa. O sentido nunca é uma coisa em si, ele é um elo, um agenciamento. O sentido liga a palavra ao acontecimento, e o acontecimento à palavra . O sentido está entre a palavra e o acontecimento .O sentido é bifacial: possui uma face externa voltada para o acontecimento, possui uma face interna voltada para o signo.
A etimologia pode ajudar-nos a achar o sentido de uma palavra, a sua origem. Não por acaso, “étimo” significa “origem”. Por exemplo, a palavra “museu”. Se ficarmos aprisionados à semântica, definiremos museu como um determinado lugar, um prédio que guarda e expõe coisas. Mas será apenas isso um museu? Creio que pode haver mais...
“Museu” provém de “Musa”. Originalmente, musa significa “conhecimento”. Mas é um conhecimento muito singular e especial. Tanto os poetas quanto os filósofos pré-socráticos evocavam as Musas para auxiliá-los na seguinte tarefa: vencer o esquecimento. Vencer o esquecimento daquilo que não pode ser esquecido. Assim, o conhecimento das Musas não é só intelecto ou razão, ele é , também, recordação: “re-cordis”, “trazer de novo ao coração”, como lugar do Afeto
O conhecimento do qual as Musas são a expressão é um conhecimento evocador de uma memória: memória do que não pode ser esquecido.Não é uma memória do descartável e substituível.Posso esquecer de coisas que fiz ontem, posso esquecer o celular no carro...Porém , não posso esquecer que sou, e que este "sou" é algo vindo a ser, aberto ao  futuro, isto é, àquilo  do qual não há memória.Assim,  não é uma memória apenas do que fomos, mas do que somos , à luz do que precisamos ser. É uma memória idêntica ao ser e ao pensar, na exigência do vir a ser, do se reinventar.
No mito, as Musas são filhas de Zeus com Mnemosine, a divindade ligada à memória. Zeus esposou Mnemosine para fecundá-la com algo que não deve estar apenas no passado, mas no presente. Zeus, como se sabe, é a divindade associada à Justiça enquanto virtude ética. A ética não pode estar apenas no passado, ela tem que estar presente, ser a motivação das ações presentes.
Zeus casou-se com Mnemosine após uma guerra. Uma guerra contra o que há de pesado, vil, torpe, baixo, apequenador...Tais características tenebrosas estavam vinculadas às divindades sem ética, sem beleza, sem virtudes, enfim, a ignorância em seus variados aspectos.
Dessa guerra Zeus se saiu vitorioso. Ele quis então co-memorar essa vitória, para criar dela uma memória. Co-memorar: criar memória. Todavia seu intuito não era apenas relembrar algo que se deu no passado e passou. Seu desejo era fazer lembrar e dar a conhecer o feito, o que se fez. Lembrar o que se fez para se continuar fazendo e a fazer, se preciso for novamente, para assim lutar e vencer a ignorância. Foi este acontecimento a origem do museu: lutar contra a ignorância, que apenas o intelecto sozinho não pode vencer. Não a ignorância em relação a datas e regras, mas ignorância acerca do que é a justiça, a ética, a beleza, a natureza, enfim, a vida. É esse acontecimento que dá ao museu o seu sentido, mais do que prédios e objetos.
Em grego, “fazer” se diz “poiésis”. Desse termo vem “poesia”. A poesia não é apenas versos, ela é a arma de uma batalha, na luta contra as mais diversas formas de ignorância, da qual a versão mais recente é a de um conhecimento que se quer “pragmático”, “técnico”, “não poético”.
Os poetas são fazedores. Um museólogo deveria ser, antes de tudo, um fazedor. Ele não faz as coisas que expõe, ele faz coisas com os objetos que expõe. E essas “coisas” que ele faz não são coisas materiais, são ações que devem fazer com que não seja esquecido o porquê de se expor algo em museus.
Na singela foto, vemos a bailarina em seu gesto eterno , imortalizado nas tintas. Na menininha, esse gesto renasce, outro. Ele renasce em seu corpo, em seu jeito: a criança interpreta, dançando, o que é dançar. Ela aprendeu a dançar, ensinando a si mesma que o pode fazer, para assim reinventar o dançar, à sua maneira.
 Quem é o “sujeito” ou o “polo ativo”  desse processo de conhecimento: o museólogo-museu, o quadro-objeto ou a criança? Ou não haverá sujeito, mas apenas agenciamento? Na teoria do conhecimento ortodoxa, da qual a museologia tradicional ainda é refém, o sujeito é o polo ativo, ao passo que o objeto é o polo passivo, inerte. Porém, a museologia tradicional apenas inverte os polos, e coloca o Objeto como o polo ativo, fazendo dos visitantes sujeitos inertes.
Agenciamento tem como raiz o termo “agente”. Um agente não é exatamente um sujeito. Mesmo um objeto pode ser um agente, desde que ele seja o agenciador para produzir agentes, isto é, seres ativos.
Na foto , o quadro não é apenas um objeto exposto, ele é o agente de um agenciamento. A menininha não é tão somente uma espectadora, ela é o agente de um agenciamento: ela viu, se afetou e reinventou o Sentido-Acontecimento do que a bailarina fez
Que a pequenina Musa, em sua inocência brincativa,  nos ajude a não esquecer o que precisa ser sempre lembrado, por mais morta que seja a hora, apesar do ar cinicamente triunfante da ignorância que nos cerca.






Nenhum comentário:

Postar um comentário