sábado, 16 de janeiro de 2016

ariadne-dioniso

                                                                    

 O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia,
 e significa que a filosofia não pode contentar-se
em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual.
Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Gilles Deleuze
  
Segundo Deleuze, a filosofia não é uma prática estritamente conceitual. A filosofia entra em uma relação direta, sem mediadores, com algo que a antecede. Não se trata de acúmulo de experiência ou leitura isso que a antecede. Esse “antes” que antecede a filosofia   não é outra disciplina. Esse antes é um “pré”, um pré-filosófico. Este pré-filosófico não é o conceito, tampouco o bom senso ou o senso comum. A aurora precede o dia que a sucede.Contudo, esse “pré” com o qual a filosofia entra em relação não é como um antes que ela, vindo depois, põe-se no lugar, assim como dia toma o lugar da aurora. Esse pré é sempre pré: ele não é o conceito ainda se fazendo, tal como o pré-adolescente já é o adolescente se formando. Esse “pré-filosófico” é uma aurora que nunca deixa de ser aurora, ou como uma criança apenas criança, e não  um adulto incompleto.
 O pré-filosófico não é conceitual, jamais o será.Se a filosofia é o mundo do pensamento, o pré-filosófico é a terra do pensar, um pensar que também se sente, um sentir que se pensa.Esse pré não é um objeto que o conceito representa.Ele é uma terra que o pensamento conquista.Conquista a quem?A filosofia não recebe, de presente, essa terra; tampouco é uma terra prometida. O nômade que habita o deserto conquista o deserto.Mas o deserto não tem dono, ninguém pode marcar nele linhas retas em seu solo, pois o vento vem e apaga. Conquistar não é fazer do conquistado uma propriedade, restando-lhe fora, especulando ou a deixando deserta de vida. Conquistar é povoar, habitar,encher de vida, mas sem recortar, sem construir muros. É com itinerâncias, é com trajetos e viagens, é se movendo sobre o deserto que o Nômade conquista um. O deserto não é nômade, mas ele torna nômade quem o conquista, povoando-o.
A terra que a filosofia conquista é um deserto sobre o qual ela traça mundos, trajetos, habitares, modos de ser, sem que exista, antes, um modelo a imitar de como ser.Pois antes dessa conquista, antes da terra pré-filosófica, não existe algo pronto, feito, acabado, que se possa herdar, reproduzir ou imitar.O que existe é o caos. Este não é um limite à conquista, mas aquilo sem o qual não há conquista . É a terra o que se conquista, não o caos. A terra  tem outro nome: consistência. Ter consistência não é ser inflexível ou rígido.Ter consistência é conquistar uma terra sem murá-la, sem fechá-la, sem finitizá-la. Toda conquista é um co-memorar do que se conquistou. Assim, a terra não é o fim do caos, mas o começo da consistência.Toda terra conquistada ao caos é sempre terra infinita.A ciência finitiza, objetifica, gira em torno de objetos. A filosofia traça uma terra infinita, a qual ela conquista sem negar o caos. Nenhuma conquista nasce da mera negação, toda conquista é uma afirmação da capacidade que tem o pensamento de conquistar. Não conquistar prêmios, títulos, propriedade, poder. Mas conquistar a si mesmo, criando a si mesmo , fazendo do infinito a sua terra.
A filosofia não nega o caos, não o demoniza: ela conquista-lhe uma terra.A terra não é o caos.A terra é o inaugurar de uma distância mínima, que nenhuma régua tem como medir. Pois não é uma distância mensurável em centímetros, milímetros ou qualquer outra unidade de medida, por menor que seja. A distância que separa a terra do caos é semelhante àquela que separa a paisagem pintada e a matéria sem a qual não existe a paisagem pintada. A paisagem não é a matéria da tinta, mas uma distância não extensa que o artista conquista, como o fez Cezanne: do caos das sensações ele conquistou uma paisagem que  existe como distância não física conquistada à desordem das tintas. 
         Deleuze chama de “crivo” essa distância que existe entre a terra e o caos. Quanto mais próximo do caos, mais rica a terra que a ele se conquista. Porém, maior se torna também o risco...Quem se aproxima do caos pode nele se perder .E o poeta?                                                           
Talvez o artista, sobretudo o poeta, seja aquele que  mais de perto vê o dragão. Nietzsche: “Quando você olha para o abismo, o abismo te olha”. A terra que o poeta conquista é o par do caos, é sua fêmea. A terra e o caos vivem  um amor que pode matar ou salvar.Não matar a terra , mas ao poeta que é o produto desse amor, amor este que também  o fecunda.O poeta não cria conceitos como o filósofo: seu pré é imediatamente o caos do qual apenas a terra inventada pode ser o par.O poeta é o palco desse amor cósmico, tal como o amor Ariadne-Dioniso.O poeta também vive uma conquista, mas é uma conquista amorosa, na qual ele aprende a dizer, como Manoel , “eu-te-amo” a todas as coisas.



(Cezanne, A montanha Santa Vitória)





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