sábado, 19 de outubro de 2013

gravidade





Apesar de invisível, e de quase  não notarmos sua presença, o ar pesa, o ar tem peso. Quando ele se desloca, por exemplo, é capaz de mover corpos. Segundo os físicos, de nossa cabeça e costa até o último estrato da atmosfera terrestre há uma quantidade de ar imensa, cujo peso equivale a duas toneladas! Se fôssemos até o fundo do mar e houvesse quantidade de água semelhante sobre nós, simplesmente seríamos esmagados pela pressão , pois a água pesa mais do que o ar. Mas o ar também pesa. A criança quando começa a se pôr de pé  é a esse peso imenso que ela, pouco a pouco, ergue sobre as costas. Ela o faz porque não o levanta apenas com os músculos ou com a vontade, tampouco com o “livre-arbítrio".Ela  levanta esse peso  com a potência vital de uma crença que desconhece o impossível. A criança que se ergue expressa  uma afirmação incondicional, sem a qual a vida não venceria tudo aquilo que a desafia. Os cientistas  afirmam que o período da vida no qual fomos mais potentes corresponde àquele onde éramos fetos, embriões. E mesmo a criança nascida vence desafios que derrotariam o adulto. Somos mais fortes quando ainda somos  “formas em rascunho”,diria o poeta Manoel de Barros. E assim permanece o poeta mesmo  quando adulto: como forma em rascunho.
O filme “Gravidade”  se passa em uma paisagem incomum:  a órbita da terra, um espaço limítrofe entre o conhecido e o desconhecido, o ordinário e o extraordinário. Três astronautas se encontram na seguinte missão: consertar a lente do telescópio Hubble. Eles se acham entre duas realidades: a terra e o infinito.
Há três formas básicas de enquadramento no cinema : o close ( ou primeiro plano), o plano médio  (ou plano psicológico) e o plano americano ( ou grande plano). Neste último, em geral o personagem aparece imerso em um fundo que o engloba. No faroeste, por exemplo, há esse grande plano quando são mostradas  carruagens  atravessando  o deserto árido. Em filmes urbanos, é o anonimato dos grandes prédios que constituem o fundo onde se desenrolará a cena com os personagens. O fundo mostrado passa informações e contextualizações sociais, históricas  ou geográficas. Ele ajuda a situar a história.
Mas e quando o fundo é o “sem fundo”? E quando o fundo é o infinito desconhecido? O infinito não é histórico ou social. Ele não é uma paisagem. O infinito não é um céu que vemos da terra. O infinito é, por isso mesmo, “abstrato”, pois nele não há nenhuma codificação ou estrato. “Ab-strato” :o que existe fora dos estratos. No filme, este é o fundo: o que não tem limites e não pode ser enquadrado, em todos os sentidos. É com esse fundo desconhecido  que os personagens são confrontados. Em vários momentos, o filme mostra o close de um rosto imediatamente circundado por um mistério que não se pode conhecer, e esse mistério exterior, do lado de fora, reflete-se no próprio rosto e realça a intensidade do afeto que desfaz os mundos conhecidos, tanto o mundo físico  quanto o psicológico.
Um dos personagens vê ao fundo a terra, e nada vê de sua vida conhecida. O céu se torna um fundo abstrato que põe em primeiro plano tudo o que ocorre na terra lá embaixo. Um acidente ocorre: satélites destroçados por mísseis russos se tornam projéteis disparados que destroem tudo o que encontram pela frente. Apenas uma astronauta sobrevive. No entanto,sua alma encobre um drama vivido.O fundo eterno do céu silencioso acentuou o drama que ela vivera na terra, pois ela perdera sua filha ainda criança, e esse acontecimento a fizera  maldizer a vida. Ir para o espaço foi a forma que ela encontrou de ir “para o espaço”, de “sair do ar” , mas o sofrimento a acompanhou  e a fez perceber que ir ao espaço  foi a forma que ela buscou  de tentar  fugir  da vida. Sob o fundo eteno e escuro,tudo se fazia claro.O efeito do contato imediato com o infinito foi  um contato direto dela com os conteúdos psíquicos mais íntimos: a amplidão do espaço ampliava o que havia de pequeno em seu íntimo,como se o próprio telescópio Hubble estivesse apontado para ela.Mas olhar para esse íntimo ampliado ela não o podia como cientista, que só vê o que está diante e pode ser medido; e assim ela descobriu que sua ciência era uma forma de ignorância.
 Quando subimos ao alto da montanha, aumentamos nossa visão do horizonte. E mais ainda a aumentamos se voamos muito acima do chão.Porém,quando o astronauta sai dos limites da terra,  ele próprio adentra a um horizonte absoluto que nunca se desfaz, pois tudo se torna horizonte absoluto. E a vida cotidiana, aquela na qual  imperam os gestos, os hábitos,os costumes...tudo isso some e se torna tão ou mais distante do que as estrelas. O horizonte absoluto opera uma desterritorialização que nos faz ver a Terra. Curiosamente, a terra não aparece mais sob os pés: ela surge sempre no filme acima das cabeças dos astronautas, ela aparece mais como idéia do que como realidade tangível.A terra surge de forma inseparável da maneira  como cada astronauta a pensa.
Sozinha, presa a uma nave que ela mal sabia como  dirigir, ela decide morrer(desligando o oxigênio que nutre a cabine). Na nave  chegam apenas as ondas de um rádio amador,uma vez que o contato com a Nasa se perdeu totalmente. Sons simples alcançam  a nave:um cachorro que late, uma criança que chora e o pai que canta uma música de ninar.  Intensamente tocada por esses simples sons, a astronauta   também começa cantar, e assim ela produz para si um ritornelo.Lágrimas saíam de seus olhos e, com a ausência da gravidade,formavam pequenos espelhos esféricos e translúcidos que gravitavam ao redor dela ,como ao redor da nave gravitavam as estrelas.Nos sons que vinham da terra, e que nasciam da cena mais comum e simples,  nesses sons vinha mais do que o sentido habitual de tais fatos: nos sons  vinha o sentido da terra, cujo sentido nunca é dado, dado que ele existe para ser criado. Opera-se então  na astronauta uma clínica cuja terapia a própria  vida fornecia, e nada mais. Ela decide lutar pela vida e se arrisca a voltar à terra. O infinito fez-lhe uma clínica,o infinito que também é choro e canto do mais simples ser vivente.
 A nave adentra a atmosfera e cai no mar perto da costa . A nave afunda rapidamente , porém a astronauta consegue se soltar e sobe à superfície, e não foi apenas à superfície do mar que ela retornou .Ela sobe e respira profundamente, novamente ela respirava como quando nasceu.Ela nada de costas olhando para cima. O infinito escuro , abstrato como fundo, não pode ser mais visto: ela vê um céu azul com nuvens. Ela chega à praia e ali fica deitada de bruços, pois seus músculos estavam desacostumados com o esforço que a gravidade exige para que fiquemos de pé. Ela agarra um punhado de terra e agradece .  Com o mesmo esforço da criança que aprende a andar , ela  vai pondo-se de pé; um sorriso lhe escapa; e se ergue tendo ao fundo a natureza da qual ela faz parte.Diante dela, e dentro dela, a mesma coisa: a Pura Reserva. E é com o esforço do seu conatus, do seu desejo, que ela se encontra e se liga a ambas as naturezas ( que são, no fundo, uma só).
Enfim, ela entende com seu espírito e com seu corpo que o peso da  gravidade física  é nada diante do peso que pode ter uma existência para si mesma quando dela se ausenta ou se enfraquece  a  força vital e inconsciente   que , agindo em tudo o que é vivo, desperta o desejo de ficar de pé e andar com as próprias pernas.

2 comentários:

  1. Que texto incrível, professor! Vou correr atrás para assistir esse filme!! Achei muito bonita a aplicação que o senhor fez de algumas ideias trabalhadas em sala na história do filme. As ideias que mais me tocam é pensar nas coisas simples da vida como clínica para a alma e na simbologia do universo como um céu abstrato e infinito. É brilhante a sua colocação sobre a fuga da vida... quantas vezes nós nos vemos nessa situação de querer fugir dos problemas ao invés de resolvê-los? E quanto tempo perdemos fugindo da vida achando que estamos ganhando? Nossa! Obrigada pela oportunidade de ler esse texto! Estou muito feliz! Abraços!!!

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  2. Olá, Flávia!
    Muito obrigado. Você captou o sentido. Esse filme me surpreendeu bastante (positivamente). Vale a pena vê-lo . Ele tem relação com algumas coisas que já conversamos, sem dúvida.As imagens são impressionantes, e há muitas outras coisas para ver nele e descobrir.
    Um grande abraço,

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