segunda-feira, 30 de julho de 2018

manoel e as desaprendizagens


O aprender vem antes do ensinar.
Deleuze

Manoel de Barros diz que aprendeu com  o pintor Miró a necessidade de "aprender a desaprender" . Foi assim: Miró  desenhava de forma precisa e técnica. Porém, essa mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão na qual o próprio Miró achou que se prendeu. Sob imensa crise, ele parou então de pintar. Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró: certa vez , “atoamente”, Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava. A arte novamente subiu por essa mão não adestrada e foi alcançar a mente do pintor, regenerando  tudo o que parecia rígido e morto. O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Miró redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Quando aprendemos, imaginamos que o ensinar vem antes  do aprender, uma vez que aprendemos com  alguém que nos ensina o que já sabe, e que por sua vez aprendeu de um outro que já sabia, e este de um outro, e este de um outro ainda...Ou seja, tal lógica se sustenta na crença  de que lá no início dos tempos  houve  um Primeiro  que conhecia  tudo e começou a ensinar , isto é, um "Mestre Racional "  que parece ter nascido adulto , que nunca brincou e foi criança.  Mas quando aprendemos a desaprender , compreendemos que é o aprender que vem primeiro, como didática da invenção  e inocente  ignorãça.





domingo, 29 de julho de 2018

diferença entre "criar" e "inventar"

“Inventar”  aplica-se  a coisas. Celular ,  automóvel,  relógio , etc. existem porque foram inventados. Já o “criar” refere-se a atos que geraram  arte. Não só um poema  e uma música são criados,  uma filosofia também o é, na medida que criam ideias: ideias  para pensar ou para sentir .  Mas também se diz: “criei um filho”, e não “inventei um filho”; ou “criei um laço de amizade”, e não “inventei um laço de amizade”; ou “criei novas possibilidades para minha vida”, e não “inventei novas possibilidades para minha vida”; ou “criei um jardim” ,e não “inventei um jardim”. Pois tais realidades que criamos também são arte, como um poema ou um quadro,  e não coisa mecânica. Um revólver, enquanto objeto técnico, é fruto de invenção e, por isso, pode estar a serviço de um bandido ou de um fascista. A inventividade produz apenas coisas; e as coisas , por não possuírem vida, podem virar instrumento de morte a serviço de uma fantasia mórbida .  Já a criatividade produz ideias, e estas são  a vida e a saúde do pensamento. Em todo totalitarismo , não importando se político , comportamental ou acadêmico, são sempre os criativos os que sofrerão as maiores consequências. E são sempre deles, e neles, que nascem e perseveram as resistências.              







sábado, 28 de julho de 2018

Procustos, ontem e hoje


No mito, Procusto era um personagem que oferecia uma “cama”  fabricada por ele às pessoas que passavam cansadas  por uma estrada. Quando as pessoas se deitavam na tal cama, porém,  acontecia algo estranho: ninguém cabia direito nela. Quando  a pessoa era maior do que a cama , Procusto pegava um machado e decepava a   cabeça e os pés excedidos. Quando, ao contrário, a  pessoa  era menor  , Procusto   amarrava as pernas e os braços dela com correntes ,  esticando brutalmente   até desmembrá-los...  Ninguém sobrevivia àquela cama  transformada em túmulo: querendo que  cada um se amoldasse  à força, Procusto acabava matando todo mundo.  Quando as pessoas reclamavam, Procusto pegava uma régua e media com   rigidez a cama, e dizia: “A cama é   perfeita, exata: cada lado é idêntico ao outro . A régua não mente! O defeito está em vocês : diferentes e heterogêneos. Amoldem-se , mesmo que se violentando, e caberão na minha Verdade.” A cama de Procusto pode receber  vários  outros nomes:  “Minha Opinião”, “Meu Partido”,  “Meu Credo” ...O que não couber   em tais “fôrmas”, Procusto  vingativamente corta, nega, mata – física  ou simbolicamente .  Procusto  odeia tudo que “não se pode passar régua”, diria Manoel de Barros. Na política, os Procustos estão sempre tramando decepar a cabeça da honestidade a qualquer preço, pois ela não cabe em suas índoles estreitas.


domingo, 22 de julho de 2018

o assobio


Há uma passagem do livro “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche, na  qual Zaratustra cede às lamúrias de um anão que o seguia. Queixando-se de fragilidade, o anão suplicava amor e amizade  a Zaratustra, e lhe  pedia para ir em seus ombros. Uma vantagem o anão disse que Zaratustra extrairia desse favor: o anão veria o caminho e guiaria Zaratustra. Então, Zaratustra instalou o anão sobre seus ombros e seguiu sua viagem. Porém, não avançou muito, pois logo o anão começou a advertir Zaratustra dos perigos do caminho, perigos estes que o anão acreditava ver logo ali adiante. Zaratustra, contudo, nada via. O anão insistia, desesperado. Afirmava que logo ali havia um abismo, e antes deste um muro, e antes destes ainda ladrões, e lobos, e armadilhas, e a maldade, enfim. Chorando pelo infortúnio dos dois, já se imaginando roubados, envenenados, traídos, mordidos, dilacerados, enfim, vencidos, o anão julgou que o melhor seria parar, sentar, talvez se ajoelhar, e implorar ao destino perdão. Zaratustra já se inclinava para prostrar-se  derrotado  quando, de repente, um grito veio de dentro dele e protestou : “Pera lá, anão! Você quer é me submeter à tua covardia, às tuas pernas curtas!”. Livrando-se das seduções  da autopiedade, Zaratustra  expulsou o anão de suas costas. Foi a voz da vida,  da vida que resiste e avança, que protestou contra a resignação que já tomava conta do querer de Zaratustra. Em alguns, essa voz se faz alta para acordar quem dorme para a vida; noutros, nos já despertos, ela apenas canta, como em Cartola ou Orfeu, ou sabe se transfigurar em assobio, como em Manoel.





sábado, 21 de julho de 2018

o filósofo e o horizonte


O escritor Maurice Blanchot emprega  uma imagem para questionar  os  que defendem a “neutralidade” como atitude “justa” para enfrentar os perigos que ameaçam a sociedade e a vida.  Tal “neutralidade apolítica” seria como querer conhecer um quarto colocando-se fora dele, atrás da porta, e olhando para dentro pelo buraco da fechadura. O “neutro” imagina  descrever  assim apenas os fatos e tão somente os fatos que vê: sem “paixões” e envolvimentos , apenas a “razão pura”. Mas tal “neutralidade” , segundo Blanchot,  nada mais é , na maioria dos casos, do que  uma parcialidade que se dissimula,   ou  ainda mera alienação  mesmo.   Porém a  vida nunca é neutra : ela sempre toma partido a favor  daqueles que a querem mais viva  e por ela se arriscam, mesmo  correndo o risco de perdê-la. O oposto de se alienar  olhando a vida pela fechadura, ou por uma tela de tevê ou celular ,  o oposto disso é  fazer-se vivamente presente, mas sem perder de vista a janela . Se não houver janela, quebrar a parede para inventar uma ,  fazendo-se  abertura  por onde  entre luz e ar novo, para não sufocar.  Atrás de fechaduras fica quem se esconde, perto da janela vive quem ama horizontes.

( imagem: “O geógrafo”, de Vermeer. Segundo alguns, esse geógrafo a olhar para fora dos limites do quarto   seria o próprio Espinosa, o “geógrafo do pensamento”)





quarta-feira, 18 de julho de 2018

andar ao lado


“Odeio tanto seguir como ser seguido: para me acompanhar aonde vou, é preciso aprender a amar andar ao lado. ” (Nietzsche)

Não há nenhuma virtude no mero seguir. Quem segue ignora o caminho, e não sabe se ele vai dar num lugar melhor ou no abismo. Neste último caso, a verdade só é descoberta quando já se está caindo.... Há menos virtude ainda em querer ser seguido: tal pretensão às vezes nada mais é do que a vaidade de ter atrás de si muitos, para assim não se perder sozinho neste mundo sem rumo. O importante não é o que está no fim do caminho, o importante são os meios   que possibilitam o andar ao lado: cada qual sobre suas próprias pernas, ora aprendendo, ora ensinando, sem comparamentos , no mesmo sentido indo.

 “Não preciso do fim para chegar: a estrada põe sentido em mim. ” (Manoel de Barros).  
           

terça-feira, 17 de julho de 2018

poema & conceito


Poesia não é apenas versificação,
ela também é fabulação, narração de mundos.
Paulo Leminski

Segundo o poeta Leminski, três são as produções mais originais da mente: o Mito, o Conceito e o Número. A arte tende ao Mito, a filosofia se apoia no Conceito, a ciência só confia nos Números. O Mito é fabulação, o Conceito é conhecimento, o Número é descrição. Durante muito tempo, havia apenas o Mito. Depois, o Conceito veio tomar-lhe o posto . Hoje, o Número pretende dar conta de tudo.
Em sua origem, o Mito não era arte, pois a arte somente existe enquanto se refere a outra coisa diferente dela. A arte nasceu quando o homem tomou consciência da distinção entre algo que é real , “em si”, (não sendo, por isso mesmo,  inventado) e sua imagem produzida , enquanto realidade segunda, sensível. A realidade  pode ser coisa ou afeto. A pintura, por exemplo, imita a coisa, ao passo que a música imita o afeto . A poesia reúne pintura e música, por isso imita coisa e afeto, faz do afeto uma coisa real.  
Quando predominava o Mito não havia, portanto, distinção entre realidade e invenção. E talvez seja este o caráter imorredouro do Mito: a percepção de que toda realidade é invenção, mesmo a realidade que os Números pensam descrever “neutra e objetivamente”.
Somente quando surge o Conceito filosófico é que se teve, ou se inventou, a consciência da distinção entre realidade e invenção. Em Platão, por exemplo, o Conceito  nasce quando o Mito perde sua força geradora de mundos. O Conceito emerge desqualificando o Mito :este apenas balbuciaria a realidade sobre a qual o Conceito, e somente ele, sabe dissertar  com raciocínios  lógicos.  O Conceito substitui, ou crê substituir, o Mito como autoridade única para oferecer resposta à indagação fundamental: para quê e por que existimos? O Conceito pretende explicar a Origem e o Fim de toda existência, e não apenas da existência humana. O Conceito assim procede quando faz Racional Metafísica.  Porém, embora refute o Mito, o Conceito o absorve para fins pedagógicos, tornando-se a parte retórica e alegórica da filosofia. Por outro lado, o que era apenas um método ou andaime para o Conceito subir, o Número,  torna-se , com o tempo, o único critério objetivo para a mente se libertar da imaginação Mitológica e do pensamento metafísico, pois ambos impediriam a mente conhecer cientificamente a realidade, não a confundindo com fantasias e sonhos de olhos abertos. Com o triunfo da ciência, reina o Número.
Contudo, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande parecem resistir a tal quantitativismo descricionista, de tal modo que a cosmologia e a microfísica contemporâneas parecem retornar ao Mito, ao mesmo tempo que reatam amizade com a metafísica.
Queremos introduzir um quarto elemento nessa trindade Mito-Conceito-Número. Talvez esse quarto elemento seja um todo do qual cada um dos três é um diferencial, uma parte. Esse quarto elemento é o Poema. O poema é invenção de mundos, instauração de “por quês?” e “porquês”, sendo também uma forma de conhecimento do mundo. O Poema pode auxiliar a mente a parar de brigar com a mente, quando esta se autodivide em impérios estanques.  A mente é apenas uma, conquanto se expresse vária. Não seria isso, talvez, o que Espinosa nomeia “Ciência Intuitiva”?





segunda-feira, 16 de julho de 2018

- lua em conjunção com vênus

O galo canta porque ele pressente,
ainda em meio à noite,
a manhã chegando.

Não seria esta a essência de todo cantar:
anunciar , na manhã que vem,
todas as manhãs que ainda vão chegar?

Sempre haverá uma manhã por vir,
por mais longa que seja a noite.
Disso sabe quem canta.







Com a mão direita segurando o passado,
para que não fuja,
e com a mão esquerda estendida ao futuro,
para que me puxe,
abro  meu coração para que entre  nele o agora.

domingo, 15 de julho de 2018

o espelho do mundo


Ao verem a terra de longe, os astronautas disseram a famosa frase: “ a terra é azul.” Porém, eles não viram  a verdade inteira...Toda superfície coberta de água se torna um espelho:  isso vale para uma poça, e ainda mais para os oceanos. Os astronautas viram apenas a cor e a forma da terra, porém não perceberam o que a terra é capaz de fazer: ela pode refletir o que está em torno dela, como todo espelho. A terra é o espelho da lua, do sol, do universo inteiro. Ela já reflete na pele celeste dela  o que o telescópio  Hubble, vasculhando a imensidão externa , leva muito tempo para começar a ver.A terra  devolve a cada ser do universo a imagem própria, para que por intermédio dela cada coisa,  mesmo o breu ao redor das estrelas,  se possa ver. A terra não é o centro do universo, ela é o espelho.Como um Narciso às avessas, ela é o espelho de tudo que a cerca, tal como é , em nós,  o pensamento que se fez  claro.





sábado, 14 de julho de 2018

mawaca /camões




Tu só, tu, puro amor, com força crua
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte tua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

( Camões)

pensar multicor antifascista


DIFERENÇA ENTRE TER UMA PERSPECTIVA E TER  MERA OPINIÃO

Para haver perspectivas diferentes é preciso alguma coisa em COMUM entre as perspectivas. Por exemplo, o vermelho é uma cor, assim como o azul também o é. Vermelho e azul são perspectivas diferentes do que é ser uma cor. O branco não é uma cor, mas o apagar das múltiplas diferenças coloridas em um mesmo rebanho incolor. O preto também não é uma cor, mas o negar das cores e sua luminosidade sob uma desacesa homogeneidade. Branco e preto não são perspectivas sobre a cor: eles são um apagar e um negar a cor. É isto a opinião: um negar e um apagar o pensamento. É por isso que são sinônimas do não pensar  expressões  como “deu branco” e  “mente entrevada”. Entre o azul e o vermelho há diferença de perspectiva porque cada cor é, antes de tudo,  uma afirmação diferente de uma mesma realidade comum que se expressa de múltiplas maneiras. Já o preto e o branco, feito a opinião cega, não enxergam aquela realidade comum, pois negam e apagam cada expressão singular dela.
 Na política, as perspectivas nunca são neutras, afirmadoras que são da democracia. Liberdade, Igualdade e Fraternidade são perspectivas diferentes que têm na democracia o comum que lhes dá vida. Já “fascismo” vem de “feixe” : o   símbolo fascista é igualdade e liberdade como partes de um feixe ao redor do cabo de um machado vermelho  , parecendo uma  arma suja de sangue... Assim,  liberdade e  igualdade, como meras palavras , podem estar na boca tanto  de um fascista quanto na de um democrata, sem distingui-los . Pois o que os distingue de verdade é a defesa do comum: o democrata extrai do comum a força de sua perspectiva construtiva, enquanto o fascista põe a     liberdade (de “opinião”) e a igualdade  ( “homogeneizante” ) a serviço de seu machado a  ameaçar de morte a heterogeneidade social.
.                                                                                                                                                                                           
 ( imagem: Espinosa  - pensar  multicor antifascista)





(imagem abaixo: o preto, o branco e o feixe como cabo de um machado  sujo de sangue, símbolo-bandeira do fascismo)


sexta-feira, 13 de julho de 2018

armas


Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas
Deleuze 
      

A arma do pintor são as tintas; do pensador, ação e palavras.
A arma do poeta são os versos; do educador, exemplo e aulas.
A arma do democrata é a democracia:
ora resistência , ora avanço , sempre união.




terça-feira, 10 de julho de 2018

os comparamentos matam a comunhão


“Os comparamentos matam a comunhão” . Esse pensamento de Manoel ilustra  o que Espinosa chama de “perfeição”. Esta  não nasce da comparação entre dois seres, mas da capacidade que tem um ser de realizar uma ação, de acordo com sua maneira de ser. Perfeição não é um “Modelo Ideal” ou “Padrão”  a ser alcançado, do qual alguns estão mais pertos e outros mais longe.  Perfeição é o que  um ser realiza,  acentuando sua singularidade, de acordo com aquilo que ele pode. Na paraolimpíada, por exemplo, faremos uma ideia equivocada da perfeição se compararmos um nadador paraolímpico com um olímpico, tomando este último como modelo para julgar aquele, dado que a ausência de um braço ou perna no primeiro somente é uma “falta” quando o comparamos com o nadador olímpico que os tenha. Porém, nenhuma comparação nos ensina a conhecer a singularidade de algo. Visto nele mesmo, em sua singularidade, o nadador paraolímpico não se explica por algo que lhe falta, mas por aquilo que ele é capaz de fazer. E neste fazer não há falta, há potência como expressão ou comunhão afirmativa da vida. O nadador paraolímpico e o olímpico têm algo em comum: são atletas. Cada um expressa esse comum de acordo com o que pode. E não é apenas com braços e pernas que se nada, antes é preciso a força da mente.
Manoel de Barros também dizia: “Não sou afeito a comparamentos, o poema surge da comunhão”.  Ser incomparável nada tem a ver com ser o primeiro de uma escala que vai do primeiro lugar ao último. Ser incomparável é ser único, fazendo-se único, isto é, exemplo de superação . Não superação dos outros, mas superação de si mesmo.
                                                                                                                                                                  
(imagem: incomparável ágora brincativa)





domingo, 8 de julho de 2018

a celestina


"Lhasa" é o nome da cidade sagrada dos budistas do Tibet. Essa cidade fica bem no alto das montanhas mais altas do nosso planeta,e é  considerada a cidade  mais perto do céu . Não é uma "Cidade Celeste", como a de Santo Agostinho; mas é, entre as cidades terrestres, a mais próxima do celeste. Talvez, por isso, ouvir Lhasa se parece com   uma experiência de "celestamento" .Foi Manoel de Barros que inventou essa palavra-experiência, esse "empoemamento",  ao dizer: "Poesia é celestar as coisas do chão". Aliás, a própria Lhasa  tem uma música  chamada  "La Celestina"...




Soon This Space Will Be Too Small
(Em Breve Este Espaço Será Muito Pequeno/Lhasa de Sela )
                                                                                                                      
Em breve este espaço será muito pequeno,
e eu vou lá para fora,
para o enorme Iado de fora,
onde o vento selvagem sopra
e as estrelas frias brilham.

Vou colocar o meu pé
na estrada da vida
e ser levada daqui,
para o coração do mundo.

Eu vou ser forte como um navio
e sábia como uma escolha.
E eu vou dizer as três palavras,
isso vai nos salvar a todos
E eu vou dizer as três palavras,
isso vai nos salvar a todos

Em breve este espaço será muito pequeno.
E eu vou rir tanto,
que as paredes vão desmoronar.

Eu vou morrer três vezes
e nascer de novo
em uma pequena caixa
com uma chave de ouro.
E um peixe voador
vai me deixar livre.

Em breve este espaço será muito pequeno...
Todas as minhas veias e ossos
serão queimados a pó.
Você pode jogar-me em
uma panela de ferro preto
e a minha poeira vai dizer
o que o meu corpo não vai.

Em breve este espaço será muito pequeno
E eu vou lá para fora
E eu vou lá para fora
E eu vou lá para fora




A CELESTINA

                                  
Minha filha, fique comigo um pouco.
Por que anda arrastando esta miséria?
Espere um momento e te desamarro...
Mas em que bagunça se colocou, menina!

Quão amargos são os feitos que adivinhas!
Quão escura é a volta da sua memória!
E quanto à tua coroa de espinhos...
cai-te bem, mas a pagarás caro...

Com teu olhar de fera ofendida;
com teu curativo, onde não há ferida;
com teus gemidos de mãe sofrida,
espantarás tua última esperança.

Faça do teu punho algo carinhoso;
e do teu adeus um “Oh meu amor!”
E do teu semblante um sorriso;
 e da tua fuga um “Já vou! Já estou chegando!”

Minha filha, que pena me dá ver-te!
Deixando esquecido o teu corpo.
Muito inteligente, pobre boba, a se dedicar
à eterna dissecação de um pecadinho.

Mulher despe-te e fique calma:
a flecha te procura.
E é o homem, no fim, como sangria,
que às vezes dá saúde e às vezes mata...
E é o homem, no fim, como hemorragia,
que às vezes dá saúde e às vezes mata...


sábado, 7 de julho de 2018

fausto


É impossível um homem aprender aquilo que ele acha que sabe.
Epiteto


Mefistófeles: “ - Vim cobrar aquilo que, por contrato, você me prometeu dar.”
Fausto : “ -Mas o que lhe prometi? Assinei sem ler...”
Mefistófeles: “ - Você estava triste e acabado por dentro, embora por fora ninguém notasse. Eu lhe dei novamente vida e juventude, ainda que só em aparência, pois é só a aparência  que os homens em geral notam. Fique tranquilo,  não quero sua inteligência, quero apenas uma parte de sua alma:  seu caráter. Você continuará inteligente, ótimo com as palavras e teorias...Mas seu caráter será meu..."
Fausto: “- Serei um ‘sem caráter’?”                                               
Mefistófeles: “- Por que o espanto? Sabe aquele Senador que todos beijam a mão? Pois é ele que beija a minha em agradecimento pelos meus serviços. Sabe aquele Magistrado? Ele nunca dá uma sentença sem me consultar, ele também é meu. Sabe aquele religioso que virou prefeito e  que diz se ajoelhar diante de Deus? Mentira, é diante de mim que ele se ajoelha. Por que você resiste? Que heroísmo ético ingênuo é este? Saiba você que em minha porta há uma fila de gente querendo meus favores. Comigo você ficará rico, terá poder....Desde que seu caráter seja meu."
Fausto:   “- Mas e Margarida? Não quero perdê-la, estamos noivos.”
Mefistófeles: “- Vou comprá-la agora!”
Mefistófeles encontrou Margarida e ofereceu tudo o que podia oferecer para assediá-la. Dela, porém, ele ouviu apenas uma palavra: “Não”. Derrotado, com o rabo entre as pernas , foi-se embora o Diabo.
( na mitologia germânica, “Margarida” é um dos nomes da “Alma”, assim como “Psiquê” em grego).






eros & psiquê

Existiu na Grécia uma jovem chamada Psiquê. Sua beleza era tanta, que a própria deusa da beleza se sentia inferiorizada diante  de Psiquê. A deusa da beleza era Afrodite. Mas  Afrodite era portadora da beleza física, esta que vemos com nossos olhos. Antes de Psiquê , conhecia-se apenas aquele tipo de beleza da qual Afrodite era a deusa. Psiquê, diferentemente, portava uma beleza distinta, pois “Psiquê” é o nome grego da Alma[1].
A Alma é bela, essa a mensagem que nos deixam os gregos. Sua beleza rivaliza com a beleza do corpo, a única que Afrodite conhecia. Todavia,  enquanto Afrodite era uma deusa, Psiquê era uma simples mortal.Por não conter sua inveja, e querendo atingir a sua rival,  Afrodite resolveu  vingar-se ...
Afrodite ( A Deusa da Beleza): "- Como!? Existe entre esses seres efêmeros , que mais parecem um pó rasteiro que o vento leva, existe entre os homens alguém mais  bela do que eu? Como pode!?E que nome estranho esse ser tem : Alma (Psiquê)...Como a alma pode ser mais bela do que eu, que sou o Corpo!Só em mim pode haver beleza, já que beleza só existe para os olhos! E são os homens mesmos que me adoram com os olhos!Não apenas os homens me adoram.A prova disso é que meu servo maior é o Amor, que não tira os olhos de mim e me cobiça para ser posse exclusiva sua. Mas eu não cedo e jogo com ele, uso ele para reinar sobre todos.Essa Alma não pode ser mais bela do que eu! Mas não quero ir conferir ou ficar em dúvida..."
(Afrodite manda chamar então Eros, o Deus do Amor, que era seu servo)(Dirigindo-se a Eros, Afrodite ordena) :"Quero que você vá onde vivem os homens, encontre uma jovem chamada Alma e atravesse o coração dela com sua flecha . Faça ela se apaixonar pelo homem mais pobre, burro e feio que houver em toda Grécia..."
O Amor só tem olhos para a beleza, ele detesta a fealdade. É preciso entender  a fealdade em um sentido bem amplo, pois existem também palavras e ações feias. Nunca o Amor se enamora de tais palavras e ações: quando as vê, o Amor desvia os olhos. Por  isso tais palavras e ações têm dificuldades em germinar, pois para que algo se reproduza é preciso a influência do Amor.
De tudo o que o Amor havia visto no céu e na terra,  Afrodite era, sem dúvida, a coisa mais bela. Por isso, ele a acompanhava e fazia o que fosse do desejo dela. Em troca, a única coisa que o Amor exigia de Afrodite era vê-la e estar-lhe perto . Valendo-se dessa situação, Afrodite resolveu fazer de Eros  a arma de sua vingança contra aquela que possuía uma beleza que não pertencia ao seu império.
E lá veio o Amor  descendo do céu em busca da Alma na terra. O Amor nunca havia visto antes a Alma. Afrodite esquecera-se desse detalhe, pois o que poderia acontecer nesse encontro entre o Amor e a Alma? Ele nunca a tinha visto antes. Ele não sabia o que ia encontrar. Guiava-o a memória da Beleza do Corpo, pois tal Beleza era Afrodite. Nada do que seus olhos vissem fora dele poderia ser mais belo do que a recordação que vivia em sua memória, assim pensava o Amor antes de encontrar-se com a Alma.Afrodite era a coisa mais bonita que ele vira, e essa verdade o completava , desde que ele estivesse perto dela.
Porém, nem o Amor e nem o Corpo sabiam o que podia a Alma, sobretudo quando a vemos, quando nos encontramos com ela.Ouvir apenas falar dela não é conhecê-la. A Alma somente pode ser conhecida diretamente, sem intermediários.

Então, o Amor achou  a Alma, Eros conheceu Psiquê.O Amor sentiu nascer dentro dele um outro, esse outro era um amor novo,  que era o Amor mesmo,  porém renovado, potencializado, mais amor do que nunca. Esse amor pela Alma não era uma negação do antigo amor ao Corpo, mas o conhecer algo novo que afirma mais o que já somos. Enquanto o amor pelo Corpo submetia Eros a caprichos e prazeres exigidos pelo ser amado, como se fosse um preço a ser pago, esse amor nascido do encontro com a Alma o fazia voltar-se para si mesmo e descobrir uma graça nascida de um desejo que não se esgota na posse e no imediato .O Amor percebeu então que ele podia ser reinventado, experimentar uma nova maneira de ele ser . E que ele próprio, o amor, desconhecia tudo o que o amor pode. Ele viu que se desconhecia e que havia nele potencialidades de amar que somente poderiam se tornar reais se ele se unisse à Alma.A união dele com o Corpo era exterior ; contudo, o Amor sentia que para ele se unir à Alma ele deveria morar dentro dela: cada um seria no outro, sem carência ou falta. Mas o que é a Alma? Ela é invisível, intangível, porém como tem realidade e potência para quem a conhece! E quem a vê nunca mais a esquece.E ela não está nos céus, nem no Olimpo, ela vive dentro do homem.O Amor é eterno, mas não o é a Alma. Ela nasceu ninguém sabe como, pois onde menos se esperava , ali  nasceu ela. Ela não nasceu divina, nasceu humana. Sua divindade seria conquistada por Justiça, e não por nascimento ou aparência. Só uma divindade pode gerar uma divindade. Mas a Alma, embora não fosse divina,   fez nascer no Amor um ser novo, que era o Amor mesmo com  olhos outros, diferentes,capazes de verem  o que se esconde de belo nos homens, apesar de toda feiura que eles frequentemente são, dizem  e fazem.
O Amor, no entanto, não se revelou imediatamente. Ele guardou-se para o momento oportuno. E lá foi ele embora, com sua própria flecha atravessada no peito.A Alma, por sua vez, nada viu, porém sentiu atravessar-lhe um vento estranho.

O tempo passou , as irmãs de Psiquê se casaram e Psiquê permanecia só. Embora todos a considerassem bela, ninguém a pedia em casamento, tampouco ela se apaixonava por alguém. Contudo,  o que ninguém sabia, nem mesmo Psiquê, é que era o próprio Amor que evitava que a Alma  se apaixonasse.
Achando a situação por demais estranha, o pai de Psiquê resolveu levá-la  até ao Oráculo de Delfos, para que o deus Apolo revelasse qual seria o futuro da jovem. Chegando lá, ambos ouviram da Sacerdotisa  de Apolo uma revelação trágica: Psiquê deveria ir até um determinado castelo próximo dali. Chegando lá , Psiquê aguardaria pela chegada da noite. Sob a escuridão da noite, chegaria também o dono do castelo, que seria também seu noivo. O dono do castelo era um monstro. Então, à noite, Psiquê deveria deitar-se  na cama do monstro, para assim ser sua esposa; pela manhã, ela deveria deitar-se na mesa, pois ela seria o café da manhã desse terrível esposo.
Apesar da natureza trágica desses acontecimentos por vir, Psiquê  não pensou em escapar , pois isso era impossível. Àquela época, os gregos acreditavam que a vida de cada um era governada pelo Destino, do primeiro ao último instante da vida. Por isso, a Alma aceitou seu Destino. No dia seguinte, ela rumou sozinha para o encontro com a morte.
Ao entrar no castelo, cuja porta estava aberta, Psiquê não encontrou ninguém em seu interior. Então, ela subiu até ao quarto para arrumar-se para aquela que seria , ao mesmo tempo, a sua primeira noite como esposa e a sua última noite de vida.
Quando veio a noite, a Alma deitou-se no leito, e passou a aguardar, conformada,  o noivo-monstro. A janela estava aberta, como se fosse uma pálpebra. Através dela,podia-se ver  a lua imensa a observar o quarto . Uma súbita brisa entrou pela janela e rodeou a Alma suavemente. Mas aquela não era uma brisa comum. Como se tivesse braços, a brisa envolveu a Alma, e  a apertou vagarosamente. Então, como se adquirisse boca, a brisa soprou no ouvido da Alma as seguintes palavras: “Psiquê, só lhe peço uma coisa: confie em mim. Se você confiar, no fim será  feliz”. Após ouvir essas palavras, a Alma sentiu aquele abraço invisível apertar cada vez mais. O abraço provocava na Alma sensações  nunca antes por ela sentidas, sensações de prazer e satisfação. Por fim, a Alma  perdeu os sentidos, mergulhada que estava em um transe nunca antes por ela vivido.
Ao acordar  pela manhã, Psiquê se viu sozinha na cama. Contudo, o lençol ao seu lado estava amarrotado,como se alguém tivesse dormido ao seu lado. E o mais importante: o monstro não havia aparecido.
Na noite seguinte, a Alma repetiu o mesmo comportamento da noite anterior, e se pôs a esperar  a morte. Todavia, novamente a brisa entrou pela janela e a envolveu. A última coisa que a Alma viu antes de desfalecer de novo foi, através da janela, a lua a lhe sorrir.
Na manhã seguinte, o mesmo fato da manhã anterior: o lençol amarrotado  indicava  que alguém dormira com Psiquê, mas partira bem cedo. Quando veio a noite, novamente o mistério se apoderou da Alma, e com ela dormiu. Pela manhã, ninguém...Isso se repetiu por noites e manhãs seguidas....e nada de a  morte vir para  devorar a Alma. 
Certa vez, no meio da tarde, bateram à porta do castelo. Eram as irmãs de Psiquê: a Desconfiança e a Dúvida. Estas ficaram surpresas ao verem a Alma ainda viva. E mais surpresa lhes causou a alegria estampada no rosto da Alma. De imediato, as irmãs de Psiquê pediram para que esta lhes contasse o que afinal aconteceu e, principalmente, qual o motivo de toda aquela felicidade que a Alma  não conseguia esconder, embora tentasse.
Enquanto ouviam a história, as irmãs de Psiquê começaram a se sentir incomodadas com aquela felicidade da irmã. Pois parecia que a Alma havia experimentado algo que elas, mesmo sendo casadas, nunca experimentaram.
Então, a  Desconfiança  se aproximou da Alma e lhe dirigiu palavras que visavam pôr aquela felicidade da Alma em suspenso. A Dúvida, por sua vez, aproveitando-se de seu poder sobre a Alma , disse-lhe para descumprir o prometido, e ver quem era de fato aquele ser que lhe visitava todas as noites.   Descontrolada  pela influência da  Desconfiança e da Dúvida, a Alma ficou insegura de si e do que sentia . Por fim ,ela perdeu  sua capacidade de acreditar. Com isso,   foi-se embora  a felicidade que nascera dentro dela. 
Antes de partirem, as irmãs de Psiquê lhe deixaram  uma vela que tinha poderes especiais, pois tal vela  podia iluminar o invisível. Naquela noite, novamente se repetiu  a visita do mistério . Mas, dessa vez, Psiquê tinha um plano. Ela esforçou-se para não desfalecer como das outras vezes, ficando a fingir que dormia. Antes de o dia amanhecer, ela acendeu a vela e a aproximou lentamente do ser que dormia ao seu lado ainda. Pouco a pouco, a luz foi tirando da penumbra o ser misterioso que nela se ocultava. Quando viu por completo o ser que o mistério escondia, a Alma ficou maravilhada, pois nunca antes ela havia visto ser tão encantador. Pois ao seu lado estava nada mais nada menos do que o próprio Amor[2]. O Amor havia amado a Alma durante todas aquelas noites. Foi o Amor então que a fizera feliz, como  nunca antes ela havia sido. Naquele dia no Oráculo, foi o próprio Amor que, ocultando-se ainda,  falou à Alma, querendo ser desta o destino.
Contudo, tão absorta a Alma se encontrava, que ela não reparara que a cera da vela estava prestes a pingar. Um pingo quente escapou da vela, e caiu sobre o corpo do Amor,  acordando-o de súbito. Sentindo-se traído, o Amor  levantou-se rapidamente do leito. Ao puxar as flechas que pendiam sobre a cama, uma delas feriu a Alma. Tais flechas eram usadas pelo Amor como instrumento para que  alguém, por intermédio delas, se apaixonasse por outrem. Todavia, como a Alma estava olhando para o Amor no momento em que foi ferida, era pelo Amor então que a Alma passou a ter amor. O amor do Amor abrigou-se no coração da Alma, e isso a tornava ainda mais bela. Contudo, antes de partir , Eros lhe disse: “ Psiquê, somente um pedido eu lhe fiz, mas você não foi capaz de cumpri-lo. Sem confiança não há amor.”
Feliz por ter encontrado o Amor,  mas ao mesmo tempo infeliz por tê-lo perdido por não confiar, a Alma viu-se sozinha no castelo. Porém, subitamente ela reparou que  não estava de fato sozinha, pois o Amor se instalara em seu coração, e dele expulsou  a descrença. Mas este Amor no coração era apenas a semente que, para germinar, precisava encontrar o Amor no mundo. Então, a Alma saiu para o mundo, atrás do Amor que um dia teve, e que perdeu por dar ouvidos à  Desconfiança e à Dúvida.
A cada um que encontrava pelo caminho, Psiquê perguntava se em algum lugar esta pessoa viu o Amor ou se sabia onde ele estava. Para sua surpresa, poucos confessavam que o haviam visto, e muitos  outros diziam que ele não existia . Dentre  aqueles poucos que o haviam visto, um dizia que o Amor se chamava Carmem; outro confessava que, no passado, teve um Amor   chamado Ana; uma outra dizia que o Amor, para ela, atendia por Pedro. Ou seja, cada um havia visto o Amor numa pessoa. Mas a Alma procurava pelo Amor cujo nome é, apenas, Amor: o Amor  puro ― que é, ao mesmo tempo, o mais singular e  o mais universal.
Por fim, Psiquê resolveu pedir o auxílio dos deuses. Para seu infortúnio, a primeira divindade que ela encontrou foi exatamente Afrodite. Escondendo de Psiquê a inimizade que por ela sentia, Afrodite fingiu sofrer com o padecimento da Alma, e disse saber como acabar com aquele tormento. Mas o que Psiquê não sabia, e nem desconfiava, é que aquilo tudo era fingimento de Afrodite. Na verdade, esta queria aproveitar o sofrimento de sua rival para melhor derrotá-la.
Valendo-se da situação, Afrodite resolveu vingar-se com uma mentira, e disse a Psiquê que esta somente teria o Amor de volta se fizesse inúmeras  tarefas arriscadas e cansativas.  Psiquê, no entanto, disse-lhe que não mediria esforços para ter o Amor de volta. Assim, Psiquê caía na armadilha de Afrodite. Esta acreditava que o cumprimento de tarefas tão desgastantes findaria com a beleza da Alma. Como consequência, a Alma ficaria feia e acabada, e o Amor nunca mais olharia para ela.
Contudo, embora se dedicasse com afinco às penosas tarefas, a Alma nunca  se enfeava. Uma das tarefas penosas era ir a uma praia imensa e separar os grãos escuros dos claros.Na hora, porém, apareceram milhares de formigas que vieram auxiliar na tarefa. Quando a alma se sacrifica para buscar o afeto que a potencializa, a natureza inteira se solidariza e não a deixa sozinha, por mais que ela pense estar.  Assim, o sacrifício pelo Amor, ao invés de a enfear e cansar,  a tornava ainda mais viva e bela.
Enfim, vendo o Amor que a Alma o buscava mais do que a tudo, ele resolveu não se esconder mais , e mandou seu irmão ir até à Alma para dizer-lhe onde ele se encontrava. O irmão do Amor é o Perdão. O Perdão disse à Alma que o Amor se encontrava escondido dentro dela.
O Amor quis então que ele e a Alma nunca mais se separassem. Para isso, seria preciso que a Alma nunca morresse. Era preciso que a Alma também se tornasse divina. Com esse intuito, o Amor procurou a Zeus, o deus da Justiça, e pediu-lhe para que ele imortalizasse a Alma,tornando-a divina. Zeus disse então à Alma: "Aparentemente, parece fácil, em palavras, conquistar a imortalidade, porém é a coisa mais difícil na prática!...Se os homens fizessem na prática o que fazem com as palavras, o Olimpo estaria repleto de homens... ". Então Zeus diz o que é preciso a Alma fazer para se imortalizar: "Basta apenas estar sempre na companhia do Amor, nunca dele se afastar, não importa onde e quando. Eis o mistério maior da alma:embora mortal, a alma se imortaliza quando ama."







[1] “Psiquê” está na raiz de “psicologia”, que é o “estudo da alma”.
[2] Sem que Psiquê  desconfiasse, foi o Amor que, tomando o lugar do deus Apolo, falou com Psiquê através do Oráculo. O intuito do Amor era, no tempo oportuno, revelar-se à Alma. Por isso, ele inventou a história do monstro.



O texto acima  é uma versão ampliada de um capítulo deste  livro que escrevi:



sexta-feira, 6 de julho de 2018

david hume e o empirismo


As ideias estão no chão,
a gente tropeça e acha a solução.
Titãs

Onde o interior e o exterior se tocam:
aí se encontra o centro da alma.
Novalis


David Hume, o filósofo empirista, dizia que as ideias nascem das sensações. Não há  ideia que não tenha nascido da sensação. Depois, ele precisa seu pensamento e diz: não há oposição entre a ideia e a sensação, pois a ideia nada mais é do que uma sensação enfraquecida, desvitalizada. Mas quando a ideia “entra” em nossa mente ela não penetra em uma casa vazia. Nossa mente não é uma casa vazia. Assim como uma casa pré-determina o percurso que faremos dentro dela em razão dos compartimentos ou cômodos que ela tem, quando a ideia entra em nossa mente ela se submeterá a certas exigências da nossa mente.
Nossa mente não consegue, por sua natureza, lidar com duas  coisas: o imprevisível e o caos. E aqui está o problema: a origem das ideias, segundo Hume, é imprevisível, pois vem de algo que existe fora da mente. Então, para controlar essa natureza imprevisível e caótica da ideia, a mente tem uma arma: as regras. É com as regras que a mente luta contra o caos das sensações e com a imprevisibilidade de tudo o que existe fora dela e que ela não tem como dominar, dado que a mente se percebe existindo em um mundo que não depende dela para existir, embora ela precise desse mundo para ser uma mente, apesar de ela não saber o que esse mundo é em si. Para proteger-se do caos, para não ser ela própria um, a mente se arma com regras. Estas não legislam sobre as coisas tais como elas são, elas se aplicam apenas às ideias, que são a existência mesma, porém enfraquecida. Digamos que a ideia não é o corpo que a roupa veste, mas a roupa sem o corpo. Deste ela mantém apenas a forma, o vestígio, a semelhança. As regras da mente apenas valem para o caos que se enfraqueceu e se tornou ideia, mas nunca as regras poderão um dia transformar totalmente o caos em objeto transparente às regras de nossa mente.
Todavia, como a existência humana se dá na superfície das coisas, e não na sua profundidade , as regras modelam nosso mundo, e cremos que nosso mundo é “o” mundo.
São três as principais regras que constituem nossa mente, e por meio das quais a mente conformará as ideias: causalidade, identidade, espaço/tempo.Fora da mente não existe causalidade, identidade, espaço e tempo. Porém, essas regras são “vazias”. Para elas ganharem vida, elas precisam ser preenchidas com um conteúdo,  esse conteúdo são as ideias. É aqui, e não antes,  que surge a  percepção. Ter percepção não é a mesma coisa que ter sensações. Estas antecedem aquela. As sensações são as ideias mesmas.  A ideia  é,  ela mesma, uma sensação que se enfraquece e deixa de ser o que ela é para se transformar em outra coisa dentro da mente, quando então a sensação enfraquecida se conforma às exigências de haver regras, causas, identidades, sucessão temporal e contiguidade espacial. Nela mesma, a ideia é a sensação mesma, e esta não é uma coisa ou substância..Então, a ideia não é ideia de algo, mas enfraquecimento de algo que se torna então ideia, e como  ideia pode entrar em uma mente e ser regrada, tornando-se assim representação de uma coisa, de um  objeto.
Quando a sensação enfraquecida é “domada” pelas exigências da mente, somente aí nasce o que chamamos de “percepção”:  percebemos então uma cadeira, um homem, uma coisa, enfim. Além disso, a ideia que nasce da sensação é sempre ideia singular,simples, ao passo que, submetidas às regras, as ideias simples se unem a outras, formando ideias compostas. “Cadeira”, por exemplo, é uma ideia composta de outras ideias. Tudo o que percebemos , e que chamamos de realidade objetiva, são já ideias compostas, isto é, ideias que se unem a outras segundo a regra da identidade, sobretudo.
 Nossa percepção é construída, não é natural. As regras da mente são projetadas para fora como se pertencessem à  própria natureza das coisas. As regras da mente não são individuais, e nem apenas biológicas. Segundo Hume, o natural e o social se confundem. O que hoje julgamos natural não o era para os homens de sociedades passadas. E o que hoje julgamos natural  não o será para as sociedades que virão. O homem medieval julgava que a bruxa era a causa da peste. Hoje o homem julga que são os germes a causa. Há algo em comum entre o medieval e o homem de hoje: a crença na ideia de causa. Talvez, quem sabe, no futuro se julgue que as doenças têm outras causas, mas ainda assim haverá a crença de que há uma causa. Essas regras valem não apenas para o âmbito do conhecimento, elas valem também para o mundo das práticas.Por exemplo, em toda época, em qualquer sociedade, os homens sempre acharam que a felicidade tem uma causa. Para alguns, a felicidade estava na contemplação do Bem; para outros, na posse de muitas mulheres; há ainda os que dizem que a causa está no acúmulo de bens. A ideia de causa define o que os homens acreditam ser  “o normal”.O que caracteriza toda época é que cada época julga ser sua normalidade o normal de todas as épocas.E a época mais terrível é aquela que julga que todas as épocas  que a antecederam eram apenas esboços para se chegar a ela, e que ela é a época definitiva, além da qual não haverá nenhuma outra, pois ela é  o próprio "fim da história".
O artista, porém, parece escapar do mero domínio das regras da mente, e é por isso que ele é um extemporâneo, alguém que escapa aos determinismos comportamentais de sua época histórica.Mais do que histórico, o artista é um devir. Nunca o artista se contenta com a felicidade dos “normais” de sua época histórica, sobretudo com a felicidade e sucesso daqueles que são considerados os "artistas normais " de sua época, os quais a mídia explora e vende.Ele quer ir além das regras da mente, para assim viver/experimentar o perigoso lugar onde as ideias nascem. Ou melhor, ele quer fazer o caminho contrário ao das ideias. Estas nascem das sensações, elas são as sensações mesmas, porém enfraquecidas, e que se tornam ideias dentro da mente, ou “representações” das coisas que imaginamos perceber fora de nós como "mundo objetivo". O artista desce o caminho , ele o refaz. Primeiramente, ele precisa abandonar a certeza lógica e social das regras. Ele precisa vencer a causa, duvidar das identidades...E não raro esse “vencer” toma ares de perda, de fracasso, de insucesso ( para aqueles que vencem graças às identidades, às causas e aos valores dominantes de dada sociedade). Tampouco o  artista  é um refém da fantasia que torna a mente paralela ( “esquizo”) à realidade, pois ele vai além da mente socialmente conformada, ele busca o ponto que antecede o enfraquecimento da ideia, pois ele quer a potência, ele quer a vida mais viva, mesmo que para isso lhe faltem ideias.
Ele sai da representação, e segue a ideia em direção ao seu nascimento, ele quer ver onde ela nasce: saindo da casca oca do universal,  ele vai ao singular...Retirando a roupa, ele quer ver o corpo nu das coisas.À medida em que ele se aproxima do singular, a sensação vai ganhando força, existência, intensidade....E quando  chega nesse ponto,  ele faz a mais estranha das descobertas, uma descoberta alucinante, fantástica, que desarma  nossa mente lógica e suas regras, tanto as regras lógicas quanto as sociais. O artista descobre que seu caminho de ir para fora da mente é, ao mesmo tempo, uma vereda para se aprofundar ainda mais dentro da mente....E que a origem da ideia é a origem da própria mente.Ou seja, não há origem como ponto inicial , há apenas meio , processo. Somente quando a mente está sob regras, socialmente determinada, é que ela tem a ilusão, ilusão científica e do senso comum, de que existe uma oposição entre a mente e uma realidade pronta que existe fora dela. Contudo, quando o artista explora e se explora, ele descobre que o extremo do mundo externo  e o extremo do mundo interno se tocam e embaralham suas fronteiras, formando assim uma terra incógnita.E o que vemos aí? Não vemos mais regras.
Qual o valor das regras? Estabelecer critérios para a combinação ou síntese das ideias. Por exemplo, pela regra da causalidade estabeleço uma conexão entre duas ideias: vejo a ideia de calor, depois percebo a ideia do evaporar, e sintetizo uma ideia com a outra, emitindo um juízo: “o calor é causa da evaporação(efeito)”. Quando vamos a esse ponto obscuro onde mente e matéria  são indistintos, as  ideias não deixam de se combinar, porém elas se combinam aleatoriamente, sem regras. Tudo se torna possível....Torna-se possível uma pedra falar, uma serpente voar, uma nuvem ter olhos...Segundo Hume, esse é o mundo da fantasia. A fantasia é uma combinatória sem regras. Logo, a mente não tem o poder de controlar e regrar a fantasia.E é isto o caos: não a desordem, mas uma combinatória de elementos sem a menor causalidade, sem a menor identidade, sem antes, durante ou depois, ou sem estar em algum lugar.
Phantasiaphantasma. Na mitologia havia um personagem chamado Phantaso, que era o ser responsável pela produção  das imagens do sonho.Da mesma raiz vem o termo “fenômeno”: aquilo que aparece. No sentido filosófico, a diferença entre fantasia e fenômeno está no fato de que o fenômeno aparece para a consciência desperta, ao passo que a fantasia aparece para a consciência adormecida, sonhante. Logo, é a consciência, ou mente, que difere fantasia e fenômenos. Neles mesmos, se retirarmos a relação que eles estabelecem com a consciência, não existe diferença entre fantasia e fenômenos. Para a fenomenologia, por exemplo, fenômeno é tudo aquilo que aparece para a nossa mente como sendo a realidade que percebemos ( é o mundo que o senso comum chama de realidade , enfim, a própria  “Matrix”).
O artista vai ao caos e volta, e retorna de olhos vermelhos, pois foi ao sol que ele foi, para assim ver/sentir onde nasce o dia. Ele nos faz pensar/sentir  o que não o consegue a mente socialmente regrada: pensar o singular, o acaso, as  formas de duração não redutíveis ao tempo, as diferenças que não cabem na forma geral da identidade...