terça-feira, 19 de julho de 2016

manoel de barros & deleuze: agenciamento e linha de fuga




                                   O poeta é aquele que vai até  à infância e volta:
e aquele que vai não é o mesmo que retorna.
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Manoel de Barros

(trecho do livro)

Quando Nietzsche dizia: “Detesto tanto seguir como ser seguido: para me acompanhar  aonde vou é preciso aprender a amar andar ao lado”, esta regra prática que não é categórica, mas cheia de categoria, anuncia um programa nômade de percurso sobre a Terra - a extemporânea. Somente podemos percorrer a Terra agenciados, andando ao lado de nossos intercessores.
A própria filosofia é inaugurada por esse “andar ao lado”. Pode-se ver esse “andar ao lado” imortalizado em Rafael, o grande mestre da arte renascentista, quando este pintou um afresco que se tornou famoso. A obra se intitula A Escola de Atenas.


Inúmeros pensadores e filósofos aparecem nela, embora muitos deles tenham vivido em épocas distintas. Na verdade, não se trata de um quadro histórico ou cronológico, mas de uma apreensão artística das múltiplas possibilidades e perspectivas heterogêneas que compõem o pensamento: sob a pintura, como seu “chão” ilocalizável, estende-se,infinita, a Terra.
Não obstante a multiplicidade flagrante, um ponto se destaca no afresco: em seu centro, entregues a um diálogo cortês, mas no qual se percebe um ar de confronto, encontram-se Platão e Aristóteles. Platão já não anda à frente de seu brilhante discípulo, nem este segue mais os passos de Platão.Platão veste um vermelho sobre púrpura. O vermelho é a cor da incandescência da alma, típica da alma inspirada de um poeta. Rubro é Eros. O vermelho também  é a cor do arrebatamento de uma paixão contra a qual não se pode lutar, a qual os gregos chamavam de "mania", termo que pode ser traduzido por "loucura". Não a loucura meramente resultante do desagregamento da vida psíquica. Diferentemente, a mania filosófica, como insana sabedoria, nasce do contágio da alma com algo que a  arrasta para fora de si, e é neste fora de si que ela, no entanto, se acha e se encontra.Platão veste rubro sobre púrpura. O púrpura, mistura do vermelho com o azul, traz a paixão daquele e a paz deste, e expressa a iluminação mística. Já Aristóteles veste azul sobre  marrom. O azul de Aristóteles é o de um céu enquanto cobertura plácida sobre o marrom-terra.Na borda do azul há tecituras e bordados, feitos com o capricho da beleza.São flores, mais do outono do que da primavera. O outono da razão veste o filósofo que desabrocha.Platão está descalço , seus pés ainda se movem.Os pés descalços são símbolo do desapego :  nesses pés descalços  já se anuncia São Francisco. Aristóteles calça uma sandália bem trabalhada , fruto da  mão humana.Seus pés não andam, estão firmemente no chão como colunas de um sistema.
Platão, já ancião, segura com a mão esquerda um exemplar de sua famosa obra: o Timeu . Chama-nos a atenção a posição na qual se encontra o livro. Platão o segura em posição vertical, como se o livro fosse a cópia do gesto que Platão faz com a mão direita: com a mão e o livro, com o corpo e o espírito, o filósofo aponta para o céu (reproduzindo o gesto que fizera seu mestre Sócrates antes de ingerir a cicuta). Ao seu lado, encara-o o discípulo, já entrando na idade madura. Ele também segura um livro com a mão esquerda: a sua Ética. O livro, disposto na horizontal, acompanha o gesto da mão direita de Aristóteles:este está com a mão espalmada, como a dizer que no plano horizontal é que se encontra a motivação da filosofia, e não apenas no céu. Em suma, a filosofia de cada um se encarnou em suas distintas maneiras, e fez-se ver nos gestos que o corpo de cada um desenhou.
Todavia, o verdadeiro centro da obra não é Platão, tampouco Aristóteles ( ou qualquer outro filósofo que aparece na representação). O centro do afresco, o seu ponto de fuga, é o intervalo entre os dois filósofos. O centro do quadro é a divergência. É esta que constitui a essência da filosofia como exercício plural do pensamento. Entretanto, este centro nada tem a ver com uma suposta neutralidade.Seu lugar, ao contrário, é o da mais afirmativa tomada de posição.  
Por isso, a filosofia não possui uma identidade: ela é exercício da diferença. Quando simplesmente dizemos: “Platão é diferente de Aristóteles” ou “Marx é diferente de Hegel”, ainda não compreendemos de fato o que é a diferença que constitui a filosofia, uma vez que a tornamos refém de duas identidades que se opõem.
Por esse motivo, a verdadeira diferença não é oposição ou rivalidade, mas afirmação e criação de novas possibilidades que ainda não têm identidade. 
Não se devém platônico ou aristotélico, nietzscheano ou kantiano. Pois tornar-se alguma coisa, assumir uma identidade, é deixar de devir. Somente devimos verdadeiramente quando, deixando de ser o que somos, tampouco com um determinado filósofo nos identificamos, mas nos tornamos de nós mesmos diferentes,encontrando na filosofia essa possibilidade, fazendo dessa possibilidade nós mesmos.
Buscar essa diferença não é isolar-se, mas conectar-se com uma multiplicidade, e assim aprendermos com a filosofia que , nela mesma, não é Platão ou Aristóteles, Nietzsche ou Kant, Hegel ou Marx, sim ou não, eu ou outro, corpo ou alma, vida ou morte, tempo ou eternidade, arte ou natureza, espírito ou matéria.
Na pintura, o ponto de fuga expressa aquilo que não pode ser representado, uma vez que ele aponta para uma profundidade infinita, que vai muito além da cena pintada em primeiro plano. Chamamos de linha de fuga a diferença que constitui a filosofia. Como linha de fuga, a filosofia é o fundo que torna possível o primeiro plano onde encontramos as doutrinas e os filósofos diferenciados, com suas respectivas identidades e aparatos acadêmicos. Filosofar é partir desse fundo, instalar-se nele, e vivê-lo como potência que vai além de nossas vidas em primeiro plano .
O primeiro plano somente se conecta com o fundo quando dele fazemos partir uma linha: não uma linha que se fecha em contornos, mas uma linha que possibilita percursos.
Como linha de fuga, a filosofia é uma linha que vai de nós mesmos àquilo que ainda não somos, e para o qual nos impele nosso pensamento e desejo conjugados. A linha vai em direção à diferença. Por conseguinte, a linha não existe de forma pronta, como um trajeto no espaço. Ao contrário, ela só existe enquanto criada: ela é um sentido no tempo, e se abre a infinitas direções apenas virtualmente esboçadas.
A filosofia é o fundo, diferença pura. Mas o filosofar é a linha, ato de criação. Linha de fuga é a criação que tem a diferença como sua direção multiorientada.
Por esse motivo, a diferença não é um porto ao qual se deve chegar, mas sentido que torna real um percurso de singularização, contra todas as formas de poder padronizante, que retiram da vida seu fundo, seu devir , seu deslimite ─ para reduzi-la às atuais formas dominantes de vida em egóico primeiro plano, com suas disputas e rivalidades; onde a imitação toma o lugar da criação, enquanto que as diversas formas de clichê são vendidas pela mídia com o rótulo da diferença.
Andar ao lado: agenciamento. Todavia, o “andar ao lado” de Platão e Aristóteles durou apenas o ínfimo instante que Rafael imortalizara em sua pintura, uma vez que em cada um desses filósofos a vontade de ser seguido superou o desejo de andar ao lado.
Encontram-se em Gilles Deleuze as coordenadas de uma filosofia do agenciamento, uma filosofia do aprender a andar ao lado de nossos intercessores.Curiosamente, a expressão “intercessor” remonta à Bíblia, e designa aquele que “abre as portas do céu”. Um céu que não é apenas exterior, mas também interior. Em Deleuze, o Céu é uma das imagens da Terra. E o intercessor que nos leva a ela pode ser inúmeras coisas: não apenas um livro de filosofia, uma música, um poema, enfim, uma obra de arte também podem sê-lo - com a condição de aprendermos a andar ao lado desses intercessores, com as pernas de nosso pensamento e de nossa sensibilidade.

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