sábado, 2 de novembro de 2013

a riqueza da pobreza




A riqueza é uma coisa, já a pobreza é outra. Ninguém as confunde. Sempre desejada, à riqueza  é associada  a felicidade; já a pobreza é temida e rejeitada ,  pois lhe  são  atribuídas incontáveis dificuldades. Parece que ninguém duvida que elas se oponham. Mas é possível algo nascer da união delas?
Segundo narra Platão, que reinventa o mito à sua maneira, o filho da riqueza com a  pobreza  se chama exatamente Eros, o Amor. Foi a pobreza, a mãe do Amor, que tomou a iniciativa, e furtou da riqueza  um rebento.No mito, a riqueza (  o deus Poros) é uma divindade que se basta, ou que crê se bastar e nada lhe faltar; a pobreza ( a deusa Pênia ou Penúria)  está sempre a carecer de algo. Decidida, ela quis ter um filho com  a riqueza , a quem nada falta , de que nada carece. Houve então uma noite, um torpor, uma embriaguez, uma inconsciência, um encontro de ambos e, de repente, ela estava grávida. Desse encontro nasceu Eros, o Amor. Entretanto, o Amor não é uma média entre a riqueza e a pobreza,tampouco uma fusão; diferentemente, ele é um acontecimento que dará à riqueza e à pobreza um novo sentido.
Como o pai ,o Amor é rico, mas de uma riqueza distinta daquela que fazia de Poros o deus da riqueza. Como a mãe, o Amor também é pobreza;todavia,não se trata de uma pobreza por carência,como a da Penúria;a pobreza do Amor é a de  nunca estar completo, se a si mesmo o Amor faltar. E esta também é sua riqueza:  apenas de si mesmo precisar.
O Amor, Eros, é a riqueza de nunca se estar completo, de se ser sempre “forma em rascunho”, como diria o poeta. A pobreza do amor não é exatamente a dependência ou a mera carência, como psicanaliticamente se interpreta, pois atribuir-lhe a mera carência é confundi-lo com sua mãe, esquecendo-se  do que lhe imprimiu o pai, a riqueza.Mas a riqueza que Eros porta e oferece não é a de seu pai ( que é a riqueza que crê nada lhe faltar, a riqueza da auto-suficiência, que pode ensejar insensibilidade pelo outro, bem como arrogância e pretensão acerca de si mesmo).A riqueza do amor é que ele liga tudo a tudo por intermédio dele mesmo.Diante dessa riqueza, mesmo a riqueza do seu pai se torna pobreza. A riqueza do Amor é o próprio desejar, e não o desejado como aquilo que falta. E esta riqueza também é a de uma  pobreza : pobreza enquanto um  não depender de nada que possa causar  servidão ao luxo, ao supérfluo, à ostentação. A pobreza do amor é uma riqueza : riqueza do amor de não lhe faltar.
Assim compreendida, a riqueza do amor não é o desejo da riqueza; a sua pobreza não é a que carece da riqueza ou de meios. Sua riqueza é de ser meio para uma existência que faz do Afeto , e não da mera posse material, o seu maior recurso.
Foi essa essência  híbrida e mestiça  do Amor que fez Plotino atribuir-lhe , séculos depois, uma natureza tripla: Eros é, ao mesmo tempo, um Deus, um Daimon e um movimento da alma (em Platão, o Amor não é uma divindade, ele é apenas um Daimon).
Das três naturezas do Amor, a que mais mistério tem é a sua existência como Daimon.O Daimon é um ser intermediário que liga os homens ao divino: o Daimon  liga o que nasce e morre ao que é eterno. Já o amor enquanto movimento da alma é tido por ser algo volúvel, circunscrito às circunstâncias, como todo movimento. Para Plotino, porém, somente quando a alma não consegue encontrar ou se agenciar ao Daimon, somente nessa situação é que o amor é passageiro,volúvel, circunstancial, e se confunde com o prazer físico despertado pela beleza dos corpos. Quando  essa experiência do amor  também é guiada pelo Daimon, que não é apenas físico, os movimentos da alma se tornam consistentes,intensos,uma vez que aos movimentos que a alma sente é ligada uma experiência de se conectar ao que não depende das circunstâncias, que é a natureza de Eros enquanto divindade ou Ideia.
Assim, para Plotino o Amor, Eros, não é apenas uma divindade, tampouco apenas um Daimon, e também não é apenas um movimento  passageiro da alma ( e do corpo). Eros, o Amor, é essas três realidades ao mesmo tempo, embora Plotino  acentue que é o amor enquanto intermediário, o Daimon,que realmente cumpre o papel de metamorfose, e liga os movimentos da alma ao que só é aprendido pela parte mais imaterial de nossa alma, o pensamento. O Amor é triádico:o Amor é movimento, é caminho e é pensamento. Nesse último aspecto, pensar também é uma atividade que se liga ao Afeto. O amor também é uma forma de tornar vivo o pensamento, uma vez que o Amor, além de movimento e caminho,  também é uma Ideia.O Amor é o caminhar( movimento), o caminho ( Daimon) e o  onde chegar ( a Ideia).E sabemos se chegamos quando o caminhar se faz sem cansaço, como o do livre nômade, e nunca quer parar.Descobrimos então que a Ideia também é movimento, que o movimento também é ideia, e que a Ideia também é caminho: caminho que nos leva ,antes de tudo, a nós mesmos.
 Assim, é o Amor ( Daimon) que liga o amor ( movimentos de nosso corpo e nossa alma) ao Amor ( enquanto realidade divina ou Ideia).É o Amor que liga o amor ao Amor.Somente o Amor tem por intermediário ele mesmo, somente ele é seu próprio meio: se ele pode carecer dele mesmo, também é apenas ele que pode completar-se.
E a lição mais surpreende Plotino deixa para o final. O filósofo Plotino diz ter aprendido essa lição com Orfeu, o poeta. A referida lição, dada sem livros ou ciência, consiste em um mistério que a inteligência não compreende e jamais compreenderá: essas três expressões do Amor são, no entanto, um único ser. Movimentos da alma, Daimon e Amor enquanto Ideia   são três expressões de uma única realidade. Quem a isso descobre, e o vive, experimentará nos movimentos de sua alma a própria eternidade do que é sem fim, pois é sempre meio.


É a essa dimensão do Amor que Espinosa chama de salut ou beatitude. Em latim, não por acaso, beatitude nasce de um termo que significa exatamente “riqueza”.

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