quinta-feira, 20 de março de 2014

de que são feitas as narrativas

                                     A IDEIA DE  NARRATIVA E SUAS ORIGENS

Quando a forma predomina,
desaparece o sentimento.
Balzac

A  narrativa é um fluxo, como um rio.Mas não é como um rio de corredeira, que carece de  paradas.Uma narrativa possui  momentos de parada e deleite. Ela deve ter  um ritmo, e todo ritmo nunca é homogêneo. A narrativa congrega o contínuo e o descontínuo em sua linha que nunca é reta. E é por isso que ela pressupõe o tempo bem  como espaços que não são apenas físicos,pois há espaços de afetos, espaços de memória,espaços de sonho. Uma narrativa nunca está  totalmente subordinada ao  tempo objetivo do relógio. Uma narrativa produz seu próprio tempo,que é chamado de tempo diegético, que é o tempo que a própria narrativa produz.Por exemplo, a visita a um museu pode durar  certo tempo no relógio,mas a exposição enquanto narrativa pode nos fazer ir ao passado longínquo,bem como  a um futuro apenas vislumbrado.
 E é por ser assim que toda narrativa pressupõe um encontro. Os tiranos não narram, e os loucos perderam essa capacidade de narrar .Todavia, mesmo estes  são capazes ainda de narrar, como mostra muito bem o Museu do Inconsciente, que além das conhecidas funções atribuídas a um museu (Pesquisar, Preservar,Comunicar e Educar), também exerce  outra função : “Curar”.Com o auxílio da arte, empregando as variadas formas  de narrativa que a arte possibilita,muitos internos conseguem conquistar significativas melhorias em seus estados clínicos.E  o processo de “cura”que eles conquistam também nos ensina acerca de nossos próprios dramas e conflitos.
 Narrar não é apenas informar. O tão requisitado Google, o “Dr. Google”, certamente pode informar, com textos e imagens,bem como com sons, mas ele não é capaz de fazer uma narrativa. Qual a voz do Google? Do que ele se lembra? Ele tem memória? Desejo? E o mais importante:ele tem uma virtualidade inconsciente que pode surpreender  a ele mesmo? O Google nunca poderia dar uma aula ou realizar uma exposição , pois aula e exposição  devem ser  narrativas , e não apenas imagem e texto projetado ( os quais se copia).
Realizar  uma narrativa também não é meramente ordenar e classificar objetos e documentos (como nas exposições taxionômicas, mais comuns em certos tipos de museu de ciência),mas inventar para eles uma ordenação dotada de um ritmo e disposição que os faça existirem em composição, agenciados.
A idéia de narrativa possui dois mitos principais: o Fio de Ariadne e Eco e Narciso.De maneira simbólica, esses mitos tocam em questões que devem estar presentes na concepção de uma exposição enquanto narrativa .

- O fio de Ariadne
O mito do Fio de Ariadne envolve um enigma como fundo:o labirinto. Toda narrativa,portanto, tem como fundo um enigma,enigma este que se quer vencer e transpor pela criação de um sentido que nos conduza.Além do labirinto, o mito em questão fala de mais dois personagens.Mais do que meros personagens, são dois símbolos,são duas possibilidades que podem surgir na existência humana.
O primeiro personagem/símbolo  é Teseu.Este  representa a racionalidade simbolizada pelo homem como padrão.Teseu anda sempre firme, não dá um passo sem planejar antes onde pisa e como pisará.Teseu teme o imprevisto, e evita tudo o que não cabe em uma forma. Teseu quer a tudo dominar com régua e compasso. Seu caminho é feito de estradas retas , às vezes curvas.Mas raramente ele salta ou sai para “andar atoamente”, como diria Manoel de Barros.Por isso, Teseu tem horror ao labirinto, ele teme os enigmas e mistérios  da vida.
O outro personagem é o Minotauro, que é também um personagem simbólico.Um dia, uma vontade nasceu em Teseu: matar o Minotauro. Este era um ser híbrido: nem homem e nem touro, mas a soma dos dois, cujo todo fazia nascer um ser diferente do que a mera soma das partes.E era isso que o fazia um monstro: ele não era uma coisa ou outra, porém as duas ao mesmo tempo, e esta coisa que ele era não se podia classificar segundo um conceito.Um ser deste somente podia morar em um labirinto. Onde todos se perdem: era aí que o Minotauro se sentia em casa...Minotauro representa os aspectos animais da passionalidade: a violência,o ódio, a fúria,etc.Ele é o que os psicólogos chamam de a parte irracional do homem.No campo coletivo e social, é essa parte que gera a guerra , a intolerância ,enfim,a  violência ( tanto a física quanto a simbólica,como o preconceito ou a discriminação, por exemplo).




 Labirinto de vidro ( Mostra de Arte Carioca/2012).Instalação produzida com placas de vidro transparente temperado.Local:Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro.


Simbolicamente, o labirinto representa a vida em suas múltiplas e infinitas direções possíveis, direções estas que não podemos seguir ao mesmo tempo,pois devemos fazer escolhas. O labirinto é o fragmentar de uma reta, e é por isso que ele choca. Ele é o fragmentar infinito de uma mesma reta que não leva mais a nenhum lugar.É por isso que o centro do labirinto não é como o centro de um círculo ou como o centro de uma caverna, uma vez que ele não é um centro que abriga ou protege. O labirinto não nos permite conhecer para onde se vai ou de onde se veio. Há apenas o desejo de se sair dele, sem se saber os meios. Pois o que poderia ser um meio para dele se sair, pode ser um meio para nele entrar e se perder: pensando estar indo para fora dele,podemos no entanto estar indo para o seu temível centro.
O Minotauro mora no centro do labirinto.Quem descobre o centro do labirinto, encontra o Minotauro. E ninguém sabe como este monstro se comportará, assim como ninguém controla totalmente seus impulsos instintivos. Mas os instintos fazem parte da vida, fazem parte do aspecto profundo da vida,ao passo que a consciência e a inteligência são criações mais recentes da vida ( e,por isso,mais frágeis quando comparados à força cega dos instintos).Ligados umbilicalmente, um homem e uma besta, um homem e uma fera: é isto o Minotauro... E os dois formam um só. Isto devora e nos devora: devora o que em nós é homem. É a isto que Teseu não tolera, este um feito de contrários que o Minotauro é, pois isto impede, segundo ele, a distinção do Bem e do Mal, do Racional e do Animal, enfim, da Lei e da Força.Mas o que Teseu desconhece é que tanto ele quanto o Minotauro são aspectos da vida: o animal fundido com o homem, com o predomínio daquele; o racional junto ao animal, com aquele reprimindo este. Teseu pensa que pode vencer o Minotauro, e de fato o poderia se o encontrasse em céu aberto, sob a luz do sol da Razão. Todavia, Teseu ignora que não pode vencer o labirinto.O impede de vencer o labirinto exatamente a arma da qual ele extrai seu poder: o conhecimento retilíneo, racional.Para entrar no labirinto , Teseu teria que se despir de sua lógica. Entretanto, se isto ele fizesse, ficaria Teseu sem seu escudo e sem sua arma.
Então, o salva um terceiro aspecto da vida: Ariadne. Em grego, Ariadne provém de um termo que significa “aranha”. A teia da aranha é uma espécie de labirinto onde a aranha aprisiona suas presas. Assim, Ariadne é uma produtora de labirintos, e é por isso que ela o conhece bem, pois conhecer uma coisa é ser capaz de produzir a idéia que nos permite conhecê-la. Ariadne não está presa dentro de um labirinto, tal como o está um prisioneiro dentro de uma cela, sobretudo se este prisioneiro ignora a prisão e imagina que a cela o torna forte pelo fato de ninguém conseguir sair dela, tal como acontece com o poder do Minotauro, que é o mero poder da destruição; tampouco Ariadne vive o labirinto como se fosse um meio externo que a limitasse . Artista, ela conhece como se produz um labirinto, e sabe que para vencer um labirinto é preciso um fio, uma linha. Não uma linha que se traça com esquadro ou régua, mas uma linha que se desprende de um novelo, e que permanece ligada a este, tal como permanece ligado o produto ao seu produtor, o raio à fonte de luz, os atos ao seu autor, o rio à sua nascente. O novelo é uma virtualidade da qual a linha nunca se separa, o que faz dela uma linha de fuga,como diziam  Deleuze e Guattari.
 Entre o racional de Teseu e o irracional do Minotauro está Ariadne como expressão da Arte.Somente esta sabe como se vencer o irracional. Este é vencido pela construção de uma narrativa que,sem negar o mistério do labirinto, nele se entra e dele se sai, uma vez que o fio da narrativa está preso a um novelo. Ao contrário da linha reta, que começa e termina em um ponto,o fio da narrativa está preso a um novelo, que simboliza uma memória e uma identidade coletiva,ou seja, todo um reservatório de possibilidades para se dar sentido à vida. Por isso, uma narrativa nunca termina, pois basta puxar o fio que ele,o fio, se estende ainda mais. É por isso que toda boa narrativa nos leva a querer ouvir mais narrativa, além de nos despertar também o desejo de narrar. É com o fio de Ariadne que Teseu, desperto, entra no labirinto e mata o irracional enquanto este dormia. O fio de Ariadne, fio do afeto, permite a Teseu entrar e sair do labirinto, sem morrer ou enlouquecer. Porém, Teseu apenas seduzira Ariadne, pois logo a abandona quando consegue lograr seus intentos neuróticos( a neurose representa ,segundo a psicanálise, a dificuldade do racional em se relacionar  com os sentimentos:ao invés de lidar com eles, o neurótico os reprime,o que acaba gerando apenas sofrimento interno, apesar de uma aparente situação de “controle”).
 Todavia, por muito tempo não chorou Ariadne, pois logo a desposa Dioniso, o Deus cujo nome seu poder revela: Di-oniso, “aquele que nasceu duas vezes”,onde o segundo nascimento, que é em verdade um renascimento, explica e dá sentido ao primeiro nascimento.Enquanto não se renasce, renascer nesta vida onde nascemos e não noutra, o primeiro nascimento permanece obscuro, sem sentido, um mero viver ao sabor do que acontece.O renascer não é uma outra vida: mas potencialização da Vida que nasce, renovada, de si mesma.Em toda narrativa a realidade renasce e ,através do relato, aprendemos mais acerca da realidade e sobre nós mesmos.

- Eco e Narciso
Eco era uma ninfa que possuía o dom de contar histórias. Estas histórias prendiam a atenção,ao mesmo tempo que transportavam quem as ouvia para uma realidade que a própria narrativa tecia.Nessas narrativas havia imaginação,memória,sonho, fantasia, e não apenas informação.Querendo tirar proveito desse dom, Zeus certa vez pediu a Eco  que esta deleitasse sua esposa, a deusa Hera, com suas narrativas. Zeus tinha como intenção fim escapar da ostensiva vigilância de sua esposa.
Então, deu-se o combinado:todo dia Eco vinha visitar Hera . Ao ouvir as narrativas de Eco, Hera se esquecia de tudo,inclusive  de seu esposo.E assim se passaram vários dias.Eco fazia o que também fizera Sherazade. Esta vivia em uma aldeia onde o Sultão, o homem mais poderoso dali, fora traído por sua noiva  às vésperas do casamento.Como vingança, ele resolve se casar com todas as jovens da aldeia,uma a uma . Após a lua de mel, ele proferia uma sentença de morte e as matava antes de o dia amanhecer.Assim, ele matou inúmeras mulheres. Até que chegou a vez de Sherazade. Quando o Sultão se preparava para matá-la, ela lhe pediu para contar uma história. Em princípio,o Sultão aceitou com má vontade ouvir o que a Sherazade tinha a lhe contar, e ainda ordenou que ela fosse breve, pois o dia já estava amanhecendo e ela , Sherazade, não veria a luz do sol.Mas o Sultão ficou tão entretido com a narrativa,que não reparou que um novo dia já estava nascendo. Sherazade pede então para interromper a narrativa e retomá-la no dia seguinte. Embora contrariado, o Sultão aceita. Pela primeira vez, alguém saía vivo do encontro com ele, que era a encarnação do poder.No dia seguinte, ela prosseguia com a história e logo a emendava com outra.Atento, o Sultão parecia se transportar para aquela vida tão viva, e o fazia esquecer-se da dele. Logo novamente o dia amanhecia antes de uma história acabar, e Sherazede pedia para retornar depois para prosseguir no relato. Novamente o Sultão concedia , e assim Sherazade vencia a morte.
E assim se passaram 3,7,10, 100,1001 noites...Com  o poder de sua imaginação e arte, Sherazade vencia a morte e o poder.Simbolicamente,toda narrativa visa vencer a morte em seus vários aspectos e sentidos,inclusive o esquecimento,que é também uma espécie de morte.




Sherazade (2008), de Sami Hilal. Local: Palácio das Artes, BH.
Na obra,a idéia da continuidade da narrativa é expressa pelos livros  que continuam uns nos outros ,mostrando uma unidade nascida da heterogeneidade.
O movimento sinuoso dos livros ligados uns aos outros evoca o fluxo de um rio.
E o rio é um dos símbolos do fluir do tempo.    

A história de Eco lembra a de Sherazade. Eco entretinha Hera todos os dias com suas narrativas cheias de cores,emoções,acontecimentos, suspenses. Um dia, porém, Hera desconfiou que Eco  estava ali a pedido de Zeus, que com isso conseguia escapar de seu lar.Então,Hera resolveu se vingar de Eco. Para alguém com o dom de Eco,o dom de narrar e criar histórias, a pior maldição que pode ocorrer não é exatamente ficar mudo ou perder a voz, a pior maldição foi aquela que Hera lhe fez cair: Hera não tornou Eco muda. Ela ainda continuaria com sua voz. Mas Hera cortou os fios que ligavam sua boca à sua alma. Assim,Eco somente poderia falar se alguém puxasse conversa com ela. Ela não teria mais autonomia para retirar as palavras de sua imaginação e memória. Ou seja, as palavras de Eco seriam apenas a repetição das palavras dos outros: uma palavra que apenas imita, e não cria.
Triste, Eco veio se esconderem uma floresta. Ela estava atrás de um arbusto quando viu então um jovem muito belo cujo nome era Narciso.De imediato,Eco se apaixonou por Narciso.Ela queria falar , mas não conseguia.Embora as palavras estivessem em seu coração,não havia mais caminho até à boca, pois Hera destruiu esse caminho.Inadvertidamente, um movimento de Eco vez com que um galho do arbusto mexesse. Narciso voltou-se e indagou: “Quem está aí?”.Atrás do arbusto ouviu-se uma voz dizer: “Quem está aí?”.Narciso prosseguiu: “Se você não aparecer eu vou partir”. Atrás do arbusto a voz repetiu: “Se você não aparecer eu vou partir”. Imaginando que era alguém zombando dele, Narciso deu de ombros e se foi. Sentida, Eco foi esconder-se em uma caverna. Sempre que alguém entra em uma caverna e chama por ela, Eco responde: faz-se o eco.
Mas Narciso não acaba bem. Sabe-se que Narciso tinha uma triste característica:  pensava apenas em si mesmo e desprezava  o sentimento  dos outros.Ele se achava o umbigo do mundo.Porém,certa vez a própria Afrodite se apaixonou por ele. Narciso, contudo, também não dera atenção a Afrodite.Esta então lançou-lhe uma maldição.
Certa vez Narciso foi atravessar um lago profundo. De repente,ele viu alguém que despertou,pela primeira vez,sua atenção e interesse. Era a primeira vez que Narciso tinha sua atenção voltada para algo que não era ele próprio.E o ser que ele via o atraía fortemente.Pela primeira vez ele percebeu o quanto errou ao desprezar o interesse alheio por ele.Uma insegurança começou a tomar conta dele, uma insegurança nascida do desejo de agradar em agradar o outro e também ser correspondido. Ele toma coragem e resolve acenar para o ser que ele via. Este também acena para ele, e este aceno correspondido fez a alegria de Narciso. Ele resolve então sorrir para o ser que ele via, e este também sorri para ele. “Como é bom amar e ser amado”, pensou Narciso antes de esticar a mão em direção ao ser que ele via. E este também esticou a mão para Narciso. Quando Narciso enfim ia tocar a mão do outro , seus dedos tocaram a superfície do lago.O que Narciso via era apenas o reflexo dele mesmo projetado na fina lâmina do lago. Narciso se apaixonou por sua aparência. Ele ficou embevecido por ela, como se ela fosse outra pessoa. Ele nada mais via a não ser a ele próprio. Mas ao mesmo tempo algo dizia para ele que aquela imagem era um nada.E essa percepção o fazia sofrer de forma profunda. Entre seguir sua vida e se unir ao nada daquela imagem, ele optou por se atirar no lago atrás da própria imagem que ele, no entanto,  atravessou.
Narciso representa o oposto de Eco, antes de essa ter sua boca cortada de sua alma. Incapaz de qualquer relação com o outro, fechado apenas na contemplação de si mesmo, Narciso representa o museu tradicional  fechado em sua própria coleção, em seu próprio mundo,contemplando apenas a si mesmo, incapaz de estabelecer uma relação dialogada com o outro, com a diferença.



Narciso (2006), obra de Vik Muniz ( releitura da obra de Caravaggio).Material empregado para a composição: sucatas.






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