terça-feira, 29 de agosto de 2017

um devir-índio...

Certa vez, um antropólogo inglês entrou na oca de um índio e viu uma máquina de escrever pendurada na parede da oca, como se fosse um objeto artístico. Isso aconteceu em 1950, época em que a máquina de escrever era o símbolo técnico da cultura branca letrada. O antropólogo nada perguntou ao índio, retornou  a Londres tentando entender aquele acontecimento. Ele  consultou teses e tratados, porém nada encontrou  na teoria que lhe pudesse fazer compreender  o gesto do índio.  Até que , de repente, ele olhou para a parede de sua biblioteca e viu um arco e flecha pendurados como enfeite. Então,  o acadêmico compreendeu que aquilo que ele fizera com o arco e flecha, o índio fez com a máquina de escrever, reinventando-a desutensílio poético.  No gesto do índio havia, ao mesmo tempo, arte, crítica e subversão de acostumados sentidos "úteis".Talvez precisemos  descobrir em nossos “olhos civilizados” aquele   olhar insubmisso  de um  índio , sobretudo para olharmos para nossa própria “cultura civilizada” e, quem sabe, reinventarmo-nos.


segunda-feira, 28 de agosto de 2017

poética-natura

A influência de Lucrécio sobre Espinosa  não é apenas no uso do latim, também o é no valor absoluto que ambos dão ao poema: em Lucrécio, o poema foi a forma para a expressão do infinito conteúdo, a rerum natura; em Espinosa, a forma de apresentação de seu pensamento é geométrica, porém o conteúdo é poético, como poética-natura




domingo, 27 de agosto de 2017

o que pode um corpo...

A mente está unida ao universo inteiro, e não apenas ao seu corpo. 
Mas ela está unida ao universo inteiro estando unida ao seu corpo também.
Espinosa

Apenas os movimentos do corpo não são suficientes para explicar se tais movimentos são ativos ou passivos, potentes ou impotentes. Quem visse o Judas em seu beijo , e não conhecesse a ideia que acompanhava aquele gesto, poderia imaginar que aquele movimento era expressão de um amor. Quem vê o boxeador desferindo um soco certeiro , pode imaginar que ele golpeia movido pelo ódio ao adversário. Mas o beijo de Judas é pior do que um soco, ele é um movimento do corpo que, do ponto de vista da ética, está acompanhado de  um ódio, um ódio ao amor. Já o soco do pugilista não é raiva ou ódio, é um soco acompanhado da ideia de amor ao boxe. Quem medita imóvel, porém com os ouvidos abertos, exerce uma ação ativa de ouvir, embora esteja o corpo sem correr ou se agitar. Ao contrário, os agitados movimentos do narciso em sua academia nada têm de ativos ou potentes, são apenas movimentos de impotência, apesar de aumentarem em tamanho os músculos.Entre mafiosos, um abraço não é manifestação de amizade, pode ser uma sentença de morte.
Um corpo ativo, potente, não se explica apenas pelos movimentos no espaço, tampouco ação é só aquilo que se faz andando ou correndo. Ouvir também é uma ação, uma potência, ao passo que o falar ,quando mera tagarelice, é impotência no dizer. 
Apenas os movimentos que um corpo faz não são suficientes para explicar se tais movimentos expressam ação ou paixão, potência ou impotência, alegria ou tristeza, amor ou ódio. A diferença entre ação e paixão não está no próprio movimento que o corpo faz, mas na ideia que acompanha tais movimentos. 






sexta-feira, 25 de agosto de 2017

espinosa e manoel: guardadores de águas...

No início da Ética, bem na aurora do livro,  Espinosa não fala do oceano, tampouco das ondas, ele fala da água, da simples e pura água: a natura. Somente depois ele nomeia essa água como oceano, Deus ou Substância, natura naturante,  para em seguida  falar das ondas, como modos ou maneiras de ser desse oceano : natura naturada.

Essa água pura não é como a de Tales, ainda não tão pura, não tão sentida e pensada . 
Essa água pura não é água da chuva, rio ou lágrima. É água de placenta, que antes de nascermos  nos envolveu por fora, e hoje nos anima por dentro, mesmo no duro osso; de tal modo que a água que bebemos não é novidade para nosso corpo, pois a água nova à água eterna se soma , ambas a mesma : una e múltipla.




quarta-feira, 23 de agosto de 2017

o guardador de águas

No livro O guardador de águas, Manoel diz que poeta é quem guarda águas. Não ouro, dinheiro ou informação, mas águas.Guardar também é cuidar. As águas não são exatamente coisas, elas são fluxos. O poeta cuida de fluxos. Fluxos dentro e fora dele. Cuidar dos fluxos é deixá-los passar, ir ; cuidar deles é o oposto de construir barreiras, represas, muros, obstáculos, gramáticas. Os fluxos são sempre desterritorializados e desterritorializantes. Não se pode "passar régua" sobre eles, não se pode codificá-los, estriá-los. Os fluxos são lisos, esquizos, nômades, andaleços. Só se pode guardar fluxos sendo também um. Os fluxos nascem de fluxos, não de coisas imóveis ou fixas. O rio amazonas não nasceu da geleira parada, mas da geleira devindo fluxo, pingando, correndo, fluindo. Os fluxos somente podem ser guardados em espaços abertos, horizontados; seja esse espaço horizontado o pantanal, a mente ou o coração. O horizonte guarda a paisagem, mas sem cercá-la, sem se dizer dela o dono.




segunda-feira, 21 de agosto de 2017

o estilingue II

Quando eu tinha 8 anos,mirei com meu estilingue o Céu das Ideias de Platão.Municiei o estilingue não com críticas ou conceitos teóricos, pois meu estilingue não era uma metáfora e nem uma abstração.Era sim, para o meu espírito-menino, a lúdica e desejada filosófica arma : insubmissa e arteira, talhada na madeira do meu inquieto coração.
Armei o estilingue com uma bolinha de gude, dessas que trazem dentro pequenas bolhinhas de ar rodeadas por alvas massas em relevo, semelhantes a nuvens, como se um céu de verão lhes vivesse dentro - e desse mesmo dentro quisesse escapar.



Quando então atirei com o estilingue, acertei em cheio a principal Ideia, o motor daquele inacessível Céu pairando acima de tudo: atingi a testa da Ideia de Verdade. Um brilho acendeu no céu, como se o infinito risse: era o céu de verão que se libertava do seu pequenino casulo de vidro.
A Idéia de Verdade tombou aos meus pés. Então vi, com meus olhos de menino que vê o mundo como poesia, que tal Idéia era apenas como um pardal empalhado: sem sangue, sem vida - rígida, oca, estéril. Para minha felicidade de garoto que se arma apenas com a inocência , mirei também em outros pássaros empalhados daquele Mundo Fictício: quedaram então, um após o outro, o Dogma, a Lei, o Inferno , o Juízo Final, o Bem, o Mal... Até cair, por fim, o ninho de todos esses pássaros sinistros: a Morte.
Esse estilingue tinha a forma da letra “V”, de “Vida”. Para os pardais que voam livres eu o oferecia como um poleiro amigo. E se hoje tento talhar aquele estilingue nos escritos do adulto, é no desejo de ainda estar vivo em mim aquele mesmo livre menino.


Portinari, Menino com estilingue, 1947.

o dom

Costumamos imaginar a memória como uma gaveta onde guardamos coisas, as lembranças. Assim, abrindo a gaveta-memória encontramos as roupas dobradas, roupas sem corpo, que assumem a forma artificial que lhes damos, dobradas, para assim caberem ordenadamente naquela caixa.
Mas não é isso a memória, senão a imaginação do que ela seja.A memória não é uma caixa. A memória se assemelha mais a lençóis finos com os quais cobrimos os entes, sejam eles   acontecimentos, pessoas ou coisas. Até mesmo estados da mente podem ser assim cobertos pelo tecido que fia a própria mente: é o que acontece  quando nos lembramos, por exemplo, de algo que pensamos, sonhamos  ou imaginamos.
O lençol assume a forma daquilo que ele cobre, o imitando na aparência, porém não no ser. Por vezes, cobrimos esse lençol que cobre com outro lençol que o cobre, e este ainda com um outro, e este com mais outro, de tal maneira que a mente deixa de ser um fluxo uno e indivisível para se tornar um justapor de camadas. Sorrateiramente, a mão do tempo furta o ser que estava embaixo, sem vermos, sem sentirmos, sem sabermos. No entanto,  pelo uso e costume os lençóis mantêm a forma do que cobriam , embora envolvam uma ausência, um nada. Quando se tenta retirar tais lençóis em busca da realidade coberta, chega-se à primeira camada, e sob ela mais nada. Então, a imaginação vem ocupar o vazio onde a coisa era, a coisa que se esqueceu que havia. Inventa-se uma metafísica, uma mística, para explicar o porque daquele primeiro lençol manter-se a imitar o vazio, como um fantasma. E assim nasce a palavra fabuladora,  que toma o lugar da coisa que lhe dava contorno e vida.

Mas há aqueles que não procuram debaixo das representações o que a representação oculta com o trio  imaginação-memória-palavra. Eles abrem a percepção para verem as coisas antes que a mente as cubra e as esconda, para depois se esquecer do que assim cobriu. Eles roubam do tempo o que o tempo nos roubou, restituindo o ser a ele mesmo, o ser que está sempre se fazendo ser. E o ser lhes devolve o sentido , como uma doação recebida, um dom. Espinosa chama a esse dom de intuição. Intuir não é cobrir com lençol , mas apreender cada coisa a partir de um horizonte que nunca se fecha.




domingo, 20 de agosto de 2017

a floresta-embrião

A pior fase da vida é a infância, não por algo que lhe seja intrínseco, e sim porque é nessa fase da vida que mais dependemos da qualidade dos adultos que nos cercam. 
Espinosa



Segundo o filósofo Leibniz, se pegarmos uma simples semente e a  plantarmos, dela nascerá uma árvore. Desta brotarão incontáveis frutos ,  e dentro de cada fruto haverá  uma semente  nova. Se plantarmos as sementes assim nascidas, delas nascerão novas árvores, com inúmeros   frutos ainda. Em cada novo fruto, uma nova semente estará. Ou seja, na simples semente está contida uma floresta inteira. Dentro da semente não está a floresta com suas árvores já prontas e individuadas, pois a floresta que existe dentro da semente é uma floresta em rascunho, uma floresta-embrião, que somente nasce se a semente for plantada em terra fértil. Essa virtual floresta existe não como quantidade determinada, mas como intensidade de uma vida que nasce de si mesma, plural. 
Tal como uma semente, assim é a alma de uma criança: sem o solo de uma  educação questionadora, livre   e plural, nada mais será o presente, este triste presente,  do que apequenamento do futuro.





sexta-feira, 18 de agosto de 2017

a desaprendizagem...



Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Este pintor ensinou ao poeta  a necessidade de "aprender a desaprender" . Assim fez o pintor: embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, essa mesma precisão se tornou uma fôrma e prisão para as novas imagens que ele queria criar. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que, livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda (“desaprendizagem” semelhante fez Miró). O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender o “acostumado”  da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. A gramática, não importa qual, é sempre   destra , porém toda invenção vem da mão esquerda.


“Liberdade não é o que se opõe à necessidade, liberdade é o que põe a necessidade da ação” (Espinosa, Tratado político, §11).

Paul Klee, Travessura










quarta-feira, 16 de agosto de 2017

feicibuqui

Eu passava  próximo à rodoviária quando um homem com sotaque carregado, provavelmente recém-chegado do interior, me parou e perguntou:

- meu jovem, como faço para chegar ao feicibuqui?

-como assim!?      
                    
- lá na minha terra se fala que o feicibuqui fica aqui no Rio maravilha...

- meu cidadão, zombaram do senhor. O tal “feici” que o senhor procura  não existe fisicamente em lugar real do Rio ou do mundo. Ele é uma realidade virtual, que de certa forma só existe em nossa mente, como uma imaginação...

- vixe! É tu que tá zombando de mim...Passar bem.


Mais à frente, ele parou uns jovens que estavam vidrados em um celular. Não ouvi o que eles disseram para aquele senhor perdido (e perdido não apenas no Rio...). Mal disfarçando um riso zombeteiro,  tais jovens apontaram para um ônibus que se aproximava. Crédulo,  o homem curvou-se ,agradecido; virou-se, fez sinal para o ônibus , entrou. Na frente do ônibus, bem no vidro, havia uma placa com isto escrito: “passa perto do  Projac”. 




terça-feira, 15 de agosto de 2017

o nômade

Estou ao sul do norte,
ao norte do sul.
Lhasa

No passado, os filósofos expulsavam o poeta, o expulsavam de sua  própria  casa, doravante diziam ser propriedade deles, da razão. Tal casa era a linguagem, como lar do sentido,habitar do pensamento, oficina do mundo.
Então,  esqueciam o jardim, fechavam as janelas, não mais davam festas, tampouco ouviam música, apenas de pesados livros mobiliaram a casa. Silêncio somente, como no túmulo. Solidão, como a do  egoísta. Angústia, feito a do doente mortal. A casa virou asilo, caserna, e hoje imita a empresa. Expulsaram o espírito, ficando o cadáver da letra. Ouvem tais acadêmicos apenas seus próprios ecos, que se voltam contra eles, não transpondo as paredes.

O poeta sobreviveu, mesmo sem casa. Aprendeu a morar entre os índios, entre as crianças, entre os peixes, entre os pássaros, entre as gentes, entre as palavras. Nômade, assim também nos faz, se o deixarmos vir    morar em nós.

E quando é o próprio filósofo que é expulso e perseguido, como no caso de Espinosa ( tentaram proibir a leitura de seus escritos), são os poetas os primeiros a transgredirem tais perseguições ao pensamento: foram os poetas Heine, Goethe,Byron e Shelley os primeiros a reconhecerem em Espinosa o grande filósofo, antes mesmo que o pudessem reconhecer os próprios filósofos. 


sábado, 12 de agosto de 2017

cláudio ulpiano

Espinosa dizia que quando a morte leva um recém-nascido, a morte  leva a “maior parte” do que aquele pequeno ser foi, porém  a morte não leva tudo. A morte não tem o poder de anular o que um dia foi vivo. Mesmo um casal que um dia desejou ter um filho, o qual  infelizmente não nasceu, tal filho viverá ainda no desejo que o desejou, desde que tal desejo  não morra, para que dele  um novo filho seja possível. E quem soube , em vida,  viver apoiado no que é absoluto, deste a morte levará a “menor parte”, pois a maior parte ficará como parte da vida que não morre, vida esta que não é apenas pessoal-biológica, pois ela é também vida do pensamento, vida do afeto, vida coletiva, vida cósmica. “Absoluto” não é a mesma coisa que “eternidade”. “Ab-soluto” : “o que não é soluto”, o que não se dissolve, por mais breve que tenha sido o tempo no qual aconteceu, como essa belíssima aula-palestra de Cláudio Ulpiano .


quinta-feira, 10 de agosto de 2017

cronos e kairós

Segundo o mito, no início havia Gaia, a Terra, e Uranos, o Céu ( ou Eternidade). O Céu nasceu da Terra, de seu ventre. O ventre de Gaia era a parte dela mais próxima do Caos, do qual  ela mesma  se originou. Todo ventre está perto dessa Imanência. Nascer é distinguir-se do Caos-Imanência, mas sem negá-lo, sem demonizá-lo. E tudo o que é verdadeiramente vivo mantém canais que desembocam lá, nesse Ventre dos ventres, nessa Geração que gerou tudo o que pode gerar.
Cronos, o Tempo,  foi a primeira divindade que  quis afirmar-se, matando. Porém, como as divindades não morrem, o Tempo  destronou a Eternidade, pondo o Céu-Eternidade para longe, para muito longe. Tão longe ficou o Céu , que se esqueceram dele. 
Mas Cronos não parou de matar, ele continuou matando, fazendo disso o seu modo de afirmar-se, negando. Ele passa então a devorar cada filho dele que nascia, temendo que fizessem com ele o que ele fizera com a Eternidade.

Cronos devora a todos os seus filhos que nasciam, antes que estes abrissem os olhos. Menos um deles: Zeus. Este o vence da forma como se pode vencer o tempo: criando memória daquilo que não pode ser esquecido. 
Para tal, Zeus criou as Musas , para dessas fazer  nascer poetas. Algo do Céu retorna e revive no canto dos poetas, pois estes têm o dom de “celestar as coisas do chão” (Manoel de Barros). 
O tempo do poeta não é Cronos,  que destrói e mata ; o tempo do poeta é kairós, tempo da ação que inova, criando  sentido para o que nasce. Em latim, “kairós” será traduzido por “oportunus”, de onde nascerá “oportunidade”. “Oportuno” era o nome que recebia o vento que (re)conduzia o navio ao porto. Oportunus era o vento que  reconduzia ao começo, à “origem que renova” (Manoel de Barros).

Goya, Cronos devorando seus filhos - Museu do Prado

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

o usufruir...

Para Espinosa , o mais libertário dos conhecimentos favorece a experiência muito singular de usufruir. Nenhum conhecimento é digno de assim  autointitular-se se não for o meio para o uso de um fruir. Pois fruir não é uma coisa, fruir é um acontecimento, uma experiência, um afeto. 
"Fructos", fruto, vem de fruir, e significa "produto". Fruto é um substantivo, porém  fruir é um verbo, uma ação, um agir: é sempre das ações que nascem os seres, não existe ser  que já não seja ação, a começar pela  ação de existir, usufruindo-se.
Quem colhe o fruto e o prova, diz-se que o frui. Mas esse sentido de fruir é derivado, existe um sentido primeiro. Esse sentido primeiro expressa a atividade de produzir o produto. A árvore frui a si mesma ao produzir o fruto. Ela usa a si mesma, se usufrui,  como meio para produzir o seu fruto. Esse fruir primeiro é inseparável de uma experiência de existir, da potência de existir. 
Não apenas o fruto nos é útil, também é útil ao fruto a árvore, cujo útil é produzir a si mesma, usufruindo-se como produtora de frutos. Nesse produzir de frutos há sabores, saperes, os quais desconhece quem apenas conhece o sabor do fruto, desconhecendo o que é ser produtor. 
Usufruir é fruir a si mesmo como produtor de frutos. Os frutos são as palavras, as ações, os afetos. 
O homem sábio não é aquele que frui apenas de si, ele frui a si mesmo enquanto meio de produção de frutos , os quais poderão fruir os outros. Ele mesmo frui a si próprio como fruto da Potência que flui de si mesma, mais Semente Absoluta do que árvore ou fruto. 
Tudo é experiência de usufruto, tudo  é meio para o usufruir: ideia, afeto, eternidade, conhecimento, liberdade.





Manuel Mendive, El mango - 1985.

a arte de viver

- palestra do Prof. Elton Luiz Leite de Souza no  DATAPREV/RJ (Botafogo, RJ - 10/08)
- tema: "A não velhez - ou a arte de viver".




segunda-feira, 7 de agosto de 2017

imitagem...

O poeta imita, mas ao modo de  um camaleão. E nesse imitar o poeta exerce um “empoemar-se” : escrever poesia “é ir imitando  os camaleões sendo pedra sendo lata sendo lesma” , ensina Manoel de Barros . Segundo ainda o poeta, empoemar-se  é uma forma de comunhão por imitagem. A imitagem não é um tornar-se cópia de um Modelo, como em Platão; a imitagem é a produção de uma variação por contágio, fabricação de um estilo : aprendizagem não escolar de uma diferença que se afirma compondo-se, em liberdade. 


  

domingo, 6 de agosto de 2017

mística e política 2

O primeiro dos místicos, de todos o maior, foi Orfeu, o poeta. Orfeu tocava a lira, instrumento inventado por Hermes, do qual se apropriou Apolo , divindade da Luz , do Conhecimento e da Forma.  Orfeu tocava a lira, porém  também cantava. O canto é libertação do Pneuma, Sopro Vital. Em latim, "Pneuma" será traduzido por "Spiritus".
Os gregos de então achavam que o Pneuma  apenas se libertava na ocasião da morte, quando se separava do corpo. Mas Orfeu libertava o Pneuma , o Sopro da  Vida, por intermédio do canto, cantando a vida. Ao libertar a vida que estava nele, era a toda  vida que Orfeu libertava, comemorando a Vida.
Eram os dedos de Orfeu que tocavam a lira apolínea, porém às cordas vocais, lira íntima, quem as tocava era o próprio Spiritus, como Afeto que se imortalizava no som, na voz.
O instrumento musical de Dioniso era a flauta, instrumento de Sopro. A Luz de Dioniso é a luz noturna, luz da lua. O Conhecimento que advém de Dioniso é embriaguez com a Vida, mais do que com o vinho. E o que se vive assim não é Forma, mas Processo, Expressão, Transbordamento. Não um transbordamento como o da água que  se esvai do copo, e sim transbordamento feito o da Fonte que sai de si,porém  a si permanecendo ligada. Assim, Orfeu toca com as mãos o instrumento de Apolo , lira externa, ao mesmo tempo que dedilha com o Sopro Dionisíaco a lira íntima das cordas vocais, para libertar, produzindo,  o seu cantar.
Quando os homens ouviam Apolo tocando sua lira, era o Ceu  que tais sons faziam ver. Mas quando ouvem Orfeu tocando e cantando, era a Terra que era celestada, divinizando o simples viver. 

Originalmente, "místico" envolve a ideia de "unidade", o místico é aquele que busca viver uma unidade. O nome da esposa de Orfeu era "Eurídice". No entanto, "Eurídice" também era, àquela época, um dos nomes da alma, assim como Pneuma e Psiquê. Simbolicamente, era com Eurídice, a Alma,  que o poeta vivia uma unidade amorosa, poética, vital. É dessa experiência de unidade que nascia seu canto. Por isso, seu canto não era como o de Homero, canto épico e masculino, que cantava a história de guerras e conquistas do povo grego. O canto de Orfeu também não era como o de Simonides e Safos, canto lírico e feminino, que canta os mundos internos do eu. O canto de Orfeu, Canto Órfico, canta a unidade dos dois, do coletivo e do íntimo, do múltiplo e do um, do poder e do amor, inserindo-os no Cosmos Infinito que transmuta aquele poder, que amplia aquele amor. Um lirismo cósmico unido a  um povo múltiplo  no íntimo.








sábado, 5 de agosto de 2017

mística e política

Quando se fala muito claramente,
fala-se muito infinitamente.
Maria Gabriela LLansol

No sentido original da palavra,  "místico" significa unidade. O místico assim compreendido  é aquele que quer vencer as dualidades, as separações. A principal separação a ser vencida  é tão entranhada na existência humana que há dela versões filosóficas e mesmo científicas. Trata-se da separação que coloca, de um lado, o eu, o ego, e  , de outro, o mundo. Em outras palavras, a subjetividade e a objetividade.
Toda prática que coloca o eu como ponto de apoio privilegiado e exclusivo, finda por criar separação entre o próprio eu e tudo aquilo que dele é diferente, a começar por suas palavras e ações. Assim, entre o eu que fala e suas palavras, entre o eu que pensa e seus pensamentos, entre o eu que age e suas ações, entre o eu que sente e suas emoções,  entre o eu e tudo o que não é ele próprio  haverá uma separação, de tal modo que o eu nunca estará totalmente nas palavras que diz, nos gestos que faz, no afeto que dá. Ele se coloca ou imagina  colocar-se fora de tais realidades. Porém, o que de fato ocorre é um enfraquecimento de tais  realidades: suas palavras perdem veracidade, suas ações ficam destituídas de autenticidade, seus pensamentos são mais imaginações do que de fato pensamentos.
No sentido original do termo, o místico, diferentemente ao egoico,  deseja  formar uma unidade: entre ele e sua palavra ele vive uma unidade, de tal modo que sua palavra nunca é demasiado teórica, tampouco  vazia de verdade; entre ele e suas ações  também o místico  vive uma unidade, por isso  ele se coloca inteiro no que faz, mesmo na mais cotidiana tarefa; entre ele e seus afetos o místico vive uma unidade, assim ele nada faz sem sentir, e nada sente sem estar no que sente. 
Formar uma unidade não significa se apagar ou se anular, pois a unidade assim formada não é destituída de partes. O místico busca fazer parte de  tudo o que ele é uma parte, vez que  ele é parte  do que diz, do que faz, do que sente. 
Além desses aspectos, a principal unidade que o místico busca é com o infinito. Mas ele sabe que não há como formar uma unidade com o infinito sem formar também uma unidade com o que fala, com o que faz e com o que sente. No entanto, não podemos   formar uma unidade com o que sentimos , com nossas ações e com nossas palavras   sem formarmos , antes de tudo,  uma unidade com o infinito : no autêntico místico,  é o próprio   infinito que também podemos ouvir em sua fala, ver em sua ação e sentir em seu afeto. O infinito não é a galáxia distante. A galáxia distante é parte do infinito, assim como cada coisa que falo, sinto e faço também o são.
Imaginem uma guerra para abolir as fronteiras. Que país poderia travá-la sem ser  , antes,  o primeiro a abolir as suas? Não exatamente as fronteiras físicas, pois essas são apenas efeitos, consequências. As fronteiras internas, são estas que o místico desfaz, sobretudo as fronteiras que separam , dentro do pensamento, como Estados em guerra, a inteligência e a imaginação, o conceito e a poesia. 
Uma gaiola é uma cerca em 360 graus. Todos se engaiolam  em suas próprias mentes quando dizem “eu” , como realidade excludente   do infinito. E quem apenas sabe raciocinar , medir e contar, porém nada sabe de poetizar e filosofar, assemelha a esses passarinhos que até cantam bonito, mas nada sabem, nada saberão, do que é voar e cantar no último galho da árvore mais alta, mesmo correndo o risco de ser predado pelas aves de rapina.
Uma guerra para abolir tais fronteiras, porém,  não é travada com balas e armamentos. Ela começa no esforço para produzir a mínima unidade que seja entre nós mesmos e aquilo que dizemos, fazemos, sentimos  e pensamos. Uma unidade de composição, uma relação, um agenciamento, por mais mínimo e modesto que seja.

O autêntico pintor vive uma unidade mística com suas tintas, o autêntico poeta vive uma unidade mística com suas palavras , o autêntico homem vivem uma unidade mística com a humanidade. Na unidade assim formada nunca há apenas dois, pois essa unidade conquistada  não é um fim em si, ela é meio para engendrar outras coisas, fecundando e fecundando-se, tal como acontece no amor.




quarta-feira, 2 de agosto de 2017

o experimento

“Philo” não significa apenas amizade, também significa "amor". Platão se vale dessa última significação  presente em “philo-sofia”  para distinguir de forma mais forte a diferença entre o sofista e o filósofo. 
Quando se pensa  philo apenas como “amizade”, fica-se somente  no plano do discurso . De fato,  entre os amigos há troca de palavras, "conversações". Os sofistas se valem desse aspecto prosaico de philo  para imitarem a aparência de  filósofos, porém o sendo apenas em retórica, em palavras.  As conversações alimentam rivalidades, disputas. Mas philo como amor não permite essa confusão, pois quem ama não faz apenas  conversações. Quem ama  vive comunhões, "conversões". Quem ama, inclusive, ama muitas vezes em silêncio , e demonstra que tem em si esse afeto mais agindo do que falando.
Não raro, é o amado que diz quem de fato o ama.Assim, o amado pelo filósofo autêntico devolve ao filósofo a potência de amar ainda mais.Como o filósofo ama o infinito, é o infinito o que é devolvido ao filósofo, e este o recebe fazendo parte dele, singularmente. Quem assim ama, exerce um desapego visível , desapego esse do qual o sofista não é capaz, pois de apegos a honras, fama e dinheiro vive o sofista.Mas do infinito não há apego ou  posse, dele não pode haver inveja ou ciúme, tampouco rivalidade para ser dele o dono.
Espinosa , por sua vez,  evoca a experiência  para definir o filósofo. Porém,  o filósofo não é um empirista apenas. Tampouco o filósofo faz da experiência o meio  para testar hipóteses, como faz o cientista . 
A experiência ensina ao filósofo lições que os livros não  podem ensinar. E o que a experiência ensina? Ela ensina o experimento.  A experiência é repetição, a repetição pode ensinar .A experiência devém mestre não por nos dar lições em palavras, e sim  porque é nela, e não em meras palavras, que devimos experimento para nós mesmos. É na experiência com a vaguez do mundo que pode haver o experimento de que conquistamos ou não alguma consistência, isto é, fortitudo.  
A arte nunca elimina o acaso: é a partir do acaso que a arte engendra as autênticas necessidades, dando ao necessário o seu devir, como devir-necessário do acaso.   Não apenas experimento o mundo, sou experimento para mim mesmo na experiência com o mundo. A experiência não confirma conhecimentos a priori, ela efetiva a construção de uma arte, engenho.

É na experiência que experimento a mim mesmo se sou o que penso de mim mesmo, se sou o que digo de mim mesmo. 
A experiência é repetição: é nela que me afirmo diferença que persevera , adequada a si mesma. 
Da madeira e do cinzel qualquer um pode ter experiência. Mas é no produzir da obra que alguém pode ter de si o experimento de escultor.




Luc-Olivier Merson, Allégorie de la vérité, Museu d'Orsay