sexta-feira, 29 de junho de 2018

a mensagem


No mito, Hermes é o “deus mensageiro”: é ele que leva as mensagens. Mas as mensagens que Hermes carregava não eram feitas apenas de palavras , pelo seguinte motivo :  quando era ainda criança , Dioniso, o  deus das artes ,   foi  vítima do  ódio e da vingança  , sendo despedaçado pelos seus perseguidores. Hermes então recolheu e guardou o coração de Dioniso, antes que os vingativos e ressentidos o esmagassem. Por isso, Hermes só  transporta mensagens que aceitem ter um coração dentro. Suas mensagens não trazem apenas  meras informações utilitárias, mas sentidos libertários que educam, sensibilizando. Nunca elas se prestam ao ódio ou ao preconceito, e sim à  gentileza e ao cuidado, mesmo quando criticam. Vencendo a barreira da prosa, tais mensagens também se expressam no verso e no canto. Elas também podem ser ditas em gestos ou em obras, desde que sejam para defender e potencializar a vida, para assim resistir e  lutar contra tudo aquilo que quer despedaçá-la. São mensagens assim  que o poeta deseja também escrever, quando diz: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento” (Manoel de Barros)

                                                                                                                                             
(foto: em protesto contra a violência sofrida  de bandidos e policiais, moradores da Maré resistem por meio de um gesto-mensagem: plantam flores , vida, nos buracos das balas)



sábado, 23 de junho de 2018

as imitagens...


Às vezes começa-se a brincar de pensar, 
e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco.
 Clarice  Lispector

Segundo Manoel de Barros,  toda invenção é um  exercício de  “imitagem” , ao modo de um camaleão: “Inventar comportamento” , diz o poeta,  “é ir imitando  os camaleões sendo pedra sendo lata sendo lesma” , pois  “os comparamentos matam a comunhão”.  Singularizar-se não é colocar-se como  um todo à parte,  egoicamente,  mas aprender uma forma de comunhão por imitagem, como parte de um agenciamento. A imitagem não nasce de um comparar-se para medir-se com o outro, na pretensão de ser maior ; tampouco a imitagem  é  um tornar-se mera cópia de um Modelo ou Padrão. A imitagem é a produção de uma variação por contágio , como nos ensina  a pequena menina, em sua  fabricação brincativa de um estilo . Em toda imitagem há uma   aprendizagem não escolar de uma diferença que se afirma compondo-se, em liberdade. Em sua imitagem, é a menina, e não o quadro, a obra de maior arte.
Na mito, as “Musas” são filhas de Zeus, o deus da Justiça,  e Mnemósyne, a deusa da Memória. “Museu” vem de “Musa”. Em grego, “Musa” significa  “conhecimento”. Não um conhecimento de coisa ou objeto, mas conhecimento de algo que se fez e que não pode ser esquecido. As Musas nasceram para celebrar e co-memorar ( “criar memória”) um feito de Zeus: ele derrotou as forças da barbárie que ameaçavam a comunidade . As Musas,  deusas das artes,  nasceram para nos fazer lembrar que se pode vencer a barbárie.



quinta-feira, 21 de junho de 2018

quando a palavra não basta

Quando pensava e falava, havia um ponto , um ponto enigmático, em que Heráclito parava de exercer o logos, e chorava. Nada mais dizia, apenas chorava.Então, os adultos se afastavam,  apenas as crianças ficavam perto dele.

Demócrito, por sua vez, interrompia seu filosofar com  estouros de riso.Não havia deboche ou ironia no seu rir, apenas alegria.

Sócrates punha um ponto final em seu filosofar sempre com longos silêncios meditativos, olhando para o nada.

Platão cessava seu discurso e se dirigia ao quadro para desenhar retas e formas geométricas,  dizendo  confiar mais nelas do que nas palavras.

Aristóteles , após ordenar as palavras, levava seus discípulos para verem a ordem  que preside o mundo: recolhia sementes, peixes, estrelas-do-mar, arraias, incontáveis animais e os punha em ordem, como se fosse um silogismo.

Os estoicos diziam que as palavras são apenas a metade do sentido: a outra metade é o agir, e assim eles ensinavam fazendo, agindo, não temendo a confusão do mundo.

Espinosa afirmava que há um  momento em que a palavra não conduz mais: é preciso então estender a mão e conduzir quem está perdido.

Nietzsche escrevia caminhando. Ele escrevia  seguindo trilhas que subiam , nunca as que desciam , para que no texto o sentido também se elevasse. 


Wittgenstein escrevia e parava. E o restante do que  queria dizer ele o fazia cuidando de jardins:  adubava, podava, colhia e oferecia , de graça, aquilo que cuidou e fez nascer. 


poema-concreto de Décio Pignatari



sábado, 16 de junho de 2018

a metafísica


                              O QUE SIGNIFICA METAFÍSICA?[1]

A metafísica é a disciplina mais nobre da filosofia. Ela é a mais digna, a mais elevada, a mais afastada dos interesses meramente utilitários ou pragmáticos. A palavra metafísica é composta de duas outras palavras que se agenciaram: meta e physis. Erradamente se traduz “meta” por “além”. Isso pode levar a imaginar que a busca pela metafísica seria como uma viagem de desterro, um ir para longe, para o alto e distante. Às vezes perguntamos a  alguém: “qual é sua meta?” . Isso pode significar: “o que você quer alcançar? O que você deseja?” .Se alguém perguntasse à semente qual é sua meta, ela responderia dizendo que sua meta é ser uma  árvore, uma árvore que dê frutos e sementes. Se alguém indagasse às letras qual é sua meta, talvez elas respondessem: minha meta é ser palavra poética no papel ou na boca de alguém que canta. É pouco provável que letras tivessem como meta tornarem-se palavras mentirosas, que negassem a si mesmas, privadas de dignidade. Em metafísica, dignidade é a virtude do que é verdadeiro, autêntico.
A meta de uma semente de abacateiro é tornar-se uma árvore: o abacateiro. Mas a árvore que a semente será já existe na semente, como a sua razão de ser ou finalidade. Essa árvore que existe na semente está além da mera existência material da semente, porém não lhe está fora, distante. Essa árvore enquanto meta da semente é sua essência. A árvore, enquanto essência, já está na semente, mas não enquanto matéria. Essa essência é a forma. A forma é a causa de a semente se tornar árvore. Uma semente de abacateiro não se torna um abacateiro devido ao acaso: há uma razão de ser. Por isso, a semente tem na forma a sua finalidade de existir. A essência-árvore é a causa de a semente se tornar árvore. Contudo, não é uma causa que age de fora, tal como um cinzel moldando o mármore. A essência é uma causa que age dentro, no ser mesmo da semente, e dá inteligibilidade à sua existência individual de semente. É a  essência-árvore que dá vida à semente. Essa essência ou forma existe metafisicamente na semente.
Assim, meta não é o que está além no sentido de algo a ser alcançado. “Meta” também é um movimento de alcançar o que precisa ser criado. Meta-físico não é o que está além do físico , como o céu está além do chão. O meta é o que dá sentido ao físico, o organiza, o faz ter uma forma, um aspecto, um querer. Uma realidade metafísica não é uma realidade distante e além, ela é uma realidade diferente da realidade física, e não está além ou aquém desta, mas junto, embora diferente.
Toda realidade metafísica é incorpórea. Porém, nem tudo o que é imaterial é metafísico. Por exemplo, posso imaginar que estou a correr em uma praia, embora eu esteja na verdade aqui sentado no sofá de casa. Essa imagem ou fantasia não existe por si mesma, ela existe em minha mente apenas. Ela não tem autonomia. Essa imaginação pode ser apenas o efeito de meu enfado de estar em casa. Tal fantasiar existe apenas enquanto realidade psicológica. As realidades psicológicas existem em razão das vivências de um ego. É sempre o ego , ou algo que sobre ele age, que explica o surgir de uma imagem ou imaginação. O mesmo aconteceria se eu , ao invés de imaginar , me lembrasse da ocasião em que estive em uma praia e corri sobre sua areia. Coisa diferente, no entanto, é se indagar acerca do que é o eu, ou do que é a imaginação ou do que é a mente. Para tais coisas, seria preciso formar ideias. E ainda mais: indagar acerca do que é uma ideia! A metafísica não se encerra nos produtos da mente, ela indaga acerca do que é a mente e também sobre o que existe fora dela.
A metafísica conheceu ou conhece duas maneiras de se expressar. A primeira delas se confunde com sua origem grega, ao passo que a outra nasce e traduz a posição moderna, mais próxima de nós no tempo. Entre os gregos, a metafísica nascia de uma experiência. Não a experiência com algo já visto, mas experiência com algo que põe no limite todo ver. Não era uma experiência meramente teórica ou conceitual. O motor dessa experiência era um afeto: a admiração ou o espanto. Não o espanto ou admiração diante de um fenômeno natural ou fato grandioso , tampouco espanto ou admiração diante de um prédio enorme ou um artefato técnico feito pelo homem. O espanto era em relação à existência. Não exatamente com a  própria existência daquele que se admira  ou com a existência  de algo externo que se vê ou percebe. O espanto e admiração eram em relação à existência inteira, toda, imensurável, infinita, absoluta. Era uma admiração por aquilo que não se podia abarcar, com o olho ou com o pensamento, mas que  estimulava o olho e o pensamento, mais do que as cores , para aquele, e mais do que teorias, para este. Esse espanto ou admiração eram afetos afirmativos, expansivos, confiantes, que faziam a vida própria transbordar para fora e ir além (“meta”).
Essa admiração pelo infinito  vinha sem aviso, sem preparação ou estudos em livros. Ela nascia de um certo desapego ao habitual e familiar, para que o grego pudesse se  familiarizar com o mais estranho e inaudito. Era uma espécie de acordar de um sono, sono este ao qual a doxa  chama de realidade. Esse despertar não se fazia apenas com o espírito, pois dele também participava o corpo, através de um olhar que se metamorfoseava em uma visão fontana, diria o poeta. Era o inaugurar do ver no ato mesmo de ver, e isso depois de tanto olhar sem ver. Nesse olhar o conhecimento e a poesia ainda estavam unidos no mesmo jorro indistinto da vida ,  e esta convidava o pensamento  a ser o seu destino, livremente.
Enquanto a metafísica grega se apoiava no ponto de exclamação, será o ponto de interrogação a motivação da metafísica moderna. A metafísica moderna pode ser expressa em uma pergunta: “por que existe o ser e não, antes, o nada?”. A metafísica moderna introduz algo impensável para o grego: o nada. Quando Parmênides, por exemplo, fala em não-ser, este não é o "nada", e sim ignorância do Ser.
Enquanto no mundo grego a metafísica constituiu o acabamento ou fundamentação das ciências, no mundo moderno haverá radical cisão entre a ciência e a metafísica. A ciência moderna se debruça sobre fatos ou fenômenos: ela não indaga sobre o ser, ela procede mediante recortes que lhe darão seus respectivos objetos. Assim, a física não estuda o ser, mas os objetos físicos. A química não estuda o ser, e sim os objetos químicos. Para um cientista, pensar o nada é loucura...além de perda de tempo. E mais perda de tempo ainda é pensar o Ser...
O mundo grego desconheceu o que é isso: o nada. Segundo Heidegger, a ciência é um esquecimento do ser, ela se inscreve  ainda dentro da história da metafísica, mas como seu epílogo, como o lugar de um esquecimento daquilo que tornou o humano humano: a indagação ,sem fins utilitários, acerca do sentido da existência. Para Heidegger, está vedado para nós para todo sempre aquilo que os gregos experimentaram e chamaram de existência. Não sabemos mais o que é isso, ficamos apenas com a letra e nos fugiu o espírito.




[1] Texto elaborado pelo Prof. Elton Luiz como complemento às aulas.


                          

(Haroldo de Campos)


sexta-feira, 15 de junho de 2018

o pote e o poeta


No poema "Aventura", o personagem é um pote que Manoel de Barros encontra jogado fora de "barriga vazia para cima", “encostado  à natureza”. Nesse estado de abandono, o pote continha apenas o vazio.  Talvez o pote já  tenha guardado  um dia algo muito desejável, e que com avidez  os homens devoraram.Enquanto durou esse conteúdo , o pote foi amado – ou  imaginou que o  fosse. Depois de lhe tirarem tudo , ele   foi então  abandonado pelos mesmos homens que  dele se alimentaram.  “Inútil”,  o pote já não servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isto que a natureza produz em tudo aquilo que, ao encostar nela, sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o poeta. Mas assim ele se foi: pensando no triste fim daquele pote...
Tempos depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar ermo.Lembrou do pote e preparou-se para ver de novo aquela imagem do sofrimento. Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse,um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio. Ali já havia areia e cisco  que a natureza depositou."As chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio,  agora um vivo poema aflorou: nasceu do  ventre  um pé de rosas .E repleto ficou o pote com a beleza que se oferta sem nada pedir em troca.



(Vaso com Zinnias e Geraniums, 1886 - van Gogh)


quarta-feira, 13 de junho de 2018

dos animais e dos homens


Quem vê a imensa baleia a nadar imagina que a natureza a fez para tal comportamento desde sempre.Quem vê o morcego a voar imagina que ele sempre teve asas.Porém, como começou a nadar a primeira baleia? Se o primeiro nado foi invenção, não havia um nado anterior, um “Modelo”, para imitar.Talvez esse nado inaugural se assemelhasse mais a um ousar e arriscar para conquistar um novo meio , afirmando uma força vital que não aceita derrota antecipada: o primeiro nadar nasceu de não se deixar afogar.O mesmo se aplica ao voo do morcego: o que hoje é voo sem receio, primeiro foi salto sem ainda ter asas. E mesmo no voo mais perfeito do morcego de hoje, ainda existe esse salto ousado como sua causa.O primeiro voar foi vitória sobre o medo de cair : cada voo de agora também celebra aquela inaugural vitória . Para os que sufocam neste mundo de agora, que se arroga “o fim da história”, o devir da vida mostra que a conquista de novo meio não se faz sem ousar crer nos “inauguramentos”, e fazê-los. Já os “adaptados” ao “viver acostumado” da época vigente ignoram o “inventar comportamento” que a vida, para sobrevivermos, quer de nós agora: na invenção de novos meios de “horizontamentos”, tal como para os morcegos foram as asas; e criação de novos órgãos exploratórios que achem/inventem novo ar respirável, para o corpo e para a alma.

"Não é o forte quem se adapta e o fraco quem sucumbe. Ao contrário, é o fraco que se adapta: o forte ou muda o meio ou sucumbe”.
 Nietzsche, Anti-Darwin .


“Poesia é inventar comportamento”, “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”
Manoel de Barros




terça-feira, 12 de junho de 2018

manoel, francisco e o rouxinol

Quem canta
ora duas vezes.
(Santo Agostinho)
                                                                                    
São Francisco monumentou os passarinhos.
(Manoel de Barros)

De pés descalços,
ele dançou diante do Papa.
(Deleuze)

Pedras viravam rouxinóis...
(Manoel de Barros)



Monumentar passarinhos

Em meio às ruínas de um templo,
nu de  portas, paredes   e teto,
extintas preces se foram sem deixarem eco,
apenas húmus e pó ali tomavam assento.
                                                       
Foi nesse templo ao vento aberto,
chão da chuva e do sol caídos do céu,
foi na ruína do altar deserto
que Francisco viu pousado um rouxinol.

Na madeira da cruz  um ninho ele fizera,
para ali guardar sua cria  inocente.
E a cruz se fez de novo  árvore vivente,
para ser o lar da  vida em primavera.

Então, o rouxinol cantou a Francisco...

Sem precisar de sermão ou palavra,
Francisco ouviu, com o coração,
 a aleluia dos vivos poetizada.

Calçando nos pés as estradas,
pôs como chapéu o firmamento.
Em diferentes seres aprendeu a ler uma diferente página,
do infinito Livro cuja Lei é o encantamento.


















segunda-feira, 11 de junho de 2018

cada um é seu mundo próprio...

Há sem dúvida quem ame o infinito.
Fernando Pessoa

“Cada ser vivo existe dentro de seu mundo próprio” . Esse enunciado é do etólogo Jacob  von Uexküll. O mundo próprio de um ser vivo não se explica apenas por propriedades físicas ou geográficas. O mundo próprio de um passarinho, por exemplo, inclui o território que ele deseja constituir, e este território já existe no desejo que o deseja, antes de o passarinho o constituir de fato como porção de espaço e parte da floresta. O mundo próprio é dele tanto quanto ele é do mundo próprio. Sem um mundo próprio a habitar seu desejo , um passarinho definha, para de cantar e nem mesmo pode voar, a não ser para fugir dos passarinhos que já possuem um mundo próprio. Não basta ter o mundo próprio como forma em rascunho a viver dentro do desejo que o vislumbra, é preciso também coragem e afirmação para efetuar um mundo próprio , pois efetuar um mundo próprio é efetuar a si mesmo, compondo-se com o espaço, conquistando  para si um horizonte. Pois somente este, e não cercas (físicas ou simbólicas), deve ser o englobante de nosso chão.Somente a partir de um mundo próprio podemos nos horizontar. Do contrário, teremos apenas um discurso escapista, de fuga do mundo, niilista.
O mundo próprio não é um círculo ou bolha, pois essas imagens são portadoras de limites. Sabemos o que é um círculo porque o vemos de fora e o distinguimos de outras figuras geométricas, como o triângulo ou o quadrado.  O círculo possui limites além dos quais a geometria não acaba, vez que ela se expressa ainda na existência de outras figuras. Mas o mundo próprio de um ser vivo é tal que , para ele, não existe outra coisa.
O mundo próprio de um ser vivo é feito de limiares: ele é um horizonte que sempre recua, além do qual um ser vivo não pode ultrapassar , pois marca os limites de seu conhecimento. Não se trata de um idealismo  ou subjetivismo, dado que no mundo próprio  há um mundo : o mundo próprio é um mundo, ele é  o mundo dentro do qual encontramos um mundo subjetivo e objetivo, um dentro e um fora, um ser que percebe e um ser percebido. O mundo próprio vai em duas direções: para dentro e para fora, e é sempre no meio que ele se encontra mais vivo, como relação. Os extremos de um mundo próprio são indetermináveis, deslimitados, dado que coincidem, em um dos extremos , com o intangível mundo psíquico e , de outro, com um horizonte sempre aberto. O mundo próprio existe fora de um aparato psíquico, e o engloba. Ao mesmo tempo, o mundo próprio não existe sem um aparato psíquico  que o apreenda como a existência de um fora.
Vejamos o caso de um carrapato, um simples carrapato. Como todo ser vivo, ele vive em um mundo próprio. Seus aparatos sensórios são voltados para fora. Eles buscam signos. O aparato sensório do carrapato   torna determinados acontecimentos signos para ele. Esses acontecimentos  o afetam. É por intermédio desses afetos que o carrapato forma ideias do mundo que o cerca, para assim agir sobre ele. O mundo próprio é o horizonte do poder de agir de um ser vivo.
Conforme nos ensinava Cláudio Ulpiano em suas  belíssimas  aulas ( http://claudioulpiano.org.br/), o carrapato possui três afetos. Seu mundo gira em torno desses três afetos. Parecem poucos? Mas o mundo do avarento gira em torno de apenas um afeto: sua avareza; o mundo do pretensioso gravita ao redor de apenas um afeto: a pretensão.... Poucos afetos governam a vida dos homens. Pois bem, o carrapato possui três afetos: pela luz solar, pelo odor do suor de um mamífero e pelo calor do sangue . O carrapato é cego. Ou melhor, “cegueira” é uma noção que só tem sentido em um mundo próprio no qual os seres tenham visão. No mundo próprio do carrapato  a visão não tem sentido, não existe. Nenhum carrapato conhece o que é a visão. Logo, nenhum carrapato sente que lhe falta o que não existe para ele. A falta não faz parte de um mundo próprio.  Somente quando perdemos nosso mundo próprio, ou quando este se fragiliza, somente assim  é que a "falta" vem nos assombrar...
O afeto pela luz solar conduz o carrapato a buscar sempre subir. Ele escala o que puder escalar, sobretudo paredes e árvores. Ele escala seguindo a orientação da verticalidade. Ele sobe e espera. Ele espera que o objeto de seu segundo afeto se lhe apresente. Um carrapato é capaz de ficar anos à espera. Enquanto espera, ele entra em um estado que para nós se assemelharia à morte. Seu metabolismo se aproxima de zero. Tudo nele quase cessa de se mover. O único fio que o liga à vida é seu mundo próprio virtualmente envolvido em seus afetos, na profundeza da noite de sua vida psíquica.
É o odor do suor de um  animal que se aproxima que  ressuscita o carrapato daquela morte mimetizada. O odor do mamífero se anuncia como a boa nova advinda do horizonte de seu mundo próprio. O carrapato esperava sem esperanças, pois há um quê de dúvida em toda esperança , ao passo que no carrapato a espera era sem  hesitações ou dúvidas  acerca da vinda do esperado: essa vinda não era especulada , ela era virtualmente sentida na certeza instintiva de uma força que desconhece derrota antecipada. Sem ter olhos, o carrapato sabe da presença de um mamífero pelo odor de seu suor, sentido a dezenas de metros. Quando o mamífero passa, alheio ao desejo vivo que despertou, o carrapato se solta no ar, e cai sobre o objeto de sua paciente  espera. Sem possuir olhos, ele sabe as distâncias, as velocidades e o espaço que o separa do objeto de seu querer. Ao cair sobre a pele do mamífero, o carrapato se finca, se instala, tudo nele já sabe o que fazer.  Ele sente o fluxo de sangue quente  a correr abaixo da pele do animal. Ele então perfura, se enfurna e se rejubila com a parte líquida de outro ser. Após sorver o correspondente a três vezes o seu peso, o carrapato se solta, repleto, intumescido de vida. Nada mais existe para ele na floresta imensa.  Os pássaros, as flores, os regatos, o céu....nada disso para ele existe. Nada disso para ele é objetivo, nada disso constitui “objeto  para sua percepção”. Como um místico unido ao objeto de seu êxtase, o carrapato já pode morrer, e morre.
O que vale para o carrapato vale igualmente para todos os seres, inclusive o homem. Neste, porém, o mundo próprio pode ser ampliado ao infinito pela linguagem, desde que não seja a linguagem utilitária dos homens-carrapatos.... É o afeto que determina a amplitude de um mundo próprio, não o intelecto ou meras posses. O tamanho do mundo próprio de um homem tem  a amplitude de seus afetos : se é o infinito que o afeta, e do infinito não pode haver posse, tal será a amplitude de seu mundo próprio. O infinito não é um continente  vazio e distante que se contempla em silêncio; o infinito  é ele e tudo aquilo que nele vive, por mais ínfimo que seja. O mundo próprio do poeta é um deslimite nascido de sua transfiguração : “O poeta diz eu-te-amo a todas as coisas (Manoel de Barros).”







sábado, 9 de junho de 2018

a lua de manoel e as rosas de cartola


Segundo Heidegger, o mundo atual confunde o “diminuir a distância” com o “criar proximidade”. A tecnologia  diminui as distâncias, sem dúvida. Mas  uma coisa é diminuir a distância entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade com o sentido íntimo das coisas. O telescópio diminui a distância entre a lua e meus olhos, isso é fato. Porém, quando  leio Manoel  falando  sobre a lua, o  poeta não põe a lua perto  de mim no espaço, mas  ele a põe  a tal ponto próxima que, empoemando-me,   experimento   seu sentido também  em mim,   no  "devir-lunar" que me torno.
 Quando Cartola diz que “as rosas não falam”, qual o sentido dessas rosas? O que elas  têm que não têm as rosas que pomos em jarros? Um dia estas  murcham, como tudo aquilo  que a arte não salva; porém , nunca morrem as rosas que a canção de Cartola nos põe próximos , a salvo.


Não sou da informática, sou da invencionática”.
Manoel  de Barros

                      






sábado, 2 de junho de 2018

livro-homenagem a manoel de barros


(trecho da Apresentação do livro)
Este livro nasceu de evento-homenagem ao poeta acontecido em outubro de 2016, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tal como no evento, quisemos fazer um livro-homenagem também plural, transdisciplinar, reunindo filósofos, poetas, pesquisadores, enfim, profissionais que encontraram na obra do poeta um caminho para a invenção de ideias. Manoel foi para nós um intercessor.O intercessor-Manoel nos colocou em “estado de embrião”, como “forma em rascunho”, no limite de nós mesmos, desabrindo-nos. Somente dessa maneira pudemos, com Manoel, ousar um “afloramento de falas”.
Os artigos aqui presentes são testemunhos desse pôr-se em rascunho. Apenas assim, “deslimitados”, podemos tentar dizer, sendo muitos, o que Manoel disse sendo único.
                                                                                                                                            
(“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, título do livro,  é um verso do próprio Manoel. Livro lançado em abril/2018, pela Editora 7letras)



sexta-feira, 1 de junho de 2018

Spinoza ou Espinosa?



Quem já pesquisou minimamente esse tema já  se deparou com  justificativas distintas para optar por Espinosa ou Spinoza. Os que preferem a grafia "Espinosa" pesquisam em fontes mais raras, notadamente vinculadas à origem portuguesa do filósofo. Os que preferem "Spinoza" não apresentam muitas fontes, além daquelas consagradas. Por que optamos por Espinosa? Não pelo sobrenome, mas pelo nome que o sobrenome acompanha. Em hebraico, "Baruch". Espinosa rompe com esse nome e se rebatiza , filosoficamente, "Benedictus". Com este nome Espinosa rompe com o nome que lhe pôs a comunidade judaica. Com "Benedictus", Espinosa se rebatiza na mesma língua de Sêneca e Cícero. No entanto, com o nome "Bento", português, ele não rompe. Este o acompanha, como o acompanham seu sangue, sua imaginação e a língua viva de seus pais, e não uma língua morta , erudita, como o latim (Espinosa não falava latim em casa, o latim é uma língua que não conheceu sua fala). Podemos dizer que Baruch é o nome profético, Bento é o nome apologético, enquanto Benedictus é o nome crístico, desse “Cristo dos filósofos”, como lhe chamou  Deleuze. Por esse argumento, apenas Espinosa ele mesmo se pode chamar Benedictus, como de fato se chamou, nascendo de novo no nome que ele criou. Nós, seus admiradores, afetados por essa vida filosófica, modestamente o chamamos de Bento, também com amizade e carinho. Benedictus  pede a companhia de Spinoza, Bento combina com Espinosa. Ambas as grafias são corretas, embora de perspectivas diferentes. Então, entre o hebraico, o latino e o português, optamos pelo português, pois "Espinosa" soa mais  próximo do som que naturalmente sai de minha boca brasileira.