terça-feira, 31 de maio de 2016

poesia é celestar as coisas do chão

“Poesia é celestar as coisas do chão”.
           Manoel de Barros

 Às vezes, há coisas que desejamos expressar que não cabem de forma exata no tamanho limitado de uma palavra já dita ou escrita. É preciso, então, inventar uma palavra nova para ser o verbo de um sentido que pré-existe a gramáticas e línguas.Para o poeta,  antes da palavra vem uma visão, uma intuição, um tocar com os olhos uma realidade ainda não pronta, não "mentada". E os olhos que tocam tal realidade também são por ela tocados.
Quando o recém-nascido abre pela primeira vez seus olhos também nascidos, ele não vê objetos ou coisas das quais ela saiba nome, importância, objetividades. De nada ele tem memória ou recordação. Ele também não tem expectativas ou pressuposições, tampouco sabe o que é sombra ou escuridão. Ele não tem opinião ou vaidades, nem julga as coisas de acordo com um Modelo de Verdade.Não há para ele um já visto, dado que ainda não foi inaugurado o seu ato de ver. Na interior da placenta a matéria orgânica lhe plasmou dois olhos. Mas os olhos não são, eles sozinhos, o ato de ver. Os olhos não são o olhar. Para nascer o olhar não basta que as pálpebras descerrem os olhos físicos, pois o olhar vem de fora do olho, ele vem da luz cósmica que, penetrando os olhos, abrem os olhos da alma também, que somente  então desperta :abrindo seus olhos e espírito, o recém-nascido vê a luz do mundo, o mundo sob a forma de luz. E essa primeira luz que entrará em seu espírito comporá o enredo de seu primeiro sonho, na noite de paz que ainda não conhece o medo. Mesmo quando os olhos crescerem e forem do adulto já sem sonhos, reencontrará tais olhos o seu nascer esquecido, quando nas coisas que vê agora souber ver a luz do mundo, que apenas são capazes de ver olhos recém-nascidos.
A luz do mundo não é o mero resultado da soma das lâmpadas acesas pela eletricidade engendrada pelo engenho humano. Ela também não é o produto da soma da luz queimante de todos os sois e estrelas. Pois a luz do mundo também é feita da luz ´da primeira ideia que vicejou na mente nua da criança. A luz do mundo se converte, dentro da mente infante que a vê, em sua primeira ideia:  ideia luminosa que lança o espírito virgem para fora, para assim explorar o mundo Por isso,  os próprios olhos que a veem fazem parte da luz do mundo. E permanece generoso, e sem medo de todos os escuros,  quem mantém sempre acesa em seus olhos essa luz. É essa luz que inaugura o ver. E é ela que reinaugura o ver para quem a sabe ver como luz poética que ilumina as coisas não apenas por fora, mas principalmente por dentro.
 No verso citado, primeiro o poeta viu, com  olhos renascidos, uma ideia a lhe nascer: a ideia do “celestar”. Depois ele buscou uma palavra para ser o que ele viu, para despertar nos outros, quando lida, o ver novo que ele viu. O ver se torna novo quando vê o que nunca viu, tal como os olhos do recém-nascido que se abriu pela primeira vez.
O que é celestar? Antes de tudo, celestar é um verbo. Celestar é , literalmente, "tornar celeste, céu". Celestar é um verbo infinitivo que expressa o infinito. Sartre dizia que “o nada nadifica”. O poeta , em sua inocência de recém-nascido, afirma que a poesia  pode celestar. O sujeito desse verbo é o infinito, não é a pessoa do poeta. A poesia é fala que diz esse verbo, e ensina que tudo pode ser matéria para  sua conjugação: até mesmo as coisas do chão, para assim ver, quem sabe,  "um chão de estrelas".
 O que são as coisas do chão? Tudo o que tem peso, tudo o que é tangível. Mas também as rotinas, os haveres, as percepções cotidianas e tudo aquilo que cremos ser como é e não poder ser diferente.Celestar é ver diferente o que não se acreditava poder ver diferente.
 Celestar as coisas do chão também é desfazer a oposição entre sagrado e profano, não em proveito do sagrado, reduzindo o profano a ele, mas ver o diminuto com olhos de amplidão (sub specie aeternitatis, diria Espinosa). O celeste não precisa ser celestado, pois ele já é celeste; o que precisa ser celestado é o chão. Orações sobem ao celeste, mas é nos olhos do poeta que elas descem para transfigurar o mundo , celestando-o. O chão celestado se torna princípio de voo, de múltiplos voos: “ no achamento do chão, diz o poeta, também foram encontrados as origens do voo”.

Vermeer celestou , com tintas, o simples ato da leiteira, de tal modo que o leite que verte da jarra tem o  branco da via láctea, e o pão  servido na modesta mesa nada deve ao sublime pão dos anjos: através dos vidros translúcidos da janela, entra a luz do mundo que revela, em sua eternidade, o singular acontecimento.

( (Vermeer, A Leiteira, óleo sobre tela, 1657-1658, Rijksmuseum)







(Exposição sobre a obra do poeta realizada no Colégio Santo Inácio, enviado gentilmente por Nilcea)



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