sexta-feira, 15 de novembro de 2013

o muito


Mais importante do que o pensamento
é aquilo que faz pensar.
Proust

O Deus de Espinosa, a Natureza,  é um muito, nunca um pouco. Uma parte do muito é sempre muito, desde que se saiba ver o valor do pouco.Deus é muito porque ele precisa de pouco: pois  ser muito  é depender de pouco para se ser o que se é.Deus é muito porque ele depende apenas de si para ser o que é: cada parte dele é muito porque depende apenas de si para ser expressão dele.
Quando o muito é verdadeiramente muito,uma parte dele nunca é pouca,mesmo que seja a mais simples. O muito não é feito do mero somatório de poucos.O muito autêntico não pode ser medido por números ou quantidades. Mas se saber  parte do muito requer muito, sobretudo requer o  muito de coisas que não se pode comprar, ou herdar, ou furtar.É um muito de potência, é um muito de se deixar afetar. Quem vive como parte desse muito é sempre livre, pois inexiste prisão que possa contê-lo, seja a prisão feita de concreto ou aquela mais sutil,mas não menos tolhedora: a cela  das opiniões  e verdades prontas, sejam as verdades seculares ou aquelas mais midiáticas, das quais a cada dia o sistema lança um modelo novo.
O muito da Natureza não é um muito que possa ser diminuído ou aumentado, pois é um muito infinito ( e se o infinito pudesse ainda ser aumentado, não seria infinito, e se pudesse ser diminuído, deixaria de ser infinito). O muito de Deus é o muito da generosidade, da criatividade, da produtividade. O muito não se conquista por acúmulo de coisas poucas. O autêntico muito é ser muitos, é expressar-se de muitas maneiras, e estar inteiro, íntegro, em cada maneira, seja diante do Rei ou do simples mendigo.
Ser muito não é ser muito de uma coisa só, como o oceano que é muito apenas de água, ou o banco que tem muito apenas de moeda. Ser muito é ser composto de coisas heterogêneas, de coisas raras.O muito de Deus é que cada coisa, por menor que seja, é um muito para ele, e ele não a despreza, pois essa coisa também é ele.Deus é único,singular. Se ele fosse dois, não seria Deus. E este é seu muito: ser raro. Cada parte dele só se sabe muito se aprender a ver sua raridade,bem como a raridade das coisas que são tomadas como meramente comuns.
O muito não pode ser cercado, tampouco possui um centro. O muito não tem verso ou reverso, ele não é par ou ímpar, sim ou não. Ele está sempre no meio e é meio que leva a ele mesmo: ele é o caminho, o caminhar e aonde chegar.E quem por ele caminha nunca se perde, tampouco chega a um fim. 
O oposto do muito de Deus não é o nada, pois o muito não tem oposto ou contrário.O nada pode ser um muito de coisa nenhuma, como o castelo imenso no qual morreu o milionário  Cidadão Kane. No mito, o Rei Midas cobiçou um muito de ouro, esquecendo que o valor do ouro está em ele ser raro, como é raro um bom coração, um coração de ouro.
O muito de Deus não é alcançável por um acúmulo de saberes. Pois só há um saber, e este é raro e múltiplo.O muito é múltiplo, heterogêneo, plural , e ao mesmo tempo raro, singular. O muito não é o excesso, pois o excesso é o oposto do pouco, e o muito de Deus não tem oposto.
O muito de Deus não é um conteúdo que somente aprenderíamos aumentando a nossa inteligência ( tal como uma piscina que é aumentada para receber um volume imenso de água).O muito de Deus é um conteúdo que dá consistência, que intensifica, e não algo que  vem preencher um vazio.Vazia pode se tornar a inteligência quando reduz tudo a objetos, quantidades, cálculos,mensurações...
O muito de Deus  consiste na autêntica riqueza que se possui sem precisar acumular, que se usufrui sem ser pelo comprar , gastar e consumir.  Segundo Espinosa, essa riqueza quem mais a teve foi Cristo.Depois a tem as crianças, sobretudo as que acabam de nascer ( não importando se tem 1 dia de vida, 30, 40 ou 70 anos, quando então tal riqueza se vive como um re-nascer, um re-generar).
E pode ganhar essa riqueza quem perde tudo.E mais pobre dela pode ser quem  muitas coisas tem.


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