sexta-feira, 4 de março de 2016

ciência, técnica e ética:o nascimento do homem na mitologia grega

                O NASCIMENTO DO HOMEM NA MITOLOGIA GREGA[1]

  O céu da teoria é cinza;
  mas sempre verdejante é a árvore da vida.
                                                      Goethe


A mitologia grega constitui o primeiro capítulo da história da filosofia. Neste período,porém, inexistia ainda o logos, uma vez que todos os fenômenos, tanto os naturais quanto os humanos, todos os fenômenos eram explicados a partir do mythos.Mesmo quando o logos vier predominar, já na Grécia Clássica, mesmo assim o mythos ainda se fará presente, sobretudo nos relatos de Platão e dos autores do teatro.
Há nos mitos a presença marcante de uma narrativa poética e simbólica. As principais fontes dos mitos são os poemas de Hesíodo ( Teogonia e Os trabalhos e os dias) e Homero   (Ilíada e  Odisséia). Todavia, estes poetas não são os autores dos mitos, eles apenas os relatam por escrito, uma vez que os mitos nasceram das narrativas  populares cuja origem se perde no tempo.Os mitos surgem em uma Grécia Arcaica ágrafa, sem escrita, predominante oral. Daí a importância da palavra falada como instrumento de construção da memória e identidade daquele povo, que será o berço da filosofia e da democracia.
Da perspectiva da Antropologia Filosófica, interessa-nos conhecer como se esboçou, nesse período inaugural,  a primeira concepção grega do homem. Mas para compreender o surgimento do homem, segundo aquela concepção, é preciso antes lançar um olhar sobre como vieram a existir os deuses gregos,pois teriam sido estes que criaram o homem.Criaram-no com uma finalidade, com uma razão.
Faremos a seguir uma exposição deliberadamente simples, e que possui um teor interpretativo mais atento ao sentido geral do que aos detalhes. Interessa-nos, sobretudo, mostrar a natureza simbólica de tal linguagem mítica. Ao fim do texto será apresentada uma pequena referência bibliográfica, caso haja o desejo de querer saber mais.

- A origem dos deuses gregos
O que vem primeiro que tudo?As primeiras páginas do poema Teogonia, de Hesíodo, buscam dar uma resposta a esta pergunta segundo a perspectiva do mito. Antes de tudo existir, antes mesmo dos deuses existirem, existia apenas o caos. O caos é uma realidade indeterminada, um “abismo sem fundo”, conforme os termos da Teogonia. Nele, o alto e o baixo, o pequeno e o grande, o belo e o feio,o justo e o injusto, a noite e o dia...tudo isto e mais outras coisas ainda não estavam distintas:tudo estava misturado, carecendo ainda de princípios que os separassem. Assim, o caos é a indistinção de coisas que precisam ser separadas. Simbolicamente falando, o caos prepondera quando aquele par de contrários ainda são tomados como sendo a mesma coisa. Então, quando o injusto existe da mesma maneira que o justo, quando a feiúra ( moral) existe com a mesma força que a beleza, quando o baixo não se distingue do alto, quando a escuridão e a luz   são confundidos...quando isto acontece estamos diante do caos ( tanto naqueles tempos quanto nos dias que correm...).
A primeira divindade a surgir do caos  foi Gaia. Em português, a Terra.Com Gaia, surgiu o chão,o plano horizontal, que é a dimensão fundante do espaço.Do ventre de Gaia, e não do caos, surgiu outra divindade: Uranos, o Céu. Este se pôs acima da Terra, e lá ficou. Entre ambos, um vazio.Várias outras divindades gregas nasceram depois do caos.A divindade mais importante foi Eros, o Amor. Segundo o mito, esta divindade se caracterizava por “unir o que está separado”. Então, ele foi colocar-se entre o Céu e a Terra.Sob o poder de Eros, Terra e Céu se uniram, e desta união surgiram novas divindades. Surgiram então Cronos ( o Tempo), Mnemósyne ( a Memória), Thêmis ( a Justiça) , e mais outras divindades.             
Doravante, as divindades não representavam apenas aspectos físicos, uma vez que surgem divindades que, simbolicamente, expressam afetos e faculdades humanas (como a memória). As últimas divindades a nascerem, porém, representavam aspectos não muito louváveis. É o caso dos Ciclopes. Estes eram gigantes e possuíam apenas um olho no meio da testa. Simbolicamente, estas divindades representavam, com seu único olho, a estreiteza que pode haver na visão quando ela se torna refém das paixões, como será o caso,na democracia ateniense, da doxa. A doxa, a mera opinião infundada, nasce de um olhar limitado.Apenas uma visão limitada pode servir à violência. No mito, os Ciclopes eram a expressão da violência e da ignorância.
Na sequência da narrativa mítica, Cronos, o Tempo, destrona o Céu e passa a reinar no lugar dele. Com o reinado  do Tempo, o Céu se afasta totalmente e se torna tão distante da Terra que muitos esquecem que ele existe. Então, o Tempo se casa com Reia. Temendo que um filho seu, um filho do tempo, fizesse o mesmo que ele fez com o Céu, o Tempo pede a Reia que esta lhe dê o filho tão logo este nasça. Sob o seu poder, cada filho do tempo era então devorado.O Tempo devora cada filho que ele gera.
Certa vez,  contudo, nasceu um filho que portava certo aspecto que muito impressionou Reia. Esta se deu conta que este filho não deveria ser devorado pelo Tempo. Havia algo neste filho que parecia escapar ao poder destruidor do Tempo. Réia então o guardou no ventre da Terra.O filho do Tempo cresceu escondido . Seu nome: Zeus, o deus da justiça enquanto virtude ética. Crescido, este luta contra o Tempo e vence sua tirania que a tudo devora. Com Zeus nasce o Olimpo, a elevada morada divina que  torna mais próximo  Uranos, o Céu. Com sua vitória, Zeus liberta as divindades que o Tempo tentou destruir.


(Monte Olimpo, Michelangelo, Abóbada da Capela Sistina)

- O nascimento do homem
Até esse ponto da narrativa ainda inexistia o homem ,bem como todos os outros seres vivos . Zeus pede então a dois irmãos seus que fizessem toda a obra. Estas divindades se chamavam Prometeu e Epimeteu. Zeus lhes incumbiu da tarefa de criar a natureza.  Ele  fez algumas exigências : cada ser criado deveria ser dotado de uma essência que lhe permitisse viver e se desenvolver. E o mais importante: a principal criatura a ser criada deveria ser o homem. E tudo deveria ser feito dentro de um determinado tempo, ao fim do qual Zeus retornaria para ver a obra. Prometeu era a divindade mais indicada para comandar a obra, pois Epimeteu era uma divindade cuja característica principal era a volubilidade e ausência de constância. Porém, por estar atarefado com outras coisas, Prometeu pediu a Epimeteu que este começasse a obra. Prometeu viria ao fim para concluí-la.
Quando Epimeteu voltou-se para a natureza para criar os seres deu-se conta que diante dele estava apenas uma matéria muito indeterminada e confusa, na qual as formas ainda não haviam se separado e distinguido da matéria .Ao invés de começar pelo homem , Epimeteu inicia a obra pelos animais. A cada espécie criada ele a fazia dotar de alguma virtude da natureza, para que assim tal espécie pudesse se desenvolver e sobreviver. Em algumas espécies ele pôs a força, em outras ele colocou o veneno, em outras ainda a capacidade de voar; e houve aquelas que receberam a capacidade de respirar debaixo d’água. Algumas espécies receberam um cobertor natural para que pudessem ,apenas com a espessa pele, suportarem o frio extremo. Outras espécies receberam uma visão tão arguta que mesmo à noite eles poderiam ver. Enfim, Epimeteu foi esvaziando a dispensa da natureza e dotando cada espécie com aquilo que a natureza poderia oferecer. Chega então Prometeu para inspecionar a obra. A primeira coisa pela qual ele procura é o homem. Onde está o homem?Epimeteu se dá conta então que se esquecera completamente do homem. E indica para Prometeu onde estava o homem: este era um simples esboço no barro, um rascunho que mal se distinguia daquela matéria. Em latim, barros é “húmus”. Etimologicamente, “homem” procede de “húmus”.
Prometeu percebe então que a criação do homem não poderia ser feita apenas a partir daquilo que a natureza poderia oferecer. Prometeu se decide a ir buscar no divino o modelo para construir o homem.
A primeira divindade que Prometeu buscou foi Hefesto, o deus artesão-operário. Este deu a Prometeu, para este dar aos homens,a habilidade de usar as mãos. As mãos passaram a ser empregadas para fabricar coisas. Nascia assim a técnica e, com ela, o homo faber: o homem que fabrica coisas para seu sustento. Este homem já não aceita simplesmente a natureza externa: ele a transforma.  Todavia, apenas usar as mãos não  tornaram o homem  um ser completo, pois as feras conseguiam ainda assim destruí-lo e vencê-lo. Prometeu busca ajuda de outra divindade: Atena, a deusa da sabedoria. Esta aceita dar a Prometeu, para este dar aos homens, a capacidade de raciocinar: os homens recebem a inteligência. Com a inteligência, os homens aprendem a contar, a medir, a raciocinar, enfim, a falar. Com a inteligência, nasce o homo sapiens.
Todavia, os que receberam a inteligência não foram os mesmos que receberam a habilidade técnica-manual. Entre estes dois tipos de seres humanos, os trabalhadores e os intelectuais,passou a existir então uma inimizade: cada um via no outro apenas a capacidade que faltava a este outro, e que era a capacidade daquele que julgava depreciativamente  a diferença. Cada classe desprezava a outra. Eles não se uniam, não viam entre si nada de comum. Assim, facilmente a natureza os vencia. Prometeu resolve ir então diretamente a Zeus e pedir-lhe ajuda. Este aceita conceder a Prometeu, para este conceder aos homens, o sentido ético da justiça. Zeus fez uma exigência: que este sentimento fosse colocado em todos os homens, e não apenas em parte deles. Este sentimento seria o afeto que os levaria a agir conforme o comum, e não apenas conforme o interesse particular, individual ou de classe.Prometeu resolve então colocar o afeto pela justiça,pelo comum, exatamente no lugar que serviria para mediar os conflitos entre os intelectuais e os operários, entre a teoria e a técnica, enfim, entre o cérebro e as mãos. Este lugar mediador foi o coração. É o coração que equilibra o homem, o equilibra primeiramente dentro dele mesmo, para que assim ele possa se equilibrar na relação com os outros. Nasce, dessa forma, o homo eticus.
Seguindo a justiça, os homens aprenderam a cooperar: e assim nasceu a sociedade. O homem não era mais apenas um ser individual, ele se percebeu também um ser de comunidade, um ser social. E assim eles passaram a comandar a natureza: tanto a externa quanto a interna, aquela que se revela como passionalidade ( ódio, rancor, cobiça, etc.).
Contudo, por muito tempo não durou aquela conduta pautada na justiça.Como sabiam falar e dominar a inteligência,logo os intelectuais criaram leis. Depois, o Estado. E este passou a ser monopólio deles. Nasceu assim o déspota.E este passou a crer que possuía uma origem diferente: não o barro, mas o ouro. O déspota criou uma casta com privilégios,bem como um exército para reprimir os operários pobres, que foram então tornados servos. O homem passou a ser então o leão do outro homem, a serpente do outro homem, o lobo do outro homem. Horrorizado, Zeus pensou em destruir com um raio toda a humanidade. Mas decidiu se vingar com uma lição: levaria o homem a ser destruído pela sua própria ambição e pouco amor pela justiça.
Zeus então pede a Afrodite que crie um ser que seria o instrumento de sua vingança. Zeus solicita  a Afrodite que crie um ser que o homem fique cego ao vê-lo. A pele desse ser deveria tão macia que, ao tocá-la, o homem se esqueceria do aveludado das pétalas. Esse ser também deveria ser tão perfumado que o homem ,ao sentir seu perfume, também se esqueceria do perfume das rosas. Esse ser também saberia usar com sedução as palavras, para que o homem sempre acredite nelas.  E o mais importante: esse ser deveria ter dois estômagos, para que a insatisfação fosse o seu estado mais freqüente, e nunca o homem pudesse preenchê-la totalmente.  O nome desse ser : Pandora, a primeira mulher  criada.
Zeus a envia de presente aos homens. O mais poderoso dos homens a faz de esposa.Zeus envia um baú ao casal. Na tampa do baú estavam escritas as seguintes palavras: “Não abra antes do  permitido”.A irrefreável curiosidade também era uma das características de Pandora.Não obstante a advertência, ela abre o baú. Dele saem a doença, a pobreza, as pestes e o pior dos males: a morte. Até então os homens não morriam, tampouco procriavam. Quando Pandora se apressou em fechar o baú, dentro dele ficou apenas a esperança.
Entretanto, algo de misterioso acontece com Pandora, mais especificamente com aquele seu segundo estômago. A semente da vida nele se depositou, cresceu e se alimentou. O segundo estômago morreu para que no lugar dele nascesse o útero.
Ela que trouxe a doença e a morte, agora dentro dela estava sendo gerada a vida. Zeus viu então um novo papel para Pandora (que, simbolicamente, representa a sensibilidade, a sensibilidade à vida). Que ela seja o instrumento da educação do homem. Que a sensibilidade à vida o auxilie a entender o que a inteligência não compreende; que o amor à vida o ensine a apreender realidades que as mãos não podem tocar.

- Conclusão
Pelo mito podemos perceber  que o homem é apresentado como um ser dotado de partes diferentes, como um ser heterogêneo. Ao invés dessas partes se harmonizarem, nasce no entanto um conflito. De um lado, o empirismo da técnica; de outro, a postura  teórica da inteligência . Este conflito também se mostrará no campo político, impedindo a convivência democrática dos homens. Platão chamará de “faculdades” essas partes diferentes do homem. Séculos depois, Kant retomará a mesma nomenclatura, criando assim uma “doutrina das faculdades”, componente fundamental de sua filosofia e daquelas que vieram depois, seja para referendá-la ou para criticá-la.
O mito aponta ainda para uma faculdade muito especial: a sensibilidade, simbolizada pelo coração. O coração como símbolo da vida em seu sentido mais amplo, não apenas biológico ou orgânico. De um lado, a técnica; de outro, a teoria. Entre ambas, a necessidade da ética.

-Referências básicas:
BACON, F. A sabedoria dos antigos. São Paulo: Unesp, 2002.
BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis: Vozes, 1991. 2vols.
___________. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1998. 3 vols.
GILSON, É. Deus e a filosofia. Lisboa: Edições 70, 2003.
NOGARE, P. D. “O humanismo dos gregos”, Humanismos e anti-humanismos: Introdução à Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1988.
PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos - um léxico histórico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1974.
SOUZA, E. L. L. de. “O nascimento da jurisprudência”, Filosofia do direito, ética e justiça – filosofia contemporânea. Porto alegre: Núria Fabris, 2007.
VERNANT, J-P. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990.

- Outras referências:
CUNHA, A. Dicionário etimológico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
SALLES, W. Dentro do dentro: os nomes das coisas. São Paulo: Mercúrio, 2002.






[1] Texto elaborado pelo Profº Elton Luiz como complemento às aulas.


-capítulo do livro:


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