quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

manoel & espinosa



Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Deleuze


Em seu livro sobre Espinosa[1], Yovel se refere ao terceiro gênero de conhecimento do autor da Ética como uma “metamorfose mental”. Antônio Houaiss afirma, por sua vez, que a poesia de Manoel de Barros está a serviço de uma experiência clínica: a da “felicidade mental”[2]. A metamorfose poético-filosófica como medicina animi .
Há uma influência dos estoicos sobre Espinosa no esforço que este empreende para instituir uma medicina da alma ou medicina animi. Para Espinosa, é absurdo que o homem tenha criado uma medicina corporis e que, no entanto, tenha descuidado de uma medicina animi, uma vez que ele é constituído por essas duas realidades, e não apenas por uma delas. O homem  pôde produzir a medicina corporis quando conseguiu vencer  o curandeirismo nas questões que envolviam a saúde do seu corpo. Todavia, no que diz respeito à salut de sua alma, entrega-se o homem ainda a práticas encantatórias, mágicas, como se apenas de um milagre pudesse nascer tal salut e felicidade.
Segundo Yovel, essa metamorfose mental é a expressão de um "olhar sinóptico", isto é, um olhar que liga coisas diferentes, coisas estas que não pertencem à extensão de um mesmo conceito. Parece-nos que esse olhar sinóptico muito próximo está do que em Manoel é uma visão fontana. O olhar sinóptico desfaz os limites dos conjuntos extensivos, e nos faz perceber a singularidade de cada coisa em sua relação com o Todo que se expressa no coração de cada ente singular e diferente: “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”[3], “só as coisas rasteiras me celestam : a desgrandeza é de Deus”[4] .
Cada coisa está conectada à outra através do todo: a vitória está conectada com a derrota, o acerto está conectado com o erro, a  verdade está  conectada com a falsidade, o juiz está conectado com o bandido, a razão está conectada com a imaginação, a realidade está conectada com o sonho. Estar conectado não significa estar subordinado, ou que um seja  superior ao outro. O importante, o que dá sentido aos termos de cada relação , é o que está no meio, é a própria relação. Quando nos colocamos na perspectiva da relação, percebemos que juiz e bandido, razão e imaginação, acerto e erro, etc., são termos relativos não apenas  uns aos outros, mas relativos à relação que lhes dá um sentido.
Todavia, afirmar a relação nada tem a ver com defender o relativismo. O relativismo nasce quando se supõe que bandido e juiz são o mesmo, assim como a verdade ou o erro. O relativismo geralmente segue  de mãos dadas com o ceticismo e o cinismo, vez que reduz a relação aos termos. Mas quem dá as mãos ao ceticismo finda por andar em círculos, quem as dá ao cinismo cedo descobrirá que se encontra sozinho. Somente a compreensão, como diz Espinosa, pode conduzir-nos pelas mãos e nos levar para onde já estamos. E o lugar onde estamos é sempre o de uma relação, a começar pela relação de cada um consigo mesmo.
Por isso, quando nos colocamos na perspectiva da relação afirmamos apenas ela como necessária, de tal forma que compreendemos que, sob uma outra relação, o que hoje é bandido pode se tornar um justo, ou o que sob determinada relação é erro sob outra poderia ser acerto, ou o que sob determinada relação é ensino pode ser aprendizado sob  outra relação. Através da relação e da conexão cada coisa se liga não apenas a outra que lhe seja oposta, ela se liga também ao todo e , através deste, a ela própria, para assim mudar, devir, (re)inventar-se.
Sob determinada relação, a droga é veneno; sob outra, remédio. Todavia, isto não significa dizer que ela nunca é veneno .Ao contrário, significa dizer que nem sempre a droga é veneno, ou que nem sempre a razão é razão: sob certa relação, a razão pode ser veneno, o juiz pode ser bandido, e o bandido pode ser um santo. Pensar as coisas sob o viés da relação é pensar como é produzido o sentido que lhes atribuímos, e que este sentido sempre está inserido em uma prática que nós mesmos construímos, mesmo que passivamente. Enquanto pensarmos a relação apenas em termos duais ( juiz-bandido, verdade-falsidade) corremos o risco de ficarmos reféns das dicotomias e dos discursos que se alimentam  do preto e do branco, do não e do sim apenas.
Na pintura, o discurso racional sempre se expressou com o predomínio da forma, do limite, em detrimento da cor. O discurso passional, ao contrário, sempre realçou a sombra, o claro-escuro, o fundo negro, as trevas...Em ambos os casos, sempre se colocou a cor em segundo plano. Sabe-o disso não apenas quem pinta : a cor desborda os limites, bem como introduz uma pluralidade expressiva irredutível à gramática redutora do preto, branco, cinza e sombra. Pelas cores, percebemos que a sombra não é a ausência da luz ou o efeito de um princípio ativo distinto da luz ( a treva). Pois as cores também produzem sombras, como se o pode ver em Vermeer[5].
olhar sinóptico não é um olhar relativista ou que aceita, resignadamente, que tudo é igual, homogêneo. O resumo de algo  às vezes é dito “sinopse”. Para fazermos a sinopse de um livro ou filme, é preciso que o tenhamos visto ou lido. Mas quem viu, inteira, a própria vida? Em princípio, somente podemos fazer a sinopse de um dia que vivemos à meia-noite do mesmo. Essa idéia , porém, confunde a sinopse com a reprodução abreviada do que se viveu ou do que se teve a experiência.
Quem viu, inteiro, Deus ou a Natureza? A experiência com o infinito nunca pode terminar, como se termina a leitura de um livro.Quem leu um livro se torna apto a relatar o que leu. Mas e quem viu Deus ou o Absoluto, do que se torna capaz de narrar?E deve fazê-lo em prosa? Ou apenas em versos o conteúdo do que viu pode caber? Manoel de barros nos fala de um “olhar divinatório”[6]: olhar que “celesta” as coisinhas do chão.
Quando Espinosa emprega o termo “sinopse” ele está a querer dizer que o infinito está resumido em cada coisa, por mais simples que seja esta “coisinha do chão”, não importando se ela é uma vitória ou uma derrota, uma dor ou uma alegria, um idoso ou uma criança que acaba de nascer. Enquanto vivemos  o dia, e o tomamos  mais como algo que passa do que como algo que dura, não conseguimos experimentar/viver cada parte dele como o resumo dele mesmo. Se a isto soubéssemos enquanto o vivemos, seríamos como um artista a criar uma obra, dado que o todo não é um texto pronto,mas uma virtualidade , uma matéria ou potência a criar. Então, quando à meia-noite fazemos uma sinopse do dia, o fazemos segundo as possibilidades existenciais daquela parte do dia, e não segundo toda a potência que foi o dia inteiro. Inclusive, parte dessa potência que escapa à consciência  pode ser melhor resumida e expressa em um sonho que nos desperta no meio da noite, fazendo-nos compreender algo que não percebemos durante o dia.
O que vale para um dia vale igualmente para uma vida inteira: cada momento de uma vida é um resumo da vida inteira. Quem descobre isso, e o vive, olha não só a parte,o resumo, mas o todo, o que está sempre a se viver,pois o todo é sempre maior que cada   parte sua, e é maior até mesmo que a soma das mesmas:o dia que vivemos é maior do que as partes dele que vivemos, assim como é maior que cada parte dela a vida nossa mesma. É maior não como um pé que não cabe  em um sapato, ou um livro que não cabe em uma bolsa. É maior porque torna maior cada parte que  a expressa, assim como um tom mais vivo de azul torna mais azul o grau de azul que o expressa. Quando uma parte se liga ao todo do qual ela é uma expressão, ela se torna maior porque ela,através do todo, se liga a todas as partes que expressam o mesmo todo: embora única e singular, ela se descobre ligada ao inumerável que expressa o mesmo todo de mil outras perspectivas, e nenhuma dessas outras perspectivas é a dela própria, o que acentua sua diferença, ao mesmo tempo em que a liga e a integra ao todo que é sua alma heterogênea.O todo não é totalizável, ele não é quantificável: nele “não se pode passar régua”, ele é uma incógnita.
Cada parte de uma vida é uma sinopse de uma vida inteira, embora a vida inteira seja maior do que a mera soma de suas sinopses. De nossa vida inteira vivemos quase exclusivamente a parte atual, a mesma que a cada momento passa. Mas o que passa é a parte atual, não a vida inteira, que é sempre virtual. A parte atual é governada pela percepção, ao passo que a vida inteira somente é experimentada por uma invenção que a torna deslimitada, idêntica ao gosto superior de viver.
olhar sinóptico, porém, não é um olhar da percepção, da memória ou da imaginação: ele é o olhar da alma que, enfim, se tornou inteira, sabendo-se parte do que é infinito, e o infinito é a multiplicidade do que existe de infinitas  maneiras. O olhar sinóptico  é aquele que vê cada coisa finita como um resumo singular do infinito, uma vez que o infinito lhe está imanente como aquilo que nunca a deixa ser finita, limitada. Para ligar cada resumo a outro é preciso, antes, ter a experiência do todo, e este nunca é um livro ou texto. O todo é sempre extratextual. Ele se assemelha mais a uma música: não a música que está em uma partitura ou cd, mas a música que flui, que dura, e que faz de nós mesmos o seu intérprete, de tal modo que apreender tal música não se faz sem que criemos e aperfeiçoemos nosso próprio estilo e gosto, tal como o artista, o músico, que ama tanto o tocar quanto o que precede e prepara o tocar: o estudo,o treinar,o aperfeiçoar, enfim, o esforço.








[1] YOVEL, Y. Espinosa e outros hereges. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, p. 161 e seguintes.

[2] Texto de apresentação presente na  orelha de O guardador de águas , edição da Art Editora, São Paulo, 1989.

[3] “Desejar Ser”, Livro sobre nada, p. 55.

[4] Ibid., , p 41.

[5] Cf.HÖRNAK, S. Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura . São Paulo: Paulus, 2010.

[6] Entrevista concedida à jornalista Bianca Ramoneda e publicada no site da Leia Brasil.




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