sábado, 5 de agosto de 2017

mística e política

Quando se fala muito claramente,
fala-se muito infinitamente.
Maria Gabriela LLansol

No sentido original da palavra,  "místico" significa unidade. O místico assim compreendido  é aquele que quer vencer as dualidades, as separações. A principal separação a ser vencida  é tão entranhada na existência humana que há dela versões filosóficas e mesmo científicas. Trata-se da separação que coloca, de um lado, o eu, o ego, e  , de outro, o mundo. Em outras palavras, a subjetividade e a objetividade.
Toda prática que coloca o eu como ponto de apoio privilegiado e exclusivo, finda por criar separação entre o próprio eu e tudo aquilo que dele é diferente, a começar por suas palavras e ações. Assim, entre o eu que fala e suas palavras, entre o eu que pensa e seus pensamentos, entre o eu que age e suas ações, entre o eu que sente e suas emoções,  entre o eu e tudo o que não é ele próprio  haverá uma separação, de tal modo que o eu nunca estará totalmente nas palavras que diz, nos gestos que faz, no afeto que dá. Ele se coloca ou imagina  colocar-se fora de tais realidades. Porém, o que de fato ocorre é um enfraquecimento de tais  realidades: suas palavras perdem veracidade, suas ações ficam destituídas de autenticidade, seus pensamentos são mais imaginações do que de fato pensamentos.
No sentido original do termo, o místico, diferentemente ao egoico,  deseja  formar uma unidade: entre ele e sua palavra ele vive uma unidade, de tal modo que sua palavra nunca é demasiado teórica, tampouco  vazia de verdade; entre ele e suas ações  também o místico  vive uma unidade, por isso  ele se coloca inteiro no que faz, mesmo na mais cotidiana tarefa; entre ele e seus afetos o místico vive uma unidade, assim ele nada faz sem sentir, e nada sente sem estar no que sente. 
Formar uma unidade não significa se apagar ou se anular, pois a unidade assim formada não é destituída de partes. O místico busca fazer parte de  tudo o que ele é uma parte, vez que  ele é parte  do que diz, do que faz, do que sente. 
Além desses aspectos, a principal unidade que o místico busca é com o infinito. Mas ele sabe que não há como formar uma unidade com o infinito sem formar também uma unidade com o que fala, com o que faz e com o que sente. No entanto, não podemos   formar uma unidade com o que sentimos , com nossas ações e com nossas palavras   sem formarmos , antes de tudo,  uma unidade com o infinito : no autêntico místico,  é o próprio   infinito que também podemos ouvir em sua fala, ver em sua ação e sentir em seu afeto. O infinito não é a galáxia distante. A galáxia distante é parte do infinito, assim como cada coisa que falo, sinto e faço também o são.
Imaginem uma guerra para abolir as fronteiras. Que país poderia travá-la sem ser  , antes,  o primeiro a abolir as suas? Não exatamente as fronteiras físicas, pois essas são apenas efeitos, consequências. As fronteiras internas, são estas que o místico desfaz, sobretudo as fronteiras que separam , dentro do pensamento, como Estados em guerra, a inteligência e a imaginação, o conceito e a poesia. 
Uma gaiola é uma cerca em 360 graus. Todos se engaiolam  em suas próprias mentes quando dizem “eu” , como realidade excludente   do infinito. E quem apenas sabe raciocinar , medir e contar, porém nada sabe de poetizar e filosofar, assemelha a esses passarinhos que até cantam bonito, mas nada sabem, nada saberão, do que é voar e cantar no último galho da árvore mais alta, mesmo correndo o risco de ser predado pelas aves de rapina.
Uma guerra para abolir tais fronteiras, porém,  não é travada com balas e armamentos. Ela começa no esforço para produzir a mínima unidade que seja entre nós mesmos e aquilo que dizemos, fazemos, sentimos  e pensamos. Uma unidade de composição, uma relação, um agenciamento, por mais mínimo e modesto que seja.

O autêntico pintor vive uma unidade mística com suas tintas, o autêntico poeta vive uma unidade mística com suas palavras , o autêntico homem vivem uma unidade mística com a humanidade. Na unidade assim formada nunca há apenas dois, pois essa unidade conquistada  não é um fim em si, ela é meio para engendrar outras coisas, fecundando e fecundando-se, tal como acontece no amor.




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