terça-feira, 28 de novembro de 2017

a não velhez

( trecho do artigo:http://brasileiros.com.br/2015/01/manoel-de-barros-uma-didatica-da-invencao/ )

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas 
por crianças.
Manoel de Barros

velhez não é uma idade. Ela é um estado. Ela é, a velhez, a antipoesia: a “velhez não tem embrião” [1]. A velhez é refém da “palavra acostumada”, da “mente acostumada”, da “sociedade acostumada”, da “teoria acostumada”. Torna-se um acostumado aquele que perdeu a capacidade de achar dentro de si “minadouros”[2]. O acostumado, em filosofia, tem um célebre nome: recognição. O olho acostumado perde o dom de descobrir: “O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai garoto pelo piquete com olho de descobrir”[3].
A velhez  é a impossibilidade de se perceber como “forma em rascunho”, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa tem essa velhez jornalística, uma vez que para o jornal de amanhã, para a vida de amanhã, ela já será cadáver: “A palavra  até hoje  me encontra na infância” ( 2010a, p.111).
As infâncias não remetem a uma fase de crescimento que antecede a vida adulta, elas são devires de (re)invenção.É sobretudo em  Deleuze e Guattari ( 1980) que encontramos a idéia de devir tal como a empregamos  ( SOUZA, 2010).Devir é uma forma de comunhão por imitagem  (2010b, p. 177). A imitagem não é um tornar-se cópia de um Modelo, como em Platão; a imitagem é a produção de uma variação por contágio: “é ir imitando os camaleões sendo pedra sendo lata sendo lesma” (1992, p. 314).O devir é uma metamorfose da qual o próprio poeta fez seu Tratado de Metamorfoses (  1992, p.250).
No poema “Invenção” ( 2010b, p. 151),  o poeta dialoga com um menino que nasceu do seu lápis: "inventei um menino levado da breca para me ser",  diz o poeta, "passarinhos botavam primaveras em suas palavras", "(...) ao fim me falou que ele não fora inventado por esse cara poeta/ porque fui eu que inventei ele" . O "eu” deste último verso não é um  eu lírico, ele  é um agente coletivo como lugar da invenção.Ele é o “eu” do menino que o poeta inventou para (re) inventá-lo, empoemá-lo ( 1989), enfim,   para terapeutá-lo ( 1996).Há um elo ,uma distância mínima, um hífen entre o poeta e o menino. Tal distância não é a do julgamento, não é a distância do afastamento; trata-se de uma distância  que possibilita o afeto, o contágio, o ser tocado: é a distância intensiva de quem , como o poeta, "escreve com o corpo" ( 1992, p. 212).
O menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve” ( 2010b, p.147). O menino que inventa o poeta se torna um intercessor: “A liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças"( 2010d, p.469) , como exercício de ser criança (  1999).Por mais que passem os anos, esse menino será sempre um menino que nos faz devir um, por mais idade que tenhamos.
A distância mínima que possibilita a  invenção não pode ser medida com régua: ela   é    a origem, a fonte, que está sempre no meio, como espaço de comunhão, de  “imitagem”. Processo semelhante experimentou Clarice: “Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco” (LISPECTOR, 1984, p11). Talvez nosso poeta experimentasse algo parecido quando afirmou: “Nossa linguagem não tem função explicativa, só brincativa” . Entre o menino e o poeta há uma distância mínima onde ocorre um contágio, um afeto , uma transubstanciação (1992, p320), uma epifania, um devir-criança, enfim. Este intervalo não é um espaço vazio, ele é o lugar das “raízes crianceiras” ( 2010b, p 187).
O tempo do devir-criança não pode ser medido pelo relógio; ele é o “tempo quando” (2010b, p. 133). Do ponto de vista dos fatos cronológicos encadeados linearmente, o devir é um desacontecimento (1992, p. 238). O desacontecer remete a um “tempo quando” não cronológico, tempo de metamorfoses. O quando é o tempo de "ir às origens de uma coisa ou ser" (  2010b, p. 133): “eu não amava que botassem data na minha existência.(...) Nossa data maior era o quando.O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio” (Idem).
 O "des" do desacontecer é o mesmo "des" do desaprender que Manoel aprendeu de Klee: "Ocorre que falo em desaprender pra chegar ao degrau da infância" ( apud BARBOSA, 2003, p. 127). O “quando” do tempo quando  não é data: não é passado, presente ou futuro. O quando é acontecimento que expressa uma metamorfose, tal como relatado no poema “Palavra” ( apud  RANGEL, 2001):  o poeta  estava sentado em um lugar. Até que veio a palavra e tirou o lugar debaixo dele. Ele continuou sendo, porém sem lugar. Todo lugar limita um espaço de estar, de ficar. Sem o lugar, o poeta permaneceu  ainda sendo, mas não no aqui, apenas no quando. Este quando é um lugar também, mas sem contornos, sem limites, posto que é um lugar de metamorfoses, de nadifúndios (1989, p. 14). "O artista está sujeito a essas metamorfoses" ( apud BARBOSA, 2003, p.125) que o fazem ir além do "mesmal" (apud  BARBOSA, 2003, p123).






[1] Ibid., p. 98.
[2]Ibid.,p.145.                                                                                                                                                                   
[3] Poema “Mundo renovado”, Livro de pré-coisas.

Referências

- Obras de Manoel de Barros consultadas:

Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda edição).
Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org. Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.           
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.

Outras referências:

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.

BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica  em Manoel de Barros. Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.

CAVALCANTI,Ana Símbolo e alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2005

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.

_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.

_____________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.

LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2006.

RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.


( desenho de Manoel de Barros)


(Chagall, O tempo não tem margem , 1930-1939)




a coragem da verdade

Em um de seus últimos cursos ministrados, e publicado sob o título A coragem da verdade, Michel Foucault, que pouco se refere a Espinosa, cita o autor da Ética de uma forma que  revela a admiração que nutria por Espinosa, a despeito das poucas palavras escritas que lhe dedicou. Segundo Foucault,  em Espinosa fazer filosofia é inseparável da produção de uma vida filosófica.  Produzir um modo de vida filosófico, este é o principal desejo que tem na filosofia a sua causa eficiente. 
Foucault argumenta que  essa conduta muda radicalmente a partir de Leibniz,  não obstante Espinosa e Leibniz  serem contemporâneos ( Espinosa era apenas um pouco mais velho que Leibniz).A partir de Leibniz, fazer filosofia será identificado a escrever livros, artigos; dar aula na academia, fazer palestras, acumular Títulos. Em Espinosa, a vida filosófica não é uma vida à parte, ela é a vida mesma.Produzir uma vida filosófica requer não apenas amor à Verdade, requer  sobretudo coragem .E disto a própria vida de Espinosa  dá o testemunho. Decerto que não faltou amor à Verdade a Sócrates ou Platão, e nisto Leibniz os segue. Mas poucos foram além do amor, poucos exerceram esta coragem que a Verdade pede. Há uma dimensão clínica nessa Verdade, pois toda cura começa na coragem. Coragem não para enfrentar a doença, mas coragem para viver de acordo com  a saúde.
Há uma influência dos estoicos sobre Espinosa no esforço que este empreende para instituir uma medicina da alma. Parece absurdo que o homem tenha criado uma medicina corporis e que, no entanto, tenha descuidado de uma medicina mentis, uma vez que ele é constituído por essas duas realidades, e não apenas por uma delas. O homem apenas pôde produzir a medicina corporis quando conseguiu vencer  o curanderismo nas questões que envolviam a saúde do seu corpo.Todavia, no que diz respeito à salut de sua alma, entrega-se o homem ainda a práticas encantatórias, mágicas, como se apenas de um milagre pudesse vir tal salut. Procedendo assim, a alma está sempre a depender de outra coisa para ser si mesma e exercer sua virtude, que é a compreensão, o pensar.Todavia, não há como a alma delegar essa virtude e permanecer alma, assim como não há como ela, em vida, delegar sua existência a outra coisa e ainda permanecer viva. Na verdade, a virtude de pensar não pode ser delegada, pois ela constitui a existência da alma. No entanto, ela pode ser enfraquecida, entristecida, e isto é o que ocorre quando a alma adoece.

Ao perceber que o corpo está doente, a alma age visando a cura dele produzindo um método. Se for a alma a doente, o inverso não se aplica, pois o corpo é incapaz de perceber uma doença na alma.Se o corpo está bem alimentado, saudável, ele está na plena posse de sua virtude, que é agir. Perceber é uma virtude que depende da alma, e não do corpo.Mas como alma e corpo são um só, é abstrata a ideia de que um possa estar são e o outro doente. Esta hipótese foi aventada apenas para introduzir a seguinte questão: se a alma estiver doente, impotente, como pode ela perceber em si mesma tal impotência?Como poderia ela, estando doente, isto é, encontrando-se incapacitada para compreender, compreender justamente que ela não compreende?Como poderia ela emitir um juízo acerca de si mesma se ela se acha incapacitada para emitir juízos?Se ela se encontra fora dela mesma, e sua casa é a compreensão, como pode ela entrar nela mesma para, exercendo sua virtude, buscar sua própria cura?A cura do corpo depende da alma, sem dúvida. Mas a cura da alma depende dela mesma. No entanto, se toda cura depende de um método, como pode a alma estabelecer um para si mesma se ela ignora que ignora?Assim, e antes de tudo, é preciso que a alma conheça que está doente. Conhecer não é reconhecer. O reconhecer é uma passividade, ele é a aceitação de um juízo externo que outrem faz sobre nós mesmos, ao passo que o conhecer é uma atividade que só depende de nós mesmos, pois ele é a produção de um conhecimento apoiado em uma ideia adequada. Quando conhecemos que estamos doente, já não o estamos mais: já ultrapassamos a doença pelo esforço para compreendê-la. Quando conhecemos que estamos doentes na alma, é sempre a uma parte da alma que a doença se refere, e não à alma inteira. Na verdade, a  parte doente da alma é apenas a alma pelo avesso, alienada de si mesma. Do conhecimento da doença nasce um método, que é um esforço sobre si mesmo para adequar-se a si mesmo, à nossa ideia adequada. Esse esforço é a expressão de uma constância que só se torna contínua  quando nos colocamos de acordo conosco. 
O método é um exercício sobre si: ele é uma medicina animi, ele é uma clínica. A verdadeira clínica não é luta contra a doença, mas potencialização da saúde.Somente quando não está mais pelo avesso é que nossa alma pode nos vestir e ser a ideia adequada de nós mesmos, ideia esta que nos dá coragem e firmeza.A clínica é a constituição de um modo de vida, de um pensar e de um agir adequados. 
"Método" significa: "caminho para".O método é um caminhar, um caminhar para. O método é um caminhar para nós mesmos, para a ideia adequada. Esta não é um fim que se coloca exterior ao caminhar, ela é a causa eficiente dele. A ideia adequada é o martelo que produz o caminhar . Como toda ferramenta, é o uso que a aperfeiçoa, ao mesmo tempo em que aperfeiçoa o agir do  artesão que a tem nas mãos.A nossa existência é um caminhar para a essência, um caminhar de acordo com a essência.Por isso, o método é uma conduta cuja causa é a essência que expressamos. O método é um caminhar para a essência, isto é, um estar de acordo com aquilo que não nos falta, mas que nos é necessário produzir como modo de vida. 



domingo, 26 de novembro de 2017

A IDEIA COMO ENÉSIMA POTÊNCIA



Quando formamos uma ideia verdadeira, conhecemos adequadamente  não apenas o objeto que ela nos faz conhecer: conhecemos também a própria  ideia como algo que igualmente existe, e do qual podemos formar uma ideia.Nasce,assim, uma ideia da ideia , que é a expressão de uma reflexão : re-flexus, "dobrar-se sobre si mesmo", à maneira da lagarta no interior do casulo.Uma ideia verdadeira nunca é uma realidade pronta, existindo independente daquele que a pensa. Toda ideia verdadeira precisa ser formada, produzida, no instante mesmo em que é pensada.Principal efeito sobre nós da ideia verdadeira: tornar também verdadeira, potente, nossa capacidade de formar ideias verdadeiras. E uma ideia verdadeira não se forma sem tornar também verdadeira a vida  daquele que a forma. 
           Quando sabemos, portanto,  sabemos que sabemos. Este segundo saber não é  outro saber diferente do primeiro. Ele é um desdobramento do primeiro , um desdobramento ou potencialização do saber, uma vez que só o saber gera saber. 
        Saber é mais do que conhecer: o conhecer é conhecimento de um objeto mediante uma ideia, o saber é conhecer a própria ideia que nos permite conhecer. A ferramenta produz a obra, bela ou útil. Mas a própria ferramenta também é produzida por outras ferramentas, como expressão e desejo de produzir do artesão. Antes de produzir sua obra, o artesão produz o que produz sua obra, e isto também é obra, obra da obra nascida da potência de obrar.
A ideia da ideia é uma ideia que tem outra ideia como seu objeto, para assim produzir o conhecimento dela. Toda ideia é diferente de seu objeto.  Logo, é pela diferença que se conhece uma diferença, uma vez que a ideia da ideia é a ideia mesma dobrada sobre si. A segunda ideia não é a primeira dividida em dois: ela é a primeira multiplicada à enésima* potência. A borboleta é a lagarta mesma, porém elevada à enésima potência.
O que sabe o saber que se sabe saber? Ele se  sabe grau de uma Potência que é enésima. O Pensar é a ideia em enésima potência. O saber que se sabe não é uma perspectiva sobre o que se sabe; ele é o desdobrar o que se sabe mediante a construção de um método para saber mais, entrando ainda mais no saber. 
A ignorância é um ignorar que se ignora, é um não saber que não se sabe. Do contrário, se o não saber se soubesse, não seria mais não saber, não seria mais ignorância, mas saber. Saber que se sabe não é saber tudo, mas saber que se pode saber. O que caracteriza a ignorância é exatamente essa incapacidade de reflexão, de desdobramento de si em relação a si e a todas as coisas. Para refletir nosso ser, ou sobre o nosso ser, é preciso , antes, ser.E ser é existir em conjunto, em relação. Existir é pensar e agir.
"Só sei que nada sei" nada diz. "Sei que sei que posso saber", eis um enunciado verdadeiramente ético, pois dele nasce uma decisão não apenas de pensar, como também de agir.
        O sol ilumina os seres. Se o sol quisesse conhecer seu ser iluminador, não seriam os seres iluminados por ele que o ensinariam o que somente ele pode saber. O sol duvidaria de si mesmo se o seu conhecer a si mesmo dependesse do depoimento das coisas desprovidas de luz. Para o sol conhecer a si mesmo, é preciso que ele ilumine a si mesmo e veja em si o que ele produz nos outros seres. É preciso que ele se auto-afete de luz. Somente o sol tem luz. Não é pondo-se à sombra de si mesmo que ele se conhecerá. É preciso ele afirmar a si mesmo na luz que ele é. Quando conhece a si mesmo o sol nada mais faz do que saber o que já é: ser que ilumina outros seres. Logo, o sol do sol é o próprio sol querendo ser mais dele mesmo.E disso nasce uma alegria luminosa que de nada mais depende.
_____
* En-ésima: "ésima" é uma ordenação numérica que segue certa ordem determinável quantitativamente ( vig-ésima, trig-ésima, cent-ésima, etc.).  En-ésima é uma realidade que não resulta de uma ordem quantitativa crescente ou decrescente, ela não está no fim ou no começo, tampouco é o resultado ou termo de uma soma. Enésimo não é o que está depois do trilionésimo ou de um último ésimo, pois ele está sempre no meio e é meio para pensar, não para contar ou medir quantitativamente. Enésima potência  é uma incógnita: "ninguém sabe o que pode um corpo", sua potência é enésima. Embora finita, ela é enésima.



a tempestade...


Dispo-me das roupas de cima.
Dispo-me das roupas de baixo.
Prossigo ainda me despindo da pele,
da carne, do sangue, dos ossos, dos nervos...
E assim, com a alma nua em pêlo,
com frio e saudade, mas sem medo,
saio à rua para enfrentar a tempestade.




(a tempestade, Turner)




sábado, 25 de novembro de 2017

as ideias-carbono

a pedra tem a calma de não ter futuro.
Clarice Lispector

Uma das principais diferenças entre a matéria viva e a não viva pode ser compreendida pelo átomo de carbono. O átomo de carbono é uma singular  expressão da matéria viva. O carbono, como todo elemento químico, foi gerado na usina das estrelas. 
A matéria não viva tem por característica a presença de moléculas que reproduzem um modelo quase estático, dado que entram na composição de tais moléculas poucos átomos. A matéria não viva repete uma fórmula com pouca variação criativa. A matéria não viva se repete, sempre a mesma, por isso ela não tem memória ,  para assim se diferenciar do que fora; ela também carece de   desejo, e  por isso não se (re)inventa.
O carbono, ao contrário, é um dos átomos mais singulares e únicos: ele é capaz de compor-se com vários átomos diferentes, e assim produzir , agenciado com diferenças, moléculas sempre diferentes. Tais moléculas se tornam o meio para a produção de outras moléculas diferentes.  O carbono parece que existe para ser o agente de uma rede cada vez mais heterogênea e complexa. Embora singular, ele tem a potência do múltiplo.O próximo desafio do carbono, pensam alguns, é se agenciar com o silício...
O carbono atrai os átomos diferentes por meio de acontecimentos elétricos. Não é a gravidade a força que o move, mas a eletricidade enquanto variação intensiva. “In-tensio”: “interior à tensão ou vibração”. Intensidade é a qualidade do que é intenso. Ser intenso não é ser agitado. Ser intenso é existir como vibração, como a corda do arco que lança longe as flechas. Uma marionete pode ser muito agitada, porém nada tem de intensa.

As ideias são acontecimentos parecidos. Há ideias que são como os átomos da matéria não viva: elas querem apenas se propagar como palavra de ordem homogênea, delas nascem apenas moléculas do mesmo, do igual; e o pior igual é o clichê do diferente.  
Mas há ideias-carbono...Tais ideias não existem para serem decoradas ou repetidas materialmente, elas existem como agentes de um agenciamento, criando múltiplos sentidos para os acontecimentos que ela conecta. São ideias intensas, são vibrações de uma singularidade conectada a uma rede, tal como a corda do instrumento que vibra, conectada à polifonia que ela mesma engendra, como  parte ativa.


terça-feira, 21 de novembro de 2017

o verossímil e o pseudossímil

verossímil, o “semelhante ao verdadeiro”, não é a mesma coisa que o pseudossímil, o “semelhante ao falso”. Algo que é semelhante ao verdadeiro é aceitável como base de uma argumentação, porque é aceitável o verdadeiro; mas o que é semelhante ao falso não é aceitável, nem como argumentação,  posto que o falso não é aceitável. 
O político “esperto” não tenta fazer passar o falso pelo verdadeiro, pois isso daria muito na pinta,  mas o pseudossímil como se fosse o verossímil. Porém o que parece falsidade não é a mesma coisa do que o que parece  verdade. O que parece falsidade quase sempre o é, já o que parece verdade pode  ser ou não verdade, depende das provas.

Os que argumentam apoiados no verossímil não temem as provas, mas  os que “argumentam” se defendendo com o pseudossímil  agem não visando a verdade, e sim  na esperança de que não sejam achadas as provas de sua falsidade. Sua aparente calma e segurança advém do fato de que sabem que as provas foram ou destruídas ou muito bem escondidas, sob o mar, sob a terra ou sob  (muito)dinheiro. 
O verossímil é o verdadeiro se tentando provar; o pseudossímil é o falso tentando se dissimular.





psiquê e o pardal






Mal nascera o dia,
no intervalo profundo entre as horas,
pela minha janela entrou um pardal,
que continuou entrando também por minha alma.

Ajeitando-se perto do meu coração,
criou um ninho para aí gerar vida nova.
Lá no fundo de mim,
o pardal cavou-me um fora:
ora em mim agora morre o dia;
ora me nasce , renovada, a aurora.

Todo dia, bem cedinho,
ainda em meio à treva,
assim o pardal me acorda:
"Viver não é para ontem ou amanhã,
mas sempre para agora!"








a ideia de democracia em espinosa (3)

Mesmo quando estive muito doente,
jamais fui doentio.
Nietzsche

Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo,
Manoel de Barros

Do ponto de vista do direito natural não há delito, pois não existe o justo ou o injusto nesse âmbito. No direito natural  cada um   segue seu conatus, segue portanto sua natureza, e faz tudo para conservá-la."Natureza" não é apenas o rio, a pedra, o bicho... Natureza é tudo o que existe e se esforça para perseverar existindo. Natureza é existência.Os seres que existem desejam o mais que podem continuar existindo, e esse desejo constitui um direito, o primeiro de todos: ele não está codificado ou escrito, ele não nasce de um legislador. Ele brota junto com o próprio nascer de cada coisa: é a vida mesma, a vida de cada coisa se esforçando para continuar viva. Nesse âmbito da existência, a vida não quer o Bem, o Mal, a Verdade...Ela quer apenas uma coisa: ela quer tão somente a si mesma, e a isto quererá com o máximo de força que tiver, pois a vida nada é senão esse máximo de força para ser vida. Esse é seu direito, sua força, sua saúde.
O direito natural não é o direito social ou civil .O direito natural  antecede a formação da sociedade. Contudo, ele não é “anti” ou   a-social, dado que  tais prefixos nada são sem o social que lhes confere um sentido. Mesmo a ideia de “margem”, quando se diz que alguém ou algo está à margem do social, pressupõe já um social  constituído.O direito natural não é anti ou a-social: ele é pré-social
Esse "pré", no entanto,  não indica anterioridade histórica no tempo. É um pré  no sentido  lógico e ontológico. Nenhuma sociedade pode eliminá-lo sem eliminar a si própria, pois o ontológico precede o sociológico.  Pode-se dizer que o direito natural é uma abertura que toda sociedade mantém para a natureza: as sociedades diferem no espaço e no tempo, porém sempre o mesmo é o direito natural. É essa abertura que  livra as sociedade de se enrijecerem  em  formalismos de toda ordem, dos quais o mais perigoso é o formalismo jurídico ( que tanto pode favorecer às espertezas antidemocráticas...). Toda sociedade é histórica, mas não a natureza à qual ela deve se abrir, e que a antecede como o eterno antecede o temporal. Toda autêntica "desobediência civil" deve ser, antes de tudo,  uma obediência ou afeto pelo ontológico. 
Contudo, é uma abstração imaginar que possa existir um direito natural a par de um direito social constituído, assim como é uma abstração imaginar que possa existir homem sem uma sociedade, tal como imaginaram os filósofos políticos clássicos. No direito natural não há o justo ou o injusto, isso é certo. Contudo, não há homem que exista em uma sociedade sem o justo e o injusto. De onde vem o justo e o injusto? Eles somente podem vir das regras instituídas pelo homem em sua liberdade de co-instituir sua liberdade com outros homens.O justo não é uma ideia pairando num Céu Inteligível, tampouco o injusto lança raízes em uma suposta essência  Demoníaca do homem. O justo e o injusto são valores criados, inventados. São as regras que devem expressar tais valores.Mas por que tais valores foram criados? Os valores foram criados para serem os instrumentos de potencialização do direito natural do homem. Não há uma separação entre o natural e o social, pois o próprio natural é uma comunidade ontológica , uma democracia absoluta. 
Nesse sentido, as filosofias da história e do direito civil abrangem apenas as sociedades constituídas e os modos pelos quais elas se relacionam com isso que as ultrapassa em potência, a natureza,e que está aquém de toda história. Logo, está aquém de noções como evolução e involução, progresso ou decadência. As sociedades progridem ou decaem , tendo em vista os valores que elas determinam para si mesmas. Por isso, é impossível a uma sociedade conservar-se  em uma duração temporal sem fim. Quanto mais ela  se esforça para isso, mais toma a feição de um império cujo mandatário se revestirá de atributos divinos sobrenaturais. 
Decerto que uma sociedade não pode ter  uma duração sem fim, como não o pode ter qualquer indivíduo que existe. É por isso que toda sociedade é histórica, inclusive os valores que a sustêm. Porém, de todas as sociedades históricas, a que mais tem potência para durar é a sociedade democrática: mesmo que ela não exista de fato, sempre existe a reivindicação dela. Onde ela não existe , ela é, por isso mesmo , reivindicada , desde o momento em que os homens cessem de servir ao déspota ou  ao Estado, e busquem exercer a conservação de suas próprias potências, a começar pela liberdade de pensar, pois estas potências só podem aumentar no auxílio mútuo, e não no servir exclusivamente a um só, mesmo que seja o próprio ego. E quando a democracia já existe, há sempre a tarefa de potencializá-la. Nesse sentido, embora histórica, a sociedade democrática é a que mais é absoluta, vez que ela é a expressão social do próprio direito da natureza. Em Espinosa, "conservar a própria existência" não significa algo estático ou conservador ( no sentido moral ou político). Para o filósofo, somente o que é criado pode ser conservado. Assim, conservar a existência democrática é continuar a produzi-la, mantendo-a livre, viva, potente. 
Ser absoluta não significa ser exatamente eterna. Ab-soluto: o que não pode ser dissolvido, soluto. Mesmo que sejam dissolvidas as regras e as constituições, não pode ser dissolvido o desejo de democracia do homem, desde que o homem seja de fato um homem, e não um servo ou escravo . O homem do poder e da tristeza  pode querer dissolver a civilização, seja com  bombas ou pela corrupção. Contudo, esse poder (potesta) não é ab-soluto, pois nenhum poder (potesta) é absoluto. Saber do limite desse poder, e resistir a ele, nada tem a ver com esperança, otimismo ou ingenuidade. Tem a ver com o pensar, com a filosofia, com a saúde, enfim, com a potência ( potentia). Ou a filosofia é isso, essa resistência criativa e democrática, ou então não é nada. 
O Estado nasce quando delegamos nosso poder de agir, não o de pensar. O Estado surge da delegação do nosso poder de agir. A potência de pensar  é sempre um fato natural, privado: o pensar é sempre potência indelegável ( ninguém pode pensar por ninguém, embora  alguém possa  ser o agente do pensar para um outro, desde que haja um bom encontro, um agenciamento). O pensar  é privado não porque dependa da atividade econômica ou porque nasça no interior de um oikos, de uma casa , de uma família. Ele é privado porque ele nasce na imanência  do espírito , enquanto ideia viva do corpo. 
Segundo Espinosa, é da natureza humana querer mandar e resistir a obedecer.Esse direito natural  é aplicado, primeiramente, no próprio indivíduo em relação a si : livre é quem manda em si mesmo, servo é quem é mandado por outro.Antes do obedecer a si mesmo há o mandar em si mesmo, como efetuação de uma potência.No estado de natureza tal direito  natural leva os homens ao conflito. A sociedade civil nasce não para abolir esse direito/desejo, ela nasce para o ampliar e potencializar mediante as regras que os homens  co-instituem na vida em comum. Mediante as regras, todos mandam . Uma regra na qual  apenas alguns mandam, tal regra já não é mais regra. Como tal, ela pode ser destruída.Não exatamente destruída pela força bruta, mas destruída pela afirmação de uma regra que possa mais do que ela.Mesmo quando uma regra democrática proíbe um comportamento , tal proibição não é uma negação aos que, por ela, comandam, mas àqueles que não sabem governar-se.Se uma regra proíbe um comportamento que é lesivo a uns ou ao todo, o homem livre não verá nessa proibição algo que limite o seu desejo, pois o que a regra quer ele também o quer, dado que ela é uma expressão do seu desejo individual como parte de um desejo coletivo, de uma alma em comum.
Mas as regras jurídico-sociais valem apenas para o campo das ações públicas na construção do comum civil, elas não se aplicam ao pensamento . Este produzirá outro comum, outras regras: regras do conhecimento das coisas da natureza, incluindo a natureza da qual a sociedade é uma parte, e não uma realidade à parte.Assim, as regras sociais serão tão ou mais democráticas quanto mais expressarem o que o pensamento conhece ser as regras da própria natureza. 
Em filosofia, "natureza" nada tem a ver com o mero instintivo ou biológico. O instintivo e o biológico são expressões da mesma natureza da qual são também expressões um poema, uma teoria científica, uma equação matemática. E nenhuma dessas expressões é uma expressão privilegiada. "Natureza" significa "essência", ou seja, algo que qualifica uma existência, e que somente a partir da existência pode ser conhecida e pensada. Em Espinosa, essência tem por sinônimo potência. 





segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Ulisses e Narciso

O tempo tudo tira,
e tudo dá.
Giordano Bruno

Segundo Plotino, a alma humana pode ser compreendida segundo dois mitos: o de Narciso e o de Ulisses.Tais mitos são símbolos da condição humana, independentemente da época histórica.
Narciso representa a alma que foge de si mesma e se apaixona pelas imagens corpóreas que lhe estão fora. Fisga-o a imagem-aparência dos outros corpos a agir sobre o seu. Narciso ama o que vê, e pensa que tudo o que existe é o que vê. Porém,  ele vê somente  uma volúvel existência carregada pela correnteza inconstante da superfície sem espessura de um lago turvo, que nada mais é do que a projeção de sua imaginação ensimesmada.
Narciso quer parar o imparável : apega-se ao que não pode ser pego, então sofre por amar um espectro. Na verdade ele desconhece que ama apenas uma projeção de si mesmo fora de si mesmo: ele procura no fora o dentro do qual se perdeu. Narciso é como o molde que molda a areia,mas que se aliena no que moldou, passando a  sofrer com o vento a desfazer movediça certeza. 
 Narciso é o extremo oposto, o avesso , da divisa do Oráculo de Delfos: ele desconhece a si mesmo e , por isso, procura a si mesmo onde  um si não pode haver. Narciso simboliza a saída da alma de si mesma e a sua perda fora de si mesma: seus olhos não são janelas que dão para dentro, são janelas através das quais a alma salta para fora e não mais retorna, como o suicida em seu desespero.
Ulisses, ao contrário, é o personagem do regresso, do retorno. Enquanto Narciso é perda na contemplação estéril, egoica,   Ulisses é ação laboriosa e paciente para vencer os obstáculos e barreiras que se interpõem entre ele e sua casa, seu lar.
Ulisses quer retornar, porém perdera o mapa , seu navio queimou, os companheiros o abandonaram, enquanto  nuvens sombrias cobrem as estrelas que poderiam orientá-lo. Faltam-lhe os meios para o retorno, porém não lhe faltam a memória e o desejo de ao início retornar.
Até à morte Ulisses foi, pois ele esteve no Hades, como Orfeu também esteve. Todavia, enquanto Orfeu foi ao Inferno buscar o amor que vivera , para assim fazê-lo viver novamente, Ulisses foi parar no "Mundo Subterrâneo" perdido por um amor infernal, que no Hades o fez refém como a um morto.
Porém , no Hades Ulisses  encontrou o que não esperava: lá estava  sua mãe, que morrera sem Ulisses o saber. Embora ela fosse sombra sem memória, do gerado a geradora  não esqueceu. Assim,  em meio à morte ele encontrou a sombra da vida.  Embora sombra,  tal encontro despertou em Ulisses a força para querer rever, e viver,  a vida e sua luz, fora daquele mundo de coisas mortas.
Ulisses é o retorno ao caminho já feito que agora parece novo, pois o caminhante já não é o mesmo. Ulisses é a alma em busca de si mesma, do seu natal, e que sabe que o seu si mesma está onde se encontra sua origem: esta não é só o fim, ela é também invenção de  meios.
O retorno da alma a si mesma não é como o cogito cartesiano, que se compraz apenas com pensamentos racionais interiores ao eu; o autêntico retorno é desejo de achar-se fora do eu, porém perto do pensamento que não é egoico. A origem não é uma ideia inata ao eu, ela é o natal que gerou o eu para ser mais do que eu. Chegando ao seu natal, o eu pode até mesmo libertar-se de si mesmo, e ser ninguém ou outro : "Perdoai, mas eu preciso ser Outros"(Manoel de Barros).
Ulisses retorna ao preço de provas éticas pelas quais é testado. Isso acontecia para o destino saber se era apenas em palavras que  Ulisses retornava, ou se havia autenticidade em seu retorno, em ações também.
 A última prova de Ulisses foi a “dobra do arco”. Ele tinha que provar força para dobrar seu instrumento de guerra e autonomia, urgia  provar que era ele mesmo, que era autêntico, e não uma farsa, um engodo, para os outros e para si mesmo.
Em latim, força da alma se chama “vis”, de tal expressão nasceu “virtude”. “Vis” era o nome que se dava à força potencial que nascia da corda do arco quando tensionada, para assim lançar a flecha longe. 
A alma virtuosa é corda (in)tensa que lança longe as palavras e ações nascidas de sua autenticidade,  de tal modo que tais palavras e ações sobrevivem àquele que as fez e disse.
São as virtudes a força que reconduz a alma a si mesma. Virtude não é apenas palavra, é ação que dobra as impossibilidades pela força de querer mais do que o possível. É a ética, enquanto campo das virtudes, que faz a alma reentrar em sua pátria, para ali ser soberana.
Narciso achou-se em um lago; Ulisses buscou-se na travessia de um oceano. Narciso submergiu ao fundo , morrendo; Ulisses pôs-se ao horizonte, para viver.



sábado, 18 de novembro de 2017

linha de fuga e ato criativo

“Linha de fuga” é uma noção criada por Deleuze e Guattari para explicarem o ato criativo. Criar uma linha de fuga não é exatamente fugir de algo, mas fazer fugir algo de uma forma ou limite que o prendia. Por exemplo, Van Gogh fez fugir a pintura de uma forma ou limite de se compreender a pintura. Antes de Van Gogh produzir sua linha de fuga, todos achavam que pintura era aquilo que até então se fazia, de tal maneira que os mantenedores de tal visão  não aceitaram ou desprezaram a linha de fuga que Van Gogh fez. De certo modo, tais mantenedores do estabelecido não tinham olhos para ver o novo. O que Van Gogh fez não foi destruir a pintura ou simplesmente negar a pintura, o que ele fez foi recriar a pintura, potencializando-a, fazendo-a começar de novo. O novo nunca começa de um zero, de um nada, ele começa em um fuga, em um fazer fugir algo .Tudo é linha de fuga: a própria arte não é uma imitação ou cópia de uma dada realidade que lhe é exterior, a arte é o ato de fazer fugir uma  realidade daquela forma de realidade que o senso comum acredita ser a única realidade.Como afirma Manoel de Barros: “Inventar aumenta o mundo”.



sexta-feira, 17 de novembro de 2017

ir às estrelas

em qualquer lugar onde o homem experimentou se por de pé,
ele próprio se tornou o centro do grande círculo,
e o começo de um caminho.
Clarice Lispector

Segundo Fernando Pessoa, no início dos tempos o homem andava de quatro, como um cão. Sua coluna vertebral era paralela ao chão, parecendo um travessão [ - ]. E sua cabeça estava voltada sempre para baixo, a procurar sobras e restos.  O que pôs o homem de pé não foram os pés. O homem foi elevando-se quando seus olhos se desterritorializaram do chão e se reterritorializaram no céu infinito acima dos interesses rasteiros .E foi assim que nasceu o desejo: em latim, “desiderare”, “ir às estrelas”. 
De pé, vista de lado, a coluna vertebral assemelha-se a um ponto de interrogação [ ? ], pois é o interrogar que pôs e põe o homem de pé (o interesse estreito o coloca de quatro, enquanto o medo o põe de joelhos).

(Poesia, de Haroldo de Campos)

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

o sentido...

O número de palavras ou signos de uma determinada língua é sempre menor do que o número de coisas que existem, pois estas são infinitas, porém finitas são as palavras.
É por isso que algumas palavras têm mais de um sentido, exatamente para , sendo apenas uma, expressar no entanto mais de uma coisa. Por exemplo, a palavra “cadeira” pode expressar o “nome de uma disciplina escolar”, “uma  parte do corpo” ou  “um objeto para sentar”. A mesma palavra ou signo pode expressar três sentidos distintos. É o sentido que potencializa a palavra, dotando-a da potência de expressar mais do que o pode dizer a mera palavra.
As palavras existem sempre em menor número do que as coisas, porém o sentido nunca é totalmente numérico ou quantitativo. Tal como as coisas, o sentido também é infinito, ele não pertence a nenhuma língua específica. As palavras podem faltar, porém nunca falta o sentido.
As palavras possuem um limite: as cerca um vazio, como incapacidade de representarem o infinito. O mesmo não acontece com o sentido. Por ser incorporal, nunca nada pode limitar o sentido, tampouco a ausência  de sentido o pode, pois uma ausência nada é: “ausência de sentido” também tem um sentido!
O que são as ideias? Elas nunca são apenas palavras de uma língua, mesmo se tratando da língua grega ou a alemã, pois não há privilégio de determinada língua histórica em  dizer as ideias; tampouco as ideias são cópias das coisas. As ideias são o próprio sentido, dando à linguagem a potência de não faltarem ao infinito, mesmo que para dizê-lo em poema: talvez apenas assim , poeticamente, o infinito possa ser dito.
( comentário ao texto “Raymond Roussel”, de Gilles Deleuze)






A ciência confunde o desconhecido com o misterioso. O desconhecido é aquilo que um dia poderá ser conhecido, faltando-nos ainda os meios, como um planeta que já existe no universo, mas que  nossos telescópios ainda não acharam. Esta é a “fé” ou “credo” da ciência: tornar tudo conhecido, para assim dominar e manipular.

 O misterioso  não é o mesmo que o desconhecido. O misterioso nunca será conhecido. Do misterioso só  podemos nos aproximar, e para isso é preciso inventar os meios.  Do misterioso só podemos nos aproximar, saindo de todo conhecido: para a este retornar, já não mais o mesmo.

manoel & deleuze: rizomas...


Essas águas não têm lado de lá.
Daqui só enxergo as fronteiras do céu.
Manoel de Barros


Usa-se a inteligência   para entender a não-inteligência [ o afeto, a  arte, a vida].
Só que depois o instrumento  -  o intelecto - por vício de jogo continua  a ser usado,
 e não  se pode colher as coisas de mãos limpas,
diretamente na fonte.
Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo.




Na natureza  há dois tipos de raízes: as arborescentes e as rizomáticas. As primeiras possuem raízes fixas, ao passo que as segundas são constituídas por raízes que se movem, e que fazem da planta um autêntico  andarilho, um Andaleço de espaços lisos de itinerâncias.Filosofias ortodoxas sempre fizeram da árvore um modelo ideal de sistema : raízes fincadas em um solo fixo ( seja este solo a Razão ou Deus), um tronco rígido , a Física, ligando as raízes aos diversos galhos, que são as disciplinas  sustentadas dogmaticamente  pelo tronco.  Descartes,o racionalista, é o exemplo mais célebre de uma filosofia arborescente. 
Em Deleuze e Guattari, diferentemente, as formações rizomáticas inspiram uma pop’filosofiaMil Platôs). O rizoma é  constituído por  raízes formando uma multitudo, um espaço sem centro, uma anarquia coroada. O rizoma  não é uma semente, um fruto ou uma flor. Ele é uma raiz que brota de si como se fosse uma semente, ele  guarda em si sua continuidade à maneira de um fruto, ele desabrocha  para fora como só faz uma flor.Ele é sua própria semente, fruto e flor, sem deixar de ser raiz.Ele é plenamente raiz, e como tal o rizoma cresce. Enquanto no modelo arborescente as disciplinas são compartimentadas e segmentadas, o rizoma inspira uma produção de conhecimento trans e interdisciplinar.A essência do rizoma é se expandir:  expandir-se como raiz, sem para tal necessitar de semente, fruto ou flor.Os rizomas são plantas sem “existidura de limites” , como diz Manoel de Barros. São plantas de conectividade, agenciamento, encontros, afetos . Como em Manoel de Barros, os rizomas são as raízes crianceiras , são as raízes da invenção.

trecho do livro:



segunda-feira, 13 de novembro de 2017

os desutensílios poéticos


       






                             
 O olho vê,
a lembrança revê
e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
                                                                                       Livro Sobre Nada, p. 75.



- o transver e o transfazer
O prefixo “des” comumente exprime “negação”, “ação contrária”, “privação”, “afastamento”. Por exemplo, “desfigurado”: aquilo que é desprovido de figura. Contudo, somente de forma aproximada essa explicação linguística consegue traduzir o uso que Manoel de Barros faz do termo “des”.
No poeta, portanto, “des” é uma ideia : a ideia de uma ação. Não se trata de uma ação de simplesmente negar, contrariar, privar ou afastar, mas de “transfazer”.  “Des”  é uma ação de transfazer as coisas , retirando delas as suas  utilidades. Transfazer: fazer poesia, desinventar sobretudo as palavras e dar a elas funções de não significar ou não representar, para que assim elas possam reinventar-se como sentido.
Nem todo fazer poético é transfazer. Nem todo fazer verso e rima atinge essa condição. Transfazer é mais do que fazer poético, é mais do que rima e verso. Transfazer é estender o poético para além da poesia. E é isto que faz Manoel de Barros ao fazer poesia: põe-nos no estado desta, à disposição de “inventar comportamentos” e vislumbrarmos novas possibilidades para a vida que vivemos. Mais do que nos fazer ler poesia, Manoel quer nos empoemar.
Em suas poesias e entrevistas podemos encontrar os principais frutos desse “transfazer”: desformar , desnome,  desútil, des-ser, desinventar, descomer, desabrir, desuntensílio, desobjeto, desler, despalavra, enfim, deslimite.
Note-se que não são exatamente neologismos tais expressões. Não são palavras novas, mas o reinventar, o “transfazer”, das mesmas palavras ordinárias, comuns.
Mais do que negar ou significar uma  privação, “des” expressa potencialização: um “transfazer” da coisa em outra. Comumente usamos o termo “trans” como algo que atravessa fronteiras, cercas, formas. Por exemplo: prática trans-disciplinar. O “trans” aqui indica um processo de ir além das fronteiras e amarras de uma única disciplina. O ‘trans”, portanto, é prática de fazer os conjuntos se comunicarem, descobrirem algo em comum. Por isso, nada mais “trans” do que a prática de comunicar, pois isso envolve que encontremos um espaço comum ao eu e o outro, um espaço do nós.”Trans-formar”: mudar a forma, fazê-la conectar-se com um conteúdo que nela não cabe, a não ser se  ampliando, modificando e alargando seus limites, ou os apagando.
Uma coisa é o alicate, outra é a ideia de “cremoso”. O transfazer de uma coisa noutra faz nascer o “alicate cremoso”como desuntensílio da “Oficina de Transfazer Natureza”. Essa “oficina” é a própria poesia. E “poesia  pode ser que seja  fazer outro mundo”, afirma o poeta..Mais do que um prefixo, o “des” exprime uma ideia de ação que é transformadora.O “des” é a força que subverte o sentido habitual das coisas. Ele não é forma, mas processo. Por isso, ele é a própria essência da poética de Manoel de Barros.

(trecho do livro)




- desobjetos/desutensílios: