segunda-feira, 2 de outubro de 2017

o daimon...

Na Grécia antiga havia os deuses do luminoso Olimpo, os do oceano e os que vivam debaixo da terra, na escuridão eterna, como o deus Hades, que reinava no mundo dos mortos. Porém, havia ainda um tipo de divindade que não habitava em nenhum desses lugares com identidades determinadas. Tal divindade até podia conduzir ao Olimpo, mas não era de lá; era capaz igualmente de atravessar os oceanos sem se afogar, embora não fosse sua casa o mar; e até mesmo ao Hades tal divindade conseguir ir, entrar, sair e voltar, vivo. Essa divindade habitava um espaço de travessias, limares, passagens. Ela recebeu o nome de Daimon
O Daimon mais famoso foi Eros, o amor. Por não morar  no céu, no mar ou sob o chão, por não ter casa (mesmo a escuridão é um lar do que já não vive mais, tal como às vezes se torna a memória presa no passado... ), Eros possui asas. Era com essas asas  que ele se locomovia no meio onde nada podem pés e pernas. Suas asas eram o instrumento de uma travessia. 
Era na travessia que Eros morava, e não no lugar de onde se parte ou ao qual se deseja chegar. As asas de Eros somente podem conduzir se, antes, não mais nos prenderem  os pesos, as gravidades. 
Contudo, Eros não é uma divindade que está fora, ele não nos carrega pelas mãos, exteriormente . Eros nos aparece emergindo pelas costas, lentamente, após nos ter entrado imperceptivelmente pelo coração. Suas asas não nos são colocadas por fora, já prontas e grudadas com artimanha calculada, como as asas que prenderam em Ícaro. Asas assim tornam maior o tombo quanto maiores são as alturas que elas prometem... 
A primeira aparição das asas de Eros em nós nada tem de coisa bela, pois parece que estamos a virar monstros. Suas asas começam a despontar em nós semelhantes a  coisa pontiaguda a emergir  das costas, como se fossem os ossos da coluna vertebral que se rebelassem e apontassem para cima, furando a pele. A primeira aparição do que nos liberta é sempre estranha, para ela falta um hábito, um nome, um padrão. 
Mas como aquilo que quebra todo hábito e padrão pode receber um nome padrão e habitual? Onde estão fincadas as raízes dessas asas? Elas estão fincadas no coração, no interior do peito. Elas nasceram dele como a planta que nasceu do grão. Quem vê em si nascer tais asas, leva um susto com seu início, pois pensa que lhe nasce uma anomalia :temendo não caber mais no padrão dos que lhe rodeiam, foge de si mesmo, cobrindo sua singularidade  com vestes padronizadas, procurando adaptar-se . 
Há nesse processo uma dor, como na do parto. Ele tenta cortar o broto, mas o broto nascerá de novo, da semente do coração. Leva tempo até se compreender que as asas de Eros nos escolheu para nascer, quando elas de fato nos escolhem. No início, parece uma maldição. Porém  chega um momento em que já não se pode mais esconder que se tem tais asas, tais empoemamentos: elas desabrem em nós, desabrindo-nos, horizontando-nos. Elas se tornam capazes de levantar o peso que às vezes somos para nós mesmos. E o maior peso a vencer não é o peso físico...
E o mais estranho é ver que não são asas de pássaro que nas costas nasceram, foram asas de borboleta, pois de borboleta são as asas de Eros, frutos de uma metamorfose, que no início parece uma morte. 


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