quarta-feira, 7 de setembro de 2016

a travessia e o salto

Eu tinha por volta de seis ou sete anos, não mais que isso. Fui com minha família a Sepetiba em passeio dominical, coisa simples , bem simples. De repente, íamos atravessar uma larga rua. Na verdade, olhando hoje para trás não sei se a rua era de fato larga ou se assim me parecia, tendo em vista a criança que eu era. Lembro-me de estar de mãos dadas com meu pai. Ao nosso lado, minha mãe segurava as mãos de outros dois irmãos menores. Olhei para a rua com olhos que meus pais não sabiam que eu tinha. Nem eu mesmo sabia que  tinha tais olhos, pois somente sabia da existência deles quando eles surgiam e me tomavam e impunham que eu fizesse o que eles vislumbravam, "transviam".  Com esses olhos de rebeldia, de insubmissão, olhei para o perigo diante de mim, e , sem medo, vislumbrei sua travessia. Acho que foi a primeira vez na vida que compreendi o que é ter uma ideia. Esta não nasce de poses ou planejamentos bem calculados. Ter uma ideia não é só imaginá-la, mas pô-la em prática, torná-la real, mesmo sob todos os riscos. Uma ideia faz nascer olhos que vislumbram o que ela quer. Então, vi a outra margem da rua como a me desafiar. Nasceu em mim um desejo de independência, um desejo de enfrentar o perigo do qual a mão de meu pai queria me proteger.
Sem hesitar, larguei a mão dele e iniciei minha travessia, meu único apoio eram minhas pernas. Algo em mim talvez quisesse mostrar ao mundo que eu já podia enfrentar uma travessia. A mão do pai é a mão da lei, da autoridade, do interdito. É a mão que oferece a segurança, mas ao preço da obediência. Ousei largar dela e fazer a travessia. Fui rápido e firme; estava um pouco nervoso, mas feliz; não me pude conter: eu sorria. Quem é livre se alegra.Deixei atrás de mim a família, a segurança e, livre, encontrei-me pela primeira vez no meio de uma rua, a rua que eu atravessava com minhas próprias pernas. Queria alcançar a outra margem, aquele horizonte próximo.
Porém, subitamente surgiu um carro não sei de onde. Era um carro todo preto, pesado, hostil, sem rosto; ele vinha para cima de mim como se eu fosse um intruso àquele território. Ele parecia querer me  punir pela transgressão que eu ousara.A liberdade tem seus obstáculos, seus riscos. Mas eu já estava no meio de minha linha de fuga. Não há linha de fuga sem  coragem e esforço, como dizia Espinosa. A linha de fuga mais necessária e libertária não é aquela na qual se foge para um lugar ermo ou isolado; a linha de fuga mais singularizante é aquela que se faz no meio dos trajetos costumeiros, quebrando a lógica acostumada dos códigos e roteiros prévios. Porém, primeiro que tudo, é preciso largar a mão daquilo que , mesmo querendo sua proteção, impede que você , com suas próprias pernas, faça a travessia que lhe conduza não a pódios ou centros, mas a margens.
O carro sisudo  vinha para cima de mim, como um abutre. Parecia que eu não tinha a menor chance de escapar , era um monstro metálico contra um menino.Foi então que dei um salto como nunca dera antes. Saltei mais do que metros, saltei mais do que um pedaço de rua, hoje sei. Creio que somente Espinosa poderia entender aquele salto que nem eu mesmo sabia que podia, pois o filósofo dizia : “Ninguém sabe o que pode o corpo”.
Foi minha alma arteira que fez minha mão abandonar a segurança do já conhecido; mas foi meu corpo que , saltando, pôs minha liberdade a salvo, mais viva que nunca,  em um chão novo sob mim, fazendo-me pousar na outra margem , a mesma que me desafiou a alcançá-la com minhas próprias forças.Saltei, alcancei a outra margem: a morte passou perto, fria e apressada...
Como pousar em um chão novo precedido pela ousadia? Como eu mesmo ser o apoio do ato que ia além de mim? Minhas pernas não sabiam, tampouco qualquer outra coisa em mim sabia. Eu não tinha experiência de tais voos, de tal "voar fora da asa", de tal modo que cai do outro lado sem forças suficientes nas pernas para sustentar a altura em que fui: cai no chão e rolei...
Eu ainda estava no chão quando minha mãe e meu pai se acercaram, juntamente com algumas pessoas que viram a cena. Minha mãe não estava nada contente com minha atitude, mas não brigou comigo, tampouco meu pai. No rosto deles vi apenas uma expressão que nunca vira antes, um misto de surpresa e de orgulho, mas acompanhada de um traço de amorosa preocupação com aquela atitude que me punha longe das mãos deles e de toda segurança estável e sensata, e perto da margem que somente se alcança saltando o salto que desafia nossa capacidade de saltar, pondo-a à prova.





Marc Chagall : Au-dessus de la ville, 1924.


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