domingo, 2 de outubro de 2016

Orfeu, Noel, Cartola

A importância de uma coisa não se mede com fita métrica 
nem com balanças nem barômetros etc. 
A importância de uma coisa há que ser medida 
pelo encantamento que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros

Em grego, “Eurídice” não é apenas um nome próprio, o nome de uma pessoa. Na “Sabedoria dos Mistérios”, Eurídice é um dos nomes da alma. É um paradoxo a união dos termos “sabedoria” e “mistério”. A filosofia acadêmica separou esses termos, os fez inimigos. Sabedoria, propala o acadêmico, é o que desfaz todo mistério. A razão é loquaz e calculadora. É discursando teoricamente , ou matematizando quantitativamente, que a razão crê vencer o mistério.
“Mistério” e “místico”  têm uma raiz comum: “mys”, que significa “fechar a boca”. Não  se trata apenas de fazer silêncio. Os estoicos diziam que é mais fácil fechar a boca para que nela não entre alimento ou bebida em excesso do que fechá-la para impedir que por ela saia a palavra incauta. Espinosa ensinava, por sua vez,  que muitos reis sabem controlar, mandando, em legiões; porém , não são poucos os reis que perdem seus reinos por não saberem mandar nas palavras que saem de suas bocas...
“Mys” significa fechar a boca que apenas tagarela, que tão somente emite opinião. O místico fecha essa boca reativa, para assim desejar abrir outra boca . Esta boca , que não é apenas a do corpo,  usará também as palavras, mas não dirá apenas palavras no que dirá. Os místicos também fecham aquela boca prosaica para que a  boca que  canta  possa cantar.
Orfeu é o iniciador desse canto místico, expressão cantada da Sabedoria advinda dos Mistérios. Pitágoras, um certo Platão, Plotino, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e, em muitos aspectos, Espinosa, todos esses poetas do absoluto encontram em Orfeu aquele que lhes abriu o caminho , ao vencer a morte, estando vivo.O Saber dos Mistérios não vem de livros: somente o aprende quem soube o que é a morte, sem ter morrido. E dela retorna, mais vivo. 
      O simbolismo de Orfeu repousa na concepção "hermética" ( relativa a Hermes) acerca da morte e renascimento de Dioniso. Ao ver  Dioniso  ser despedaçado pelos Ciclopes, que eram divindades violentas, ruins, ciumentas, invejosas, maledicentes, vingativas... enfim, "más",  Zeus lança um raio . Antes que os corpos de Dioniso e os Ciclopes fossem totalmente incinerados, Hermes, o deus mensageiro, retira o coração de Dioniso e o guarda, mantendo-o vivo. Das cinzas dos corpos de Dioniso e os Ciclopes misturadas nasceram então os homens. O homem é pó, cinza, naquilo que tem de igual aos Ciclopes. O homem vence essa condição  quando faz de seu coração o mensageiro de suas mensagens, sejam em palavras ou ações.E é dessa parte que foi salva, e salva,que vem a poesia que Orfeu comunica, cantando.
    Orfeu  cantava porque queria dessa forma expressar seu afeto por Eurídice: esta era, ao mesmo tempo, aquela para quem o poeta cantava e o próprio canto. Quem ouvia Orfeu cantar  achava em si mesmo sua própria Eurídice, pois ela está em tudo em que uma alma desperte, mesmo na planta, mesmo na fera. É para a alma que se canta, e é tendo uma que se pode cantar, despertando-a nos outros.
Quando Eurídice , morta, vai ao Hades,  Orfeu para de cantar. Mas o poeta não se resigna: ele resolve ir até onde nunca foram antes  os homens, tampouco os deuses olímpicos. Ele decide ir ao Hades, ao Inferno. O poeta tem a coragem de ir à morte buscar sua vida que aquela aprisionou.
Diferentemente do “rio de Heráclito”, que não tem começo ou fim, e nele se entra apenas pelo meio, pelo fluxo,pelas margens, o rio que leva ao Hades nasce aqui, no tempo, e morre às portas do Hades: ele tem apenas um sentido, sempre vai e nunca volta.
Quando chega ao Hades, o poeta vê que nesse lugar há apenas uma noite absoluta. Nesse lugar escuro sua Eurídice vivia como sombra. O escuro nada tem de mistério.  Mistério quem tem é  a palavra que canta . Não é a morte o  mistério, o  mistério é a vida.
Então, em meio àquele escuro, o poeta começa a cantar. Ninguém sabe ao certo  o que Orfeu cantava. Talvez o poeta cantasse  o que os autênticos poetas sempre cantam, de tal modo que é ouvindo um Cartola ou um Noel que podemos , através deles, ouvir o que cantava Orfeu.
É cantando, e não chorando ou lamentando, que o poeta reencontra Eurídice, sua alma. Se lágrimas ou dor existem no poeta, são lágrimas e dor choradas e sentidas também pelas palavras, de tal modo que mesmos tais afetos o poeta transforma em canto.
Hades, o deus daquele lugar, concede então ao poeta o direito de levar Eurídice de volta. Hades somente disse uma coisa, que não era bem uma ordem, era um sábio conselho: “você vai à frente, Eurídice irá imediatamente atrás de você. Não se vire para olhar para Eurídice enquanto não estiverem totalmente fora daqui.”
O poeta então começou seu retorno ao mundo dos vivos, com sua alma atrás de si. No entanto, inseguro e querendo conferir se Eurídice estava de fato ali, o poeta olha para trás....Ele soube então que Eurídice ali estava, porém a alma sucumbiu a esse saber que queria objetificá-la. Ela se objetifica, vira coisa palpável: uma estátua de sal que, no entanto, se desmorona.

Um salto para o Hades (Tampa de tumba, Itália meridional, 480 a. C.)

Tudo que obtemos mediante uma arte, e não por herança ou aquisição, tal realidade existe apenas por conta de uma graça, de uma espontaneidade, que depende mais de nós mesmos do que das coisas externas. Assim, tais realidades lúdico-poéticas, que é onde vive a alma, logo desaparecem e morrem se quisermos provar sua existência por objetificantes aferições.  
Há um conto russo no qual o amante, ainda deitado na cama pela manhã, vê a amada sentada diante da penteadeira penteando-se e cantarolando baixinho uma canção . Ela apenas se olha, não se julga ou se mede , tampouco se compara a alguém que não esteja ali, que lhe fosse mais bela ou mais feliz. Ela está plenamente ali, naqueles gestos daquele corpo, não sendo apenas um corpo, porém. O amante fica paralisado contemplando, como se estivesse diante de uma obra de arte a qual nada mais faltasse - em cores, formas, vida.A amada se percebe intensamente olhada, vira-se  e, assustada, pergunta: “O que foi!?”, parando de fazer o que inocentemente fazia.Parecia que o amante havia enlouquecido, olhando-a. De certo modo , não deixa de ser loucura, uma "loucura sã"  , ver no ínfimo cotidiano o extraordinário sem parâmetro, que é sempre único, uno, e nunca se separa de si mesmo; e  que só se oferece como revelação súbita, que dá o que pensar, embora não seja intelectual apenas. Ele então com o mais vivo desejo lhe pede, como se quisesse o bis de uma obra-prima: 
-Repete o que você estava fazendo!...
-Mas o que eu estava fazendo!?
-Você estava se penteando, se olhando, cantarolando...
-Era assim que eu estava fazendo?, tenta a amada repetir o que acontecera. 
-Não, não é assim que era..., diz o amante, saudoso do que foi sem que disso houvesse memória. 
Por mais que a amada tentasse, ela não conseguia repetir , de forma programada, o que fizera de forma espontânea, na unidade viva de seu corpo e espírito. Ela vivera a vida sem estar separada da vida...É a   consciência que separa a vida da vida, sendo que a vida que se separa perde o sentido da vida, pois este sentido não é consciente.
O amante percebeu então que experimentara o que os religiosos chamam de “graça”, uma espontaneidade que não se  explica por outra coisa senão por si mesma, como uma dádiva idêntica à própria existência que vivemos, sem que haja uma separação ou hiato entre o que vivemos e o que sentimos e pensamos. A graça acontece não quando a gente quer, não podemos exigir que recebamos o que somente podemos receber por dádiva e graça. E aquilo que assim recebemos sempre se parece com nada, se o compararmos com tudo o que até então pensávamos ser a realidade.

 Não é pelo querer que se alcança esse estado. O querer nos afasta dele. Quando vemos a presença da graça, quando somos sua presença, achamos o que dizer cantarolando, como o fizeram Orfeu, Noel, Cartola.













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