quarta-feira, 18 de outubro de 2017

olhar o céu também é ir ao museu



Um planetário é uma instituição museal: são os doutos e acadêmicos que lhe colocaram essa etiqueta. Não há criança que não ame ir a um planetário ( os adultos também amam ir, se neles ainda estiver viva a criança).Qual é o "acervo" de um planetário? Qual é o "patrimônio" que ele guarda e expõe?O acervo de um planetário não são objetos, não são relíquias que alimentam vaidades, não são bens que o mercado de arte cobiça e rapina. O acervo de um planetário não pode ser tocado, cheirado, manuseado. O acervo de um planetário são as estrelas, o infinito."Corra e olhe o céu ...", já nos ensinava, cantando,  Cartola. 
É ao nosso olhar que esse acervo se mostra e afeta. Esse acervo não é uma coleção, pois toda coleção é um conjunto finito. As estrelas são incolecionáveis, são inumeráveis: nenhum número pode dizer quantas são, embora sempre renasça na boca de uma criança essa pergunta.
"Acervo" procede de "cérvix", que significa  "cervical", e assim é chamada a nossa coluna: coluna cervical. No corpo, a coluna cervical sustenta a cabeça.Na cabeça está não apenas o cérebro, pois nela também estão os pensamentos,as ideias, as inquietações. Um acervo não tem sentido em si mesmo, ele não é um fim em si : como a coluna cervical, ele deve ser um instrumento para apoiar o sonho.É com a ajuda do acervo que a cabeça se mantém erguida, para assim olhar o horizonte.Um acervo nunca deve ser um fim, mas sempre um meio : de descoberta, de conhecimento, de potencialização.
Do acervo de um  planetário também fazem parte os cometas, as galáxias, os buracos negros...e ,sobretudo,  dele fazem parte  os mundos por descobrir.O acervo não remete apenas ao passado: do presente ele nos interroga sobre o futuro.   O acervo de um planetário é fonte de um conhecimento que sempre se renova, posto que nasce do desconhecido sempre acessível ao olhar que se liberta das coisas pequenas. Enquanto acervo, suporte, o infinito deve ser vivido e experimentado como o que deve sustentar a nossa mais sublime leveza: a que nos alça para além do conhecido.
As estrelas são patrimônio. Patrimônio não do homem ou de qualquer outro ser.Elas são patrimônio por si mesmas, sem precisar que o Estado ou algum poder o diga.Elas se conservam, durando, sendo eternas.Segundo Espinosa, somente o que é produzido pode ser conservado.O infinito é conservado por aquele mesmo que o produz: do ponto de vista do infinito , conservar e produzir são o mesmo, pois o que é conservado não é algo fixo, morto, estático; ao contrário, o que é conservado é o ato mesmo de produzir, de dar vida e movimento, enfim, o que se conserva são os "inauguramentos". 
Se houver algum outro planeta habitado em alguma das milhares de galáxias afora, e se neste planeta existir um planetário, alguém que olhe por algum telescópio de lá verá um céu do qual nossa terra é uma parte.Tudo é céu, nada lhe está fora, tudo lhe é imanente; mas este céu como patrimônio infinito somente pode ser visto com  "olhos de descobrir",  diria o poeta Manoel de Barros. Talvez o patrimônio só adquira essa dimensão existencial infinita, inesgotável como fonte de sentido,  se ele for precedido por um "matrimônio". Aliás, só há patrimônio se houver, antes, matrimônio. O matrimônio é um acontecimento de enamoramento, de afeto, de encontro e elo. Se não houver esse matrimônio nascido de uma relação intensa com a realidade, tampouco se considerará qualquer realidade como algo que devemos herdar, cuidar ou preservar.
É como matrimônio e encontro que o sentido nasce: o patrimônio é o seu resultado, o seu produto ( e não causa). O matrimônio é o ato de conhecer, que é inseparável do ato de sentir, ao passo que o patrimônio é o conhecido, o que resulta do ato de conhecer. Quando a pequena criança agencia  seus olhos com o telescópio, ela agencia também  seu espírito, seu pensamento, o seu futuro.Ela se matrimoniza, se enamora, e somente depois ela entende que o ato de conhecer não é passivo ou inerte, pois ele também produz o conhecido. E este conhecido  se manterá sempre vivo enquanto for vivo o ato de conhecer.

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