quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

dos judas e mafiosos...

Apenas os movimentos do corpo não são suficientes para explicar se tais movimentos são ativos ou passivos, potentes ou impotentes. Quem visse o Judas em seu beijo , e não conhecesse a ideia que acompanhava aquele gesto, poderia imaginar que aquele movimento era expressão de um amor. Quem vê o boxeador desferindo um soco certeiro , pode imaginar que ele golpeia movido pelo ódio ao adversário. Mas o beijo de Judas é pior do que um soco, ele é um movimento do corpo que, do ponto de vista do afeto que o move, está acompanhado de  um ódio, um ódio ao amor. Já o soco do pugilista não é raiva ou ódio, é um soco acompanhado da ideia de amor ao boxe. Entre mafiosos, os enfáticos movimentos  de um abraço pode não ser manifestação de amizade, mas uma sentença de morte.

É mortal para nós mesmos imaginar que só existem Judas e mafiosos, pois assim temeremos quem nos beija e abraça, e acharemos mil argumentos para nós mesmos não beijar ou abraçar. Judas e mafiosos estão por aí...Mas saberá melhor identificá-los quem souber  beijar com lealdade aquilo que o Judas beija para trair, ou abraçar  com vida aquilo que o mafioso abraça para matar, seja  uma vida, os valores  éticos ou a democracia.



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NECESSIDADE E DETERMINAÇÃO

Espinosa distingue entre necessidade e determinismo. Portanto, é um imenso equívoco taxá-lo defensor de um determinismo racionalista.
Todo ente finito existe de forma determinada, isso é certo. O vapor existe de forma determinada porque causas determinadas  o determinaram a ser vapor. “Determinado” é tudo aquilo que é determinado a ser isto ou aquilo conforme a ação determinada de outra coisa. No caso do vapor, sua existência determinada é determinada pela ação determinada do calor sobre a água. Mas tanto o calor quanto a água também existem de forma determinada, pois outras coisas determinadas os determinaram a ser calor e água e não outra coisa. É assim que a ciência conhece a realidade e a explica: buscando a causa determinada de uma existência determinada. Nenhuma coisa determinada pode ser a causa do seu próprio existir determinado: a causa de sua existência determinada é sempre outra coisa também determinada. O pai é a causa determinada da existência determinada do filho, mas tanto o pai quanto o filho são modos ou maneiras de ser de uma existência absoluta e necessária.
O necessário não é o determinado. Um homem determinado nada mais pode ser do que o efeito de coisas determinadas que o determinam a agir de forma determinada, isto é, de forma não livre. Um homem que faz algo determinado não significa que o faça de forma necessária.  Os que confundem o necessário com o determinado podem imaginar que fazem o que fazem por fatalismo, ou por terem sido "eleitos" pelo destino, ou ainda devido a causas deterministas férreas. Quando Kant preconiza a rigidez da lei moral, o faz sob o modelo da determinação, de tal modo que ninguém consegue ver a necessidade de uma vida assim vivida.
Necessária é toda ação que se explica por ela mesma, e não como efeito determinado de outra coisa determinada. Determinar é de-terminar, "dar término", fins, contornos. Necessário é o que nasce do “esse”, isto é, do ser singular de um ente ( ens) existente.
Um poeta emprega uma língua determinada dotada de determinadas regras . Porém, o poema que ele cria não é determinado pelas regras determinadas da língua. Seu poema nasce de uma necessidade expressiva sem a qual não há poeta. O poeta que encontra na expressão poética sua necessidade, encontra também sua liberdade como idêntica a essa necessidade. Liberdade não é algo espontâneo ou indeterminado  que se opõe à determinação. Liberdade é a expressão de uma necessidade que não nega o determinado, porém se afirma em uma ação mais potente do que todo ato determinado. 
Espinosa foi excomungado, isso é determinado; passou por dificuldades materiais e de saúde, isso é determinado; escolheu escrever em latim e sob o modelo da geometria, isso também é determinado. Mas nenhuma dessas determinações explica o que há de necessário em sua Ética. Algo determinado nasce de algo determinado  que pode fazer nascer outra coisa  determinada a partir de sua  determinação. No entanto, o necessário não nasce do determinado. O necessário nasce de si mesmo como ação que é causa de si mesma, e não efeito  de outra coisa. O necessário não é o possível de ser necessário, pois o possível não é necessário. O necessário já é o que é real , sendo impossível a sua impossibilidade.
Nossa existência determinada nos mostra que aquilo que nos acontece de forma determinada também acontece a outras coisas, dadas as mesmas condições determinadas ( não apenas  Espinosa foi excomungado, outros também o foram antes e depois dele, sob as mesmas condições determinadas). Mas o que fazemos de forma necessária expressa a singularidade de um acontecimento único que de só de nós depende , enquanto expressão de uma realidade absoluta que é sempre necessária, nunca determinada:Espinosa, apenas ele, escreveu de forma necessária uma Ética, sem que para tal seja determinado que se tenha sido excomungado...

A passividade é algo determinado, porém não é necessário; as paixões tristes ( ódio, inveja, rancor, etc.) também são determinadas, mas não são necessárias; mesmo a morte é determinada, nunca necessária.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

gramática e poética das cores

Oliveiras com sol , Van Gogh

                                                                                                                                                              
Borboleta é uma cor que avoa.
Manoel de Barros

Muitas são as cores. Porém três, apenas três , são as cores-fontes das quais todas as  outras cores nascem. As três cores primárias são: o amarelo, o vermelho e o azul.
O amarelo simboliza o sol,  é a cor mais quente. É por isso que os girassóis que Van Gogh pintou expressavam sóis que nele irradiavam, vivamente. Das páginas de Nietzsche também irradia um amarelo intenso,  chama  que é de mais de um sol: "Para brilhar e ter luz própria é preciso ter sóis dentro de si."
O vermelho simboliza  o sangue, fluxo da  vida. Vida que corre e transpõe toda barreira, vida que não pode parar, como o sangue nas veias. As revoluções democráticas tingem de vermelho suas bandeiras, às vezes compondo-a com outras cores, para ser o sangue a correr  na veia comum de um povo que  luta.  A bandeira brasileira carece dessa cor que simboliza afeto e vida ( temos apenas o amarelo do ouro que não é do povo,  mais o verde da floresta já quase arrasada...).
O azul é a cor do céu, é cor que “horizonta”. Também  é a cor da paz ,mais do que o branco, vez que o azul é a cor da paz de espírito. A felicidade, dizem , é azul : é céu que se abre dentro. Sêneca vestia azul, a mesma cor preferida de Espinosa. A voz que "celesta as coisas do chão", voz da poesia, "é voz pintada de azul"( Manoel de Barros).                                                                                   




terça-feira, 23 de janeiro de 2018

urdidura e trama

Quem deseja tecer deve partir de uma “urdidura”. Não importa se são tecidos , textos, ideias ou ações que desejamos tecer: é sempre de uma urdidura que se parte. “Urdidura”  vem de “ordo”, “ordem”. Como ensina Espinosa em sua Ética: em tudo há “ordo”, mas “ordo” não é tudo.  
Toda urdidura é feita de fios dispostos retamente, como um destino, e disso já sabiam as mitológicas Moiras, que urdiam o destino dos homens. Mas apenas uma urdidura não forma um tecido de vida: é preciso a “trama”.
A trama nasce de um fio que passa transversalmente pela urdidura: a trama acrescenta ao férreo destino a invenção de fugas, de “linhas de fuga”.
Toda urdidura é sempre igual: reta  e determinada. Porém, há múltiplas formas de se fiar uma trama. Não há trama sem uma urdidura , isso é certo; porém não há  tecido , de pano ou social, sem a invenção de tramas. Da “Moira Social” que o urdiu louco, Arthur Bispo do Rosário reencontrou sua transversal, e assim tramou sua lucidez como fuga da  normalidade  reta dos que pensam igual. Embora toda trama parta de uma urdidura, nenhuma urdidura pode determinar que trama se inventará a partir dela.

A gramática é urdidura, porém trama é a poesia; a lógica é urdidura, mas pensar é trama; família é urdidura, amor é trama; Estado é urdidura, sociedade é trama; código jurídico é urdidura, justiça é trama; sistema político é urdidura, democracia é trama. 

("O manto", Arthur Bispo do Rosário)

domingo, 14 de janeiro de 2018

a subversão manoelina

Em sua apresentação do livro Arranjos para assobio , Ênio Silveira afirma que  a leitura das poesias de Manoel de Barros é uma “experiência subversiva” : não se lê Manoel  sem que mude em nós alguma coisa, mesmo que não saibamos definir exatamente isso que em nós muda. Pois este é o sentido original de sub-versivo:  fazer voltar ou verter à origem, onde era apenas “forma em rascunho”,  tudo o que se enrijeceu em “formas acostumadas”.
O  verso  manoelino “verte” a linguagem à sua origem . Tal origem não é uma “Verdade Imutável e Eterna” , mas  a (re)invenção de sentido: verter à “origem que renova” tanto linguagens como  mentalidades, para assim sub-verter, quem sabe,  acomodadas sociedades . 

Nem todo verso é subversivo nesse sentido. O verso de Manoel é .Seu verso nos  sub-verte  empoemando-nos novamente rascunho. Manoel    dá à poesia e ao verso a potência de dizerem mais do que poesia e verso. E cada um pode achar nesse dizer múltiplo sua própria voz única, talvez nunca pronunciada - ou então (re)inventá-la como assobio.



sábado, 13 de janeiro de 2018

as carruagens

Na mitologia, comparava-se a alma humana à carruagem. Mesmo Platão se serve desse mito, adaptando-o. A carruagem de Platão compõe-se de três elementos: o cocheiro e dois cavalos . O cocheiro é a Razão: ela tem as rédeas e guia a carruagem por caminhos retos traçados com régua. Um dos cavalos, de cor branca, é dócil  aos comandos da razão: trata-se da "Vontade". Mas o outro cavalo, de cor preta, é indisciplinado, rebelde. Quanto mais a Razão quer comandá-lo, mais rígida ela precisa ser. Este cavalo insubmisso é o "Desejo".
Segundo Platão, na carruagem de nossa alma a Razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. A Razão quer “Ordem”, e por vezes fala por ela o seu chicote; porém o desejo deseja “ir atoamente”,  nomadicamente...
Carruagem diferente era a de Dioniso, divindade das artes. Nela, Dioniso também era o cocheiro, mas sem querer ser ou ter a “Razão”. Ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por panteras não domesticadas. Apesar de feras, Dioniso as guiava sem usar chicote. A arte não nega ou reprime a natureza ( como o cocheiro de Platão), mas a põe a seu serviço conforme uma disciplina que não é estrangeira à potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as pulsões-panteras se tornam forças que se conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma por sendas onde a razão não ousa ir.

Dioniso transforma a agressividade destrutiva e mortífera das pulsões-panteras em potência criativa afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou guia, cocheiro, pensador; conjugando disciplina e inventividade na condução da carruagem . Esta segue para onde não se sabe: seu destino é o próprio percurso enquanto este é criado.


sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

esco(a)vações manoelinas

No poema “Escova” Manoel de Barros diz ter visto, quando criança, dois homens "sentados no chão escovando osso". “Esses homens devem ser loucos”, pensou a criança. Porém, ao olhá-los bem, o menino Manoel reparou que as ações dos homens não eram mecânicas. A loucura é um fazer mecânico, “acostumado”. Não importa o que se faça: comprar, comer, beber, teclar, falar, consumir, acumular...se tal coisa se tornou mecânica, “mesmal”, é de loucura que se trata.
O poeta reparou que tais homens faziam o que faziam com “cuidado”.   Eles repetiam ações, porém nem toda repetição é mecânica, quando o que se repete nasce do cuidado. Não por acaso, Espinosa imprimiu em seu anel a palavra “caute”, da qual   nasceram “cautela” e “cuidado”, bem como “curador”, “aquele que cuida”. Então, o menino-poeta descobriu o que os homens faziam: eles praticavam arqueologia, eram arqueólogos.
O poeta aprendeu algo com o que viu: ele aprendeu a “escovar as palavras”. É preciso escovar nas palavras o que nelas é mera informação, o que nelas é clichê, o que nelas é significado morto, como a poeira que sufocava o osso. Somente assim, escovada, feita novamente embrião, a palavra pode fazer nascer poemas, para assim escovarmos também nossa mente. “Empoemada”, a palavra nos ensina coisas que a razão não ensina. Ao escovar a palavra, não importa qual, o poeta (re)encontra  a poesia, pois “a poesia está guardada nas palavras. É tudo o que sei”.



quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

o passarinho à toa


Eu pertenço de andar atoamente.
Sei falar a linguagem dos pássaros: é só cantar.
Poesia é voar fora da asa.
Manoel de Barros
                                   

Nossos cicerones são aves cantando.
Cartola



Os passarinhos que nasceram e vivem em gaiolas ocupam-se mais a cantar do que os passarinhos que nasceram livres e vivem a “voar atoamente”.
Os passarinhos que nasceram livres exercem sua liberdade em múltiplas ações, e não apenas no cantar. Eles  também voam, ciscam a terra, bicam os frutos, enamoram-se, constroem ninhos, criam seus entes e lhes ensinam a voar.
Os passarinhos que nasceram no cativeiro  são livres apenas no cantar. Por isso cantando tentam se libertar, mas seu canto de prisioneiro só lhes faz lembrar a liberdade que nunca viveram. 

Passarinhos de cativeiro , se cantam bem envaidecendo seu dono, até ganham  concursos e títulos;  por isso, mesmo tristes, inflam o peito, e olham com desdém os passarinhos sem dono. Mas o passarinho-andarilho  descobiça academias e prêmios: "voar fora da asa", atoamente ,  é o único  poder que desejam. 






terça-feira, 9 de janeiro de 2018

horóscopo

Diante de minha janela existe uma pracinha. Nela, mães passeiam com seus bebês em carrinhos. Reparei que quase todos os carrinhos possuem um tipo de cobertura removível, que permite ao bebê uma visão completa do céu. Fiquei pensando no impacto da  primeira imagem do céu sobre  a personalidade em embrião da criança. Como um espelho que recebe mas também absorve e retém  aquilo que nele se reflete, talvez a personalidade das crianças assuma as mesmas cores e ares da paisagem primeira que as afetou.
O CÉU DE SÊNECA.Os nascidos em abril e maio veem um céu de um azul calmo e transparente, em cuja profundidade um sol em pontilhado derrama seu amarelo sem crispar ou se intumescer. Um céu como véu transparente , que cobre, sem esconder,  o profundo infinito. A imagem de tal céu imprime um caráter contemplativo e sereno àqueles que nascem sob seu cobertor sem margens.
O CÉU DE SHOPENHAUER.Os nascidos em junho ou julho veem um céu espesso, cinza compacto,um céu de inverno, que empurra o espírito para dentro de si mesmo e de sua caverna. Instalados dentro de si mesmos, os nascidos sob tal céu tendem à introspecção e ao exame pessimista dos fatos, incluindo os fatos da política e os do amor.
O CÉU DE EPICURO.Os nascidos em setembro veem um céu onde tudo se prepara para nascer: céu de primavera. Um otimismo inconsciente, tal como aquele que impele o embrião a crescer,  impregna-lhes as retinas.
O CÉU DE NIETZSCHE. Os nascidos em novembro e dezembro veem um céu em chamas, de um sol imperador. São almas em busca de seus extremos e ultrapassamentos, a brincar de equilibrar-se sobre a linha de seus próprios limites. São  almas sempre preparadas para saltar por sobre a linha, atraídas pelo abismo, pelo excesso e pelo seu mais adorado Deus: o risco.





segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

minhas coisas favoritas...

MINHAS COISAS FAVORITAS

O céu de maio
O primeiro copo de água do dia
O escuro da sala que antecede o filme
O desenho sem esboço da criança
Reinventar o vivido pela palavra
As ruas do Centro no fim da tarde
Nem o fim e nem o começo, mas o meio
Não estar fora nem dentro, mas no limiar
Ouvir música...ouvir música...ouvir música
Nem o ontem e nem o amanhã, mas o hoje
Não roubar o tempo de ninguém
As trilhas, mais do que os lugares no fim das trilhas
Reler num livro antigo um sentido novo
Dizer com ações mais do que com palavras
Estender-me ao horizonte
Ir sem mapa
Andar ao lado
Deambular enquanto penso no que li
Ver  pardais entre as folhas de uma amendoeira
Ir pelo mato re-sendo o índio que fui
Ver no céu tudo o que voa
Procurar nas árvores um verde que ainda não vi
Comer uma maçã antes de dormir



sábado, 6 de janeiro de 2018

o tamanho do nosso quintal ...


Meu quintal é maior do que o mundo.
Manoel de Barros

Quando Proust diz : "Mais importante do que viajar para conhecer paisagens novas, é ‘conhecer’ de forma nova a paisagem habitual”, o primeiro conhecer e o segundo são iguais apenas na palavra, na forma , pois eles não expressam o mesmo ato, nem possuem o mesmo conteúdo. O primeiro conhecer busca uma paisagem já conhecida por alguém  diferente de nós,  para o qual ela é uma paisagem habitual, “acostumada” . Para este outro, porém, nova seria a paisagem habitual nossa, que talvez ele sonhe em conhecer.
Semelhante a uma  “miopia existencial”, nossa visão acostumada   imagina  que o novo e o diferente só podem ser vistos em lugar afastado do nosso quintal. Assim vistos, o novo e a diferença são mais fantasiados do que propriamente experimentados realmente, parecendo que essas paisagens novas apenas existem para que possamos tirar “selfies” e ostentá-las , com elas atrás de nós, e não dentro, como experiência também mental ( da qual não se pode tirar fotos).

O segundo conhecer, o que descobre o novo no seio do acostumado, desfazendo-o,  abre  em nós olhos de recém-nascido : “outro ser desabre em nós”(Manoel de Barros). Esse segundo conhecer é ainda conhecer, ele não é ignorância ao modo de Sócrates ( o “só sei que nada sei”), pois não há nenhuma virtude ou potência na ignorância, mesmo “Douta”. É sempre no conhecer que está a potência libertária, pessoal ou coletiva. Sobretudo quando ele se apoia em uma “visão fontana”, como diz Manoel de Barros,  que torna o conhecer e o (re)descobrir atividades sinônimas.



quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

a saúde da mente

Nise da Silveira cita Bachelard quando este dizia que nossa saúde mental , ou a falta dela, depende  mais do que fazemos com nossas mãos do que daquilo que teorizamos com nossa mente . Talvez por isso, depois de filosofar, Espinosa se dedicava a polir  lentes, como um simples artesão; Wittgenstein largava os livros para plantar  flores, feito um jardineiro;  Deleuze costumava desenhar entre as aulas, nisto se assemelhando a um cartógrafo; Plotino deixava  seus profundos estudos metafísicos para  ir alimentar com as próprias mãos crianças órfãs, como se fosse um cozinheiro.
Sobretudo para aqueles cujo pensamento ousa ir muito longe em busca de terras novas, para ele não se perder, é bom mantê-lo unido a mãos que tocam, transformam ou cuidam da realidade próxima, mãos que nada têm a ver com a “mão invisível” e pragmática do mercado e sua lógica de apenas contar dinheiro, sem se importar eticamente de onde ele veio.  Somente  mãos que cuidam ,alimentam ou transformam  podem ser    a afetiva âncora do pensamento no aqui e agora, sem fazê-lo perder o horizonte aberto  para o qual sempre decola .



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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

manoel de barros: grãos de sol 2



Nas fendas do insignificante ele procura grãos
de sol.
Poeta é  ser que vê semente germinar.

Manoel de Barros


As ventanias e intempéries podem destruir as flores e os frutos,
mas não a semente que a terra  protege.
Na hora do infortúnio,retorna à tua semente.

São João da Cruz

Sementes não são para ir para o lixo,
sementes existem para ser plantadas.
Carlos Pertuis 
(pintor e escritor, ex-interno
do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro.
Ele disse essa frase a Nise da Silveira, quando ainda era paciente,
ao ser surpreendido revirando o lixo e retirando sementes que ali estavam)
                                                                                  




No poema O guardador de águas*, Manoel de Barros descreve o seguinte acontecimento: sob um  monturo de restos de ossos , de folhas  apodrecidas,  de cacos de vidro   e farrapos do que outrora respirou e foi vivo, sob tal monturo que a natureza recolheu sem preconceito ou condenação, no ventre desse casulo úmido uma semente despertou: libertou-se dela um pequeno dedo, que virou mão tateando, depois braço que achou o caminho. Uma fuga foi-se desenhando, e o que era obstáculo tornou-se escada e sinalização para a vida ir para fora , fazendo-se impulso para a vida que se expandia. Movia esta vida o desejo de ver o sol, o sol que ela nunca viu. Esse desejo perfurou o monturo, abriu-lhe uma porta  e uma janela, pela qual saiu a pequena planta cantando a potência  de existir.

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O guardador de águas, guardador de fluxos. O fluxos  somente podem ser guardados em um espaço aberto, sem limites determinados, cujas margens sejam limiares que por dentro se podem expandir. Guardar os fluxos é cuidar também deles, a começar pelos fluxos que nos constituem: caute,como recomendava Espinosa; cuidado: como ato  ético e também  clínico. Em Manoel de Barros, a essência não é uma "forma fixa", ela é um "minadouro": dela brota e mina inauguramentos.Guardar os fluxos só o podemos em um espaço múltiplo, ao mesmo tempo subjetivo ( lírico) e objetivo ( prosaico).Guardar as águas é guardar-se nelas, como larva, rascunho, desabrimentos:"estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir"( Clarice Lispector, A descoberta do mundo).A fonte guarda as águas que por ela fluem, que por ela fogem, que a ela afetam. Ela guarda doando,e por isso é fonte, uma vez que guarda as águas que recebeu e recebe do fluxo infinito.A fonte é a indistinção entre o receber e o ofertar.







A barca do sol, Carlos Pertuis