sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

espinosa e o clarão do relâmpago

Uma das afirmações  mais intrigantes de  Espinosa é aquela na qual ele diz, em sua Ética,  que os sentimentos ,  que supomos meramente “subjetivos”, são causados pelas mesmas causas que produzem, fora de nós,  as tempestades, as chuvas, os dias de sol, os dias nublados, as névoas, etc. Os sentimentos também fazem parte da natureza.
Isso explica porque os poetas se valem da linguagem para dizer que a alegria ou o amor são como um dia de sol, ao passo que a tristeza é como um dia nublado, ou a ira é como uma tempestade...Fernando Pessoa, por exemplo, dizia que existem duas paisagens: a de dentro e a de fora, e que ambas permutam suas cores. 
O procedimento de Espinosa é retirar o “ como se fosse”,  e afirmar : a alegria ou o amor são um  dia de sol; a tristeza e o ódio, um dia nublado. Há causas físicas que produzem a alegria e o ódio.
Mas assim como o dia e a noite são realidades que se alternam, também podem se alternar, dentro de nossa alma, a alegria e a tristeza nascidas das mesmas causas que geram o dia  e a noite, o sol e a chuva. É por isso que a alma vive passagens abruptas de um sentimento ao outro, ou então a presença dos dois, como naqueles dias em que, ao mesmo tempo, chove e faz sol. 
Espinosa também afirma, porém, que há uma alegria tão ativa que dela nunca pode nascer uma tristeza. Quando compreendemos as causas da tristeza, por exemplo, dessa compreensão nasce uma alegria que quer ser sempre aumentada por mais compreensão, para gerar mais alegria. Quanto mais compreensão obtemos, mais fica claro   que não foi a tristeza primeira que gerou essa alegria, a da compreensão, pois esta sempre estivera  dentro de nós desde o início: era nossa alma que, presa na incompreensão, ainda não havia intuído que a compreensão não pode nascer da incompreensão, assim como não pode nascer da escuridão a luz: a aurora não nasce da escuridão que  está à frente dela, a qual ela empurra e avasta;a aurora nasce da manhã que se encontra  atrás de seu avanço.
 O branco, dizem, é o somatório de todas as cores, enquanto  o negro, como o da noite, é a ausência das cores. Todavia, existe ainda a luz. Esta é mais do que o branco. O branco nasce do somatório das cores, ao passo que a luz não nasce de um somatório de cores, pois cada cor é uma modificação ou expressão da luz, inclusive o branco.  O negro se opõe ao branco, e ambos podem alternar , dentro e fora de nós. O branco e o negro podem misturar-se, dando vez ao cinza. Contudo, não se misturam a luz e a escuridão:  basta a luz aparecer para que a escuridão desapareça. A luz não faz a escuridão desaparecer negando-a. Basta a luz afirma-se para que a escuridão desapareça.
Essa luz da compreensão assemelha-se mais ao clarão de um relâmpago do que à irradiação do sol. Através da  janela que pintou Vermeer não é o branco do sol que entra, o que entra é o clarão de um relâmpago. Ao contrário do sol, o relâmpago não produz sombras. Ele não ilumina apenas por fora, clareia também por dentro, como ao leite que a leiteira derrama.
A tristeza faz chover literalmente dentro da gente, o coração quase se afoga. Já a alegria é um dia de sol que a tudo  aquece. Não são metáforas, são afecções, são afetos. Quando chove, lamentamos; quando faz sol, nos alegramos. Desse alegrar e lamentar vive a imaginação e seus humores.E há ainda aqueles que se alegram com a tristeza, sobretudo a alheia. Estes são os mais tristes... 
Mas a luz da compreensão entende porque às vezes chove, e noutras faz sol. Ela compreende iluminando a chuva: ela a ilumina, sem ser pela chuva molhada, entristecida. Tal luz  ilumina até mesmo o sol, como o sol do sol .
A compreensão é a principal virtude ou potência da mente. Compreender é mais do que o mero conhecer."Mente" deriva do termo latino mens. Algumas traduções vertem para "espírito",  sem conotação religiosa. Em Espinosa, não há uma teoria das faculdades, como há na tradição filosófica. A mente é uma só. Razão, memória, imaginação , vontade...são modos da mente, são maneiras de ela se expressar. A mente também é a ideia do corpo ao qual ela está ligada. Em latim, mens não é um substantivo, mas um verbo: pensar. Na tradução, portanto, perde-se a natureza de ação que a mente  é, pois "mente" é, para nós, um substantivo, algo parado, estático. Assim, a mente não é uma ação feita por um sujeito que dela se distinga, a mente é ação : atividade que se diferencia sem se dividir em partes exteriores umas às outras. Compreender é a ação da mente, a sua virtude. 

Tal  compreensão ilumina não apenas nossas alegrias, ilumina também nossas dores, para assim nos auxiliar a vencê-las. De onde essa luz parte, porém,  não faz chuva ou sol: simplesmente a luz faz-se  , autoproduzindo-se como  absoluto clarão. Em nós, esse clarão se torna visão não apenas teórica ou filosófica, ela também é visão poética. Como diz Manoel de Barros, tal visão poético-filosófica, clarão que ilumina por dentro e por fora,  é "olho divinatório", "visão fontana", "canção do ver" . 



Vermeer, A leiteira.

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