segunda-feira, 21 de agosto de 2017

o estilingue II

Quando eu tinha 8 anos,mirei com meu estilingue o Céu das Ideias de Platão.Municiei o estilingue não com críticas ou conceitos teóricos, pois meu estilingue não era uma metáfora e nem uma abstração.Era sim, para o meu espírito-menino, a lúdica e desejada filosófica arma : insubmissa e arteira, talhada na madeira do meu inquieto coração.
Armei o estilingue com uma bolinha de gude, dessas que trazem dentro pequenas bolhinhas de ar rodeadas por alvas massas em relevo, semelhantes a nuvens, como se um céu de verão lhes vivesse dentro - e desse mesmo dentro quisesse escapar.



Quando então atirei com o estilingue, acertei em cheio a principal Ideia, o motor daquele inacessível Céu pairando acima de tudo: atingi a testa da Ideia de Verdade. Um brilho acendeu no céu, como se o infinito risse: era o céu de verão que se libertava do seu pequenino casulo de vidro.
A Idéia de Verdade tombou aos meus pés. Então vi, com meus olhos de menino que vê o mundo como poesia, que tal Idéia era apenas como um pardal empalhado: sem sangue, sem vida - rígida, oca, estéril. Para minha felicidade de garoto que se arma apenas com a inocência , mirei também em outros pássaros empalhados daquele Mundo Fictício: quedaram então, um após o outro, o Dogma, a Lei, o Inferno , o Juízo Final, o Bem, o Mal... Até cair, por fim, o ninho de todos esses pássaros sinistros: a Morte.
Esse estilingue tinha a forma da letra “V”, de “Vida”. Para os pardais que voam livres eu o oferecia como um poleiro amigo. E se hoje tento talhar aquele estilingue nos escritos do adulto, é no desejo de ainda estar vivo em mim aquele mesmo livre menino.


Portinari, Menino com estilingue, 1947.

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