quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

o nada e seu topete



O capitalismo é niilista em sua essência. Essa palavra vem do latim “nihil”, que significa “nada”. Ser niilista não é exatamente ser cético. O cético descrê  das coisas que a maioria crê. O cético vende caro sua capacidade de crer. Ou melhor, não a vende. O niilista não apenas não crê em nada, como tenta dissimular essa descrença com aparentes crenças que apenas simula: ele tem prazer em dissimular, em ser acreditado, para provar que o nada pode simular ser tudo. O capitalismo finge que é democrático, dissimula ser humanista, aparenta se preocupar com o bem-estar do povo...Porém, ele é niilista. E também o são aqueles que rezam seu credo.
Em geral, um niilista não é exatamente alguém deprimido, "dark" ou melancólico. Ao contrário, ele pode ser muito bem “animado”, extrovertido e risonho, ao menos na "superfície". Schopenhauer escreveu célebres páginas sobre o nada. Ele pensou o nada, filosofou sobre ele, quis pensá-lo. Hoje, porém, o nada do  niilismo está tão entranhado nos modos de vida que nos cercam que ele não é visto ou percebido, muito menos pensado. Como uma doença , ele se mostra apenas por intermédio de seus sintomas: vulgaridade, intolerância, violência, superficialidade, imediatismo, materialismo, cinismo.
       Um modo de vida niilista teme a solidão mais do que a tudo, por não suportar a companhia de si mesmo. Para fugir dessa companhia , vive-se full time on line. Um modo de vida niilista também foge do pensamento, que acaba confundido com mera introversão subjetivista ou "viagem mental recreativa". Um modo de vida niilista com "maior titulação"  confunde pensamento com mera erudição ou “produtividade acadêmica”; e há ainda aqueles que, mais pragmáticos, reduzem o pensamento ao mero "estudar" para um concurso: eles suportam dez, doze horas por dia lendo  leis e fórmulas que decoram, porém enfadam-se  com dez minutos de poesia ou filosofia.
Uma música niilista não é uma música que faz apologia do nada ( “Nirvana”). Uma música niilista é uma música que, enquanto música, é nada, mesmo que seja ouvida a volume altíssimo ou seus cantores façam sucesso e apareçam nos programas de televisão. Uma prática religiosa niilista não é aquela que faz do Nada um novo Deus. Ao contrário, uma religiosidade niilista fala muito de Deus, pede coisas em seu nome, constrói templos de ouro , porém a ausência de Deus é flagrada ali mesmo onde é dito seu nome, às vezes aos berros, como se isso nos fosse fazer acreditar, à força, que naquele berro há Deus.
      O capitalismo é, ele mesmo, um nada. Sabe-se que a quantidade de capital que circula no mundo corresponde a mais de cinco vezes o valor dos bens reais que existem no planeta, inclusive terras. E mais de noventa por cento desse capital está na mão de apenas um por cento da população.  Ou seja, se esse um por cento resolvesse, ao mesmo tempo, comprar bens, incluindo terras, eles comprariam o planeta terra inteiro e ainda ficariam faltando mais quatro planetas terras. Como não existem outras quatro terras, mas apenas uma única e singular terra, as outras quatro terras são , na verdade, a nossa terra mesma sendo morta ou destruída quatro vezes, aos poucos.O capital tem o potencial de destruir a terra quatro vezes, já as armas atômicas, armas do niilismo, têm o potencial de destruir a terra dezesseis vezes! Há um conto de Clarice Lispector no qual ela relata uma notícia que  lera nas páginas policiais de um jornal: um garoto que furtava comida em um supermercado foi morto com cinco tiros ao tentar fugir. O primeiro tiro o atingiu pelas costas, e ele caiu no chão já morto. O segundo , o terceiro e o quarto tiros foram dados por raiva mesmo, enquanto o quinto tiro acertou nela e em todos que ainda têm humanidade. As bombas atômicas destruiriam a terra uma vez por razões bélicas  e as outras quinze por puro niilismo em relação à vida e à existência. As bombas destruiriam imediatamente, ao passo que o capitalismo mata lentamente: "American first"...
   O capital  não tem alma, corpo, vida, desejo, sonhos. Mas ele precisa se incrustar nos desejos, nas vidas, para assim infestar tudo o que ele parasita. O capitalismo não é o comércio de bens e coisas. Ele é um abstrato, um coisa nenhuma, em cujo rastro de nascimento estão as guerras (sobretudo as mais covardes), a pirataria, o roubo, a escravidão, a pilhagem... O capital não é o metal da moeda, tampouco o papel de que é feito a nota. O capital é a nota de papel menos o papel, ele é a moeda de metal menos o metal. Ele é nada.
Curiosamente, capital deriva do latim “caput”, “cabeça”. O capital não é o braço que trabalha ou a mão que escreve ou pinta. Ele é a cabeça que calcula, que artimanha, que dissimula. Não é a vida integral do corpo, mas apenas a vida abstrata de uma cabeça que não sonha ou poetiza, apenas conta, contabiliza, maximiza. É por isso que o capital fala tão bem a linguagem dos números e quantidades, e avilta tudo o que toca, sobretudo as coisas relativas ao espírito e às artes.
  O capital não tem nome. O dólar, o euro, o real....não são “o” capital. Essas moedas têm nome em razão de seus respectivos enraizamentos na história dos povos onde nasceram. É um povo que dá nome à sua moeda, é o povo o seu genitor. No entanto, quem deu nome ao capital? Quem é seu pai? É com notas ou moedas que o povo compra o leite e o pão. No mundo do capital, porém, tais coisas viram “commodities”, coisa nenhuma, pura nada da especulação numérica, mas que pode arrasar economias inteiras, levando seus povos à fome.
    "Comunismo" traz em seu nome a realidade da qual ele extrai seu sentido: "comunidade", "comuna". O mesmo ocorre com "socialismo", que enfatiza , ao menos em seu nome, o "social". E o "anarquismo" designa igualmente algo real do qual ele quer ser a diferença, uma diferença também real: "an-arqué", "não comando" ( em sua essência, o anarquismo não se opõe exatamente ao comando em si, mas contra o comando meramente externo, que venha de fora e nos governe, seja o comando do Estado , ou o comando da doxa, ou das "cartilhas" , enfim, de tudo o que se impõe como "acostumado" e "gramática": nesse sentido, o anarquismo não é bem "não comando", mas "comando diferente", no sentido de ser um comando que não reprime ou oprime,  singulariza). "Democracia", por sua vez, traz o termo "povo" (demo) como sua razão de ser. Porém, quanto mais não democrática é uma ideologia política ( ou econômica), mais aquilo que ela designa tende ao abstrato, como a  tal cabeça ("caput")  esquizofrenicamente separada do restante do corpo, sobretudo do coração.Além do capitalismo, podemos citar ainda o "nazismo", cujo nome não designa nada, pois é um mero acrônimo das iniciais do partido de Hitler. O mesmo se aplica ao termo "fascismo", oriundo do italiano "fascio", que significa "feixe". 
Por não ter nome, o capital  sempre ambiciona mudar de designação  as coisas que ele explora, para assim camuflar essa exploração. O “trabalhador”, por exemplo, já não é mais assim chamado, agora ele é o “colaborador”. Ele colabora com quem? Com o capital, que não colabora a não ser consigo mesmo. Co-laborar: laborar ou trabalhar junto. No entanto, o capital não labora! Engana-se ´profundamente quem se intitula “dono do capital”, pois o capital não tem dono, ele é apátrida, inumano, avital. Como alguém pode querer ser dono do nada? A não ser que dê ouvidos a Mefistófeles, esse paraninfo de todo nada.
O capital sabe tanto que é um  nada que agora ele se arvora ter alma, e quer que a gente acredite nisso! E há os que acreditam...Fala-se agora na “Alma da Empresa”. Os neoplatônicos, tenazes contempladores da “Alma do mundo”, morreriam de rir se lhes dissessem que um dia os homens dariam alma a tais coisas....Também morreriam de rir os xamãs, para os quais apenas as coisas sagradas podem ter alma. Ou seriam agora as empresas o novo espaço sagrado do Sacrossanto Mercado? Contudo, se uma empresa tivesse personalidade e alma, seu comportamento se aproximaria mais de uma alma doente do que de uma alma sã. Pois as empresas são paranoicas, não confiáveis, predadoras ( veja-se a esse respeito o documentário Corporation ). 
Na filosofia, Nietzsche e Heidegger foram aqueles que melhor diagnosticaram esse mundo doente. Talvez Marx tenha subestimado o monstro ao não perceber que não se luta contra ele ao preço de abolir a filosofia, ou seja, o pensamento. Marx achava que a filosofia era inútil para lutar contra o capital, apenas as armas o podiam. Contudo, um dos negócios mais lucrativos desse monstro é canalizar os ódios , deixar as pessoas acéfalas e muni-las com armas cada vez mais mortíferas.
Há uma questão metafísico-existencial no cerne do capitalismo, e não apenas uma questão sociológica ou econômica, embora questões dessa natureza também estejam envolvidas e tenham sua relevância.  Para Heidegger, o nada que o capital é não é o nada metafísico, como alteridade do ser. O nada do capital é o nada que ganhou um ser: o ser nada. E esse ser-nada se fortaleceu tanto que os homens “esqueceram” o que é ser e  existir. É o nada-capital que diz como se deve ser e viver: através de suas propagandas, doutrina-se que ser e existir é ter, consumir. Mas o que hoje é desejado como o “último tipo”, amanhã já será nada, sendo preciso então consumir um novo modelo do nada que ontem era tudo.
Diferentemente, o nada do poeta é o dos “nadifúndios”.  O nadifúndio é a terra e o chão das coisas inúteis, que “não se podem comprar ou vender no mercado”. O nada do capital é o do latifúndio das coisas “úteis”, porém descartáveis, que amanhã já serão sucata.

Os homens que servem ao capital  são dotados de uma estranha feiura, uma feiura existencial , a qual eles tentam esconder, dos outros e de si mesmos,  com uma obsessiva  “estetização” das  partes visíveis de seu corpo. Neles, porém, o belo é sempre de mau gosto... Um desses loucos muito bem pagos  enfeita seu “caput” com um topete narcisicamente  esculpido ( que dissimula um nada de cabelo abaixo, bem como um nada de ideias mais abaixo ainda). Porém, basta ele abrir a boca para nos lembrarmos da advertência de Nietzsche, mais atual do que nunca: “Vai  encontrar-se com aqueles homens? Não se esqueça de tapar as narinas do seu espírito...”.

                                                   ( "American first"...)



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