Toda ciência se torna poesia,depois de se ter tornado filosofia.
A poesia é a grande arte de construção da saúde transcendental.
O poeta é, portanto, o médico transcendental.
Novalis
Minha alma é
uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tange e range, cordas e harpas,
tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.
Fernando Pessoa
Mesmo doente,
nunca fui doentio.
Nietzsche
Mesmo doente,
nunca fui doentio.
Nietzsche
Encontra-se em Espinosa a definição mais original que há da filosofia. Espinosa foge daquela definição comum, quase clichê, da filosofia como “amizade ou amor à sabedoria”. A amizade e o amor, claro, são importantes, porém não são o ponto de onde deve partir aqueles que desejam filosofar, isto é, agirem sobre si mesmos. Há uma tarefa que antecede a experiência de tais afetos. É uma tarefa difícil, muito difícil. Ela é difícil porque não se a faz apenas teorizando ou lendo livros de filosofia apenas. É preciso viver, ter vivido. Viver não a vida de meros livros ou estudos, mas a vida no seu sentido mais comum e próxima, a vida que que todo mundo vive. Aquele que quer tornar-se filósofo tem que conhecer essa vida, seus labirintos, cantos de sereia, prazeres, dores, amizades, amores, angústias, sofrimentos, carnavais e funerais. O filósofo não nasce em uma montanha: se ele chega ao pico desta, foi porque desejou ir além do burburinho que vive abaixo da montanha. Tanto o pico da montanha quanto os seus baixios não estão fora do homem, estão dentro dele mesmo, e se revelam em suas palavras e ações. Há palavras e ações que elevam, há palavras e ações que rebaixam.
Pois
bem, Espinosa conheceu esse aspecto ordinário da vida, aspecto este que muda
muito pouco ao longo dos séculos, não obstante o avanço das tecnologias. Foi em
meio a uma crise existencial que Espinosa encontrou um remédio. Ele o chamou de
“emendatio”. A filosofia não começa no amor ou na amizade, ela se inicia em uma
emendatio.
Essa
palavra não foi muito bem traduzida nas versões correntes da obra na qual
Espinosa aborda esse tema. Em latim, o título do livro é Tractatus de Intellectus Emendatione. O filósofo tinha por volta
de 30 anos quando escreveu esse livro. Muito já se escreveu sobre essa idade,
até mesmo filmes já foram feitos ( “Trinta anos esta noite”, de Louis Malle). É
uma idade simbólica, fronteira entre a juventude e a vida madura. Nesse livro,
Espinosa fala do que viveu. Porém, o livro não constitui “memória”, “confissões”
ou algo do tipo. Espinosa não quer exatamente falar de sua vida pessoal. Sua
questão é outra, e concerne a todo mundo.
Ele frequentemente usa a
expressão “todo mundo sabe por experiência própria”. Todo mundo sabe por
experiência própria o que é a dor, a alegria, o prazer, a morte, a amizade, o
amor, o ciúme, a angústia, a perda, o ganho…Ou melhor, todo mundo acha que sabe
o que são esses aspectos da vida, de acordo com a experiência própria. Ao
contrário de Montaigne, por exemplo, que descreve com minúcias aspectos de sua
vida privada, como se tais experiências fossem únicas, Espinosa sabe que todos
já viveram o que ele viveu, cada um a sua maneira. Ele também deixa a entender
que escreve para aqueles que sabem que essas experiências são mais fadadas à
frustração do que ao contentamento. E se alguém abre um livro como o dele, é
porque sabe disso. E também quer um remédio, e não apenas erudição.
Curiosamente, o livro de
Espinosa aborda temas que todos conhecem, mas ele escreve sob o crivo de uma reserva, de um
cuidado, que expressa o respeito do filósofo pelas experiências alheias com
tais vivências. Por isso, sua reserva. O
que interessa ao filósofo não é descrever a “doença”, interessa-lhe mostrar,
sem sermões, como ele , a custa de quase perecer ele mesmo, conquistou o
remédio . Do doente nasceu o médico, quando este compreendeu a medicina. A
filosofia nada é se não for essa medicina.O autêntico médico é aquele que tem amor pela saúde (salut),
e não exatamente ódio à doença.
Algumas traduções vertem emendatio
por “correção” : Tratado para a correção do intelecto. Porém, emendar
não é exatamente corrigir. O professor corrige a resposta do aluno em razão de
uma verdade que ele sabe. Emendar não é isso…Algumas traduções optam pelo termo
“reforma”: “reforma do intelecto”. No entanto, “reforma” é um termo mais
inadequado ainda! Reformar uma casa, reformar um sistema de ensino, reformar um
sistema político…nada disso é , de fato, uma emendatio.
A melhor tradução para essa
palavra latina é o nosso vocábulo “emenda”: “Tratado sobre a emenda do
intelecto”. Porém, é preciso fazer uma observação. A palavra emenda é muito
usual no mundo parlamentar. Fala-se na “emenda a uma lei”, por exemplo. Mas
essa acepção jurídico-legislativa de emenda também não traduz o que o filósofo
chama de emendatio.
Primeiramente, seria preciso
torcer a língua, forçá-la a variar, praticar certa agramaticalidade,
para melhor traduzir esse termo latino. Literalmente, emendatio é emendação.
Emendatio não é um substantivo, é um verbo, uma ação, um processo. Mas o que é
uma emendação? E por que tal processo vem antes do amor e da amizade quando se
trata de praticar , como “saúde da mente", o conhecimento?
Talvez ninguém mais do que o
poeta Manoel de Barros tenha compreendido essa ideia. Ele empoemou tal ideia. Manoel o fez no poema intitulado Lacraia. No poema,
Manoel compara a lacraia a um trem. Os gomos são os vagões . A cabeça vai à
frente, como no trem a locomotiva.Quando menino, o poeta decidiu cometer uma
peraltagem: descarrilar a lacraia. Ele então a desmembrou, desfazendo-a em
partes. Quando o menino-poeta se preparava para ir embora, aconteceu algo para
o qual nada antes o preparara para ver. A cabeça da lacraia se voltou para
olhar uma parte que lhe estava separada. E esta parte passou a se mover indo em
direção à cabeça que a chamava, sem dizer nome ou palavra. As outras partes
fizeram o mesmo, “para se emendarem”: a força que age nessas partes também é
amor, afirma o poeta.
A lacraia viveu assim uma emendatio, uma emendação. Tal processo é
mais do que uma correção ou uma reforma. A emendação é uma recriação, um
refazimento, uma regeneração. As partes desejam ser o que eram, para serem
novamente uma unidade viva, singularmente. Em cada parte age um conatus,
uma força de existir. Embora cada parte tenha e seja um conatus, o conatus de
cada parte se esforça para ser de novo um todo. Um conatus que apenas quer ser
uma parte não é de fato um conatus, mas uma morte, um cancer.
Por isso, cada conatus
expresso nas partes diferentes é o mesmo conatus que pertencia à lacraia inteira. A emendatio é um processo de integração.
Cada parte da lacraia deseja integrar-se à ideia que eram, ao ser que eram.
Integrar-se nada tem a ver com uma adaptação a uma realidade pré-existente. O
todo que a lacraia era não existe externamente às partes que viviam nela. Esse
todo não é uma caixa vazia que as partes preencheriam. No entanto, o todo é
mais do que a mera soma das partes. Não é somando uma a uma de suas partes que a
lacraia renascerá. Cada parte é exterior à outra, mas não lhes é exterior o
todo: este vive imanente à cada parte, é ele o desejo que deseja a si mesmo, a
força que se quer. Somente voltando a ser um todo que a lacraia voltará também
a ser uma parte, parte singular, da natureza.
O intelecto ou mente por vezes
é uma lacraia desmembrada, cujas partes se perderam de tal modo do todo que
este nem mesmo é sentido ou desejado como ideia a ser buscada, feita. Na lacraia-mente assim desmembrada,
espírito e corpo já não se percebem como partes de um mesmo todo. Para Espinosa, emendar
o intelecto é integrá-lo em um todo do
qual o corpo é a parte que o completa, do mesmo modo que o corpo é parte de um
todo cuja outra parte é o intelecto. Não será mais a mente a querer dominar o corpo com morais hipócritas
e estéreis , tampouco será o corpo a dominar a mente por intermédio de
hedonismos narcísicos e escravizantes.
Somente com o corpo e a mente existindo como partes diferentes de um mesmo todo poderá
o homem compreender-se e agir como parte de um todo,incluindo o todo da humanidade, e não como um todo à parte. Cada
ser finito é um todo para suas partes, sendo ele mesmo uma parte de um todo
maior. E este todo maior também poderá ser parte de um todo ainda maior. O
processo de emendação somente termina quando alcançamos o todo que sempre é todo, que nunca é parte de
outro todo ainda maior. Frente a esse todo que nunca é parte de um todo
maior, tudo se mostra como parte singular dele, pois somente ele é de fato e
verdadeiramente um todo. Esse conhecimento , porém, não é alcançado apenas no
fim. Ao contrário, ele deve ser o primeiro conhecimento: é ele o remédio. A singularização
nasce de nos experimentarmos parte de um todo que não pode ser parte de outro
todo maior. Nada limita esse todo: tudo que é expressão dele se deslimita ou desabre , ao afirmá-lo. Conhecer esse todo também é autoconhecer-se: este todo não nos está apenas fora, ele age imanentemente a nós mesmos, como potência afirmativa da Vida.
O autoconhecimento nunca é restrito a um ego à parte, pois um ego que se coloca à parte coloca também à parte os outros egos, embora não tenham o mesmo sentido esses dois "pôr à parte". No primeiro caso, quando se trata do próprio ego, quer-se ser exceção. No segundo caso, que envolve o outro ego, pratica-se uma exclusão. Nasce assim o que Espinosa chama de "guerra civil" , declarada ou dissimulada, entre os egos, com seus infernos, seus "comparamentos", suas misérias , ódios e tristezas. Dois egos que se tomam à parte nunca agirão como partes diferentes de um mesmo todo, seja esse todo o amor , a amizade ou outra qualquer realidade.
Por exemplo, a justiça é um todo do qual são partes o juiz e o réu. O juiz não é uma parte à parte, um todo à parte da justiça. Mesmo tendo cometido um ilícito, o réu também é parte do todo que é a justiça: esta não quer vingança, quer justiça, quer a ela mesma, fazendo-se mediante suas partes - o juiz julgando a partir dela, o réu a recebendo para integrar-se à sociedade. O juiz criminal se torna mero instrumento de vingança quando coloca o réu como um todo à parte: à parte dos homens, junto às feras. Não existe juiz sem réu, nem réu sem juiz. Tampouco existem juiz e réu sem o todo da justiça, muito menos existem homens sem o todo da humanidade, nem humanidade sem o todo da Vida. O todo assim compreendido não é portador de contornos rígidos que o isolam e põe à parte. Por isso, o que sob certo aspecto é um todo, como a justiça, pode ser uma parte para um outro todo, um todo maior, que a integre como parte sua, como o todo da sociedade. É por isso que um sociólogo ,cujo campo de estudos é a sociedade, pode abordar sociologicamente a justiça ( ou o direito) enquanto parte da sociedade, embora ele não seja um jurista, que aborda a justiça ( ou o direito) enquanto todo. Mas não é verdadeiramente um jurista quem toma o direito como um todo à parte, ignorando o mesmo enquanto parte da sociedade.Quando as ciências enrijecem suas fronteiras, e isolam o que estudam de todo o resto, perdem-se de vista o horizonte, as conexões,os agenciamentos, as interdisciplinaridades.
A nosso ver, porém, a autêntica interdisciplinaridade não se realiza apenas com duas disciplinas "dialogando", pois isso seria trazer para o campo do conhecimento o modelo liberal contratualista, de indivíduos apenas se "associando", sem todo. A autêntica interdisciplinaridade acontece em razão de um todo , do qual as disciplinas agenciadas sejam uma parte.Ser uma parte singular de um todo assim considerado não é homogeneizar-se, mas afirmar sua diferença , compondo-se.Por esse e outros motivos, mata a filosofia quem a reduz à lógica das disciplinas científicas, pois a essência da filosofia é a interdisciplinaridade, como prática ética e teórica, e também política, de emendar as disciplinas isoladas, antes de tudo emendando a si mesma,para que as disciplinas e as práticas não se vejam como um todo à parte, querendo ser exceção , ao preço de excluir as outras, em uma guerra insana por mera "produtividade acadêmica", com suas recompensas em bolsas, financiamentos , "lideranças" e que tais.
Enfim, o autêntico autoconhecimento apenas o alcança quem se apreende como parte de um todo: um todo do qual tudo é parte, uma parte diferente.Somente sabendo-nos parte desse todo podemos também nos sabermos o todo de partes que são em nós, sejam essas partes ideias , afetos ou ações, por mais simples que sejam.
O autoconhecimento nunca é restrito a um ego à parte, pois um ego que se coloca à parte coloca também à parte os outros egos, embora não tenham o mesmo sentido esses dois "pôr à parte". No primeiro caso, quando se trata do próprio ego, quer-se ser exceção. No segundo caso, que envolve o outro ego, pratica-se uma exclusão. Nasce assim o que Espinosa chama de "guerra civil" , declarada ou dissimulada, entre os egos, com seus infernos, seus "comparamentos", suas misérias , ódios e tristezas. Dois egos que se tomam à parte nunca agirão como partes diferentes de um mesmo todo, seja esse todo o amor , a amizade ou outra qualquer realidade.
Por exemplo, a justiça é um todo do qual são partes o juiz e o réu. O juiz não é uma parte à parte, um todo à parte da justiça. Mesmo tendo cometido um ilícito, o réu também é parte do todo que é a justiça: esta não quer vingança, quer justiça, quer a ela mesma, fazendo-se mediante suas partes - o juiz julgando a partir dela, o réu a recebendo para integrar-se à sociedade. O juiz criminal se torna mero instrumento de vingança quando coloca o réu como um todo à parte: à parte dos homens, junto às feras. Não existe juiz sem réu, nem réu sem juiz. Tampouco existem juiz e réu sem o todo da justiça, muito menos existem homens sem o todo da humanidade, nem humanidade sem o todo da Vida. O todo assim compreendido não é portador de contornos rígidos que o isolam e põe à parte. Por isso, o que sob certo aspecto é um todo, como a justiça, pode ser uma parte para um outro todo, um todo maior, que a integre como parte sua, como o todo da sociedade. É por isso que um sociólogo ,cujo campo de estudos é a sociedade, pode abordar sociologicamente a justiça ( ou o direito) enquanto parte da sociedade, embora ele não seja um jurista, que aborda a justiça ( ou o direito) enquanto todo. Mas não é verdadeiramente um jurista quem toma o direito como um todo à parte, ignorando o mesmo enquanto parte da sociedade.Quando as ciências enrijecem suas fronteiras, e isolam o que estudam de todo o resto, perdem-se de vista o horizonte, as conexões,os agenciamentos, as interdisciplinaridades.
A nosso ver, porém, a autêntica interdisciplinaridade não se realiza apenas com duas disciplinas "dialogando", pois isso seria trazer para o campo do conhecimento o modelo liberal contratualista, de indivíduos apenas se "associando", sem todo. A autêntica interdisciplinaridade acontece em razão de um todo , do qual as disciplinas agenciadas sejam uma parte.Ser uma parte singular de um todo assim considerado não é homogeneizar-se, mas afirmar sua diferença , compondo-se.Por esse e outros motivos, mata a filosofia quem a reduz à lógica das disciplinas científicas, pois a essência da filosofia é a interdisciplinaridade, como prática ética e teórica, e também política, de emendar as disciplinas isoladas, antes de tudo emendando a si mesma,para que as disciplinas e as práticas não se vejam como um todo à parte, querendo ser exceção , ao preço de excluir as outras, em uma guerra insana por mera "produtividade acadêmica", com suas recompensas em bolsas, financiamentos , "lideranças" e que tais.
Enfim, o autêntico autoconhecimento apenas o alcança quem se apreende como parte de um todo: um todo do qual tudo é parte, uma parte diferente.Somente sabendo-nos parte desse todo podemos também nos sabermos o todo de partes que são em nós, sejam essas partes ideias , afetos ou ações, por mais simples que sejam.
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