terça-feira, 30 de maio de 2017

o elefante

Muitas horas depois de um homem ter ali estado, ou simplesmente passado, por ínfimo que tenha sido o tempo, um elefante é capaz de sentir-lhe a presença, só com sua tromba, sua natural antena, de tal modo que ainda perdura o acontecido no acontecimento. Vejam bem: disso é capaz um simples elefante, o que nos mostra o quanto era ignorante   Descartes , o pai da decantada ciência, que jurava   carecer   todo animal  de   espírito, alma, memória, sentido. Contudo, mostra-nos o elefante que, muito depois de termos estado, estamos ainda: de forma sutil,mas não fantasmagórica. O elefante não capta um mero espectro ou fantasma, mas a tradução física da alma.O    elefante não é um médium ou sensitivo, ele vê o que foi ,sendo ainda: sem ciência ou mística, sem se gabar  que  Deus o ajuda, como se um iluminado ele fosse.  
Quem souber sentir, e suas antenas despertar, verá  o acontecido como presente ainda. Intuirá o acontecido  como experiência de uma fina percepção, e não como representação da pesada memória, pois  experimentará o acontecido como parte do mundo a acontecer ainda : sobre as pedras do porto desenterrado da Praça Mauá ainda se podem ouvir   passos arrastados , descalços,presos às correntes... 
O poeta, o escritor, o pintor, talvez a criança, veem esse tempo que não é o presente que passa, ou o passado que passou.É o tempo do Acontecer eterno, que dura, se estende, mas não passa, e que mostra que o tempo é um com o espaço. Neste Acontecer,  o acontecido ainda é parte do acontecimento que fende os limites do limitado momento. O que foi ainda permanece, no acontecimento a acontecer. O acontecido dura  presente a si mesmo, sem se apagar pelo esquecimento, sobretudo pelos esquecimentos de que é feita a História.
Na pegada ainda estão os pés de quem ali passou, mesmo que tenha milhares de anos o barro onde eles se empedraram. E é a presença desses pés que a pegada testemunha que nos faz supor o que eles buscavam:  é esse rastro o   signo  que toda vida deixa, é ele   que orienta e apoia todo viver que se alça para além do que está dado.



-as esferas celestes





Meus olhos têm apenas
três centímetros de diâmetro,
como pode neles caberem os céus?

Eles têm a cor da castanha terra,
como podem eles entenderem  o Azul?

Neles estão o que viram meu pai
e o pai do meu pai,
gente simples sem abstração,
como podem meus olhos verem como viu Platão?

Diz Espinosa que os olhos do espírito nunca fecham...
E que somente  eles veem  claro
o que  fechados e dormindo
os nossos olhos sonham.




sábado, 27 de maio de 2017

o Advogado do senador

( o senador) – “Meu Excelentíssimo, preciso dos seus préstimos, só o Senhor pode ser meu Advogado .Há uma conspiração universal contra mim. Eles invejam minhas posses e  propriedades, minha bela e jovem esposa, os títulos que tenho, as viagens que faço, meus jantares, meus ternos italianos....Sou vítima desses quixotescos e fracassados!”

(piscando  o olho, o senador arrematou) – “Tudo o que dizem é mentira, sou inocente. Meu Excelentíssimo,  preciso de sua ajuda...  ”.

( o Excelentíssimo)- “Mas o senhor senador sabe onde está? Sabe quem eu sou?”

( o senador) – “Claro que sei! Os meus perseguidores são os mesmos que falam mal desse lugar e do Senhor...Mas só o Senhor pode me defender”.

( o Excelentíssimo) –“ O senador sabe o que  cobro pelos meus serviços?”

( o senador) – “Sei... e estou disposto a pagar o preço...”

( o Excelentíssimo) – “Hum...mas tua alma vale quase nada, o caráter está danificado , é preciso eu ficar também com teu corpo, embora  mesmo inteiro você  seja muito pouco,  menos que um homem. Mas vou aceitar seu caso , você me será útil: com tua absolvição  zombarei  dos que creem na justiça, existo para desesperançá-los,  esse é meu prêmio ”.

( celebrando o Contrato, o senador beijou a mão do Diabo, e depois, chorando agradecido, se ajoelhou).





onde nascem os dias





- Vamos, já está amanhecendo...            
- Como?! É alta madrugada, lá fora está chovendo...
- Amanhece primeiro por dentro, para a treva de fora irmos vencendo.





quinta-feira, 25 de maio de 2017

deleuze, guattari, espinosa e a utopia




(trecho de livro do qual participo com este capítulo)

      A utopia é uma maneira questionante, não passiva, de se relacionar com o lugar. Como se sabe, "topos" significa, em grego, "lugar". Assim compreendido, o lugar não é apenas uma parte do mundo físico, pois  há lugares mentais, desejantes, incorporais, nos quais nunca se pode estar, apenas acontecerdevir. As palavras "estátua", "estático", "estar" e "Estado" se originam de um mesmo termo latino, stare , que significa "parada". Como dizem Deleuze e  Guattari (1992), a etimologia é o atletismo do filósofo. Ela é um exercício do pensamento que nada tem a ver com as semânticas do dicionário, pois se trata de encontrar o acontecimento que dá origem às palavras, agramaticamente. Desse modo, há lugares que são de parada, como o é também um túmulo; são lugares de poder e de morte, enfim. Mas há lugares que são de processos, de devires, de metamorfoses, de agenciamentos. Os lugares de parada podem ser circunscritos por contornos ou limites, ao passo que há lugares, lugares quaisquer, cujas fronteiras são limiares em vizinhança  com outros lugares deles diferentes.

É sempre com a utopia que a filosofia se torna política (..): ela [a utopia] designa etimologicamente a desterritorialização absoluta (..). A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler, “Erewhon”, não remete somente a “No-where”, ou a parte Nenhuma, mas a “Now-here”, aqui-agora. (DELEUZE;GUATTARI,1992, p. 130).

              A geometria euclidiana pensa o lugar  como algo que mora dentro de uma cerca, de um limite determinável; já o lugar da utopia cresce à medida em que ousamos habitá-lo: são lugares que crescem conforme crescemos, tendo a liberdade como tamanho.A utopia compreende um lugar ligado umbilicalmente  à Terra, o infinito. O lugar, o topos, expressa um "aqui"; já o "u" de "utopia" significa um "agora". Erradamente se traduz "utopia" como "não-lugar", dando à partícula "u" a função de negação ou privação.  A  "utopia" é um "aqui-agora": de tal modo que é no agora que podemos libertar o aqui de seu imobilismo, mas também é no aqui que podemos pensar o que desejamos ser a partir de agora , e não a partir de amanhã...O aqui-agora não é espera, não é esperança: é liberdade em ato, ato da potência, no espaço e no tempo. Todavia, não se trata de um espaço meramente físico, ou de um tempo tão somente cronológico.É um espaço de criação que pede um tempo que é de ruptura, de inovação.
           Do ponto de vista físico, os lugares são simultâneos: eles estão dados, sem sucessão, em um mesmo presente histórico, cada um com sua respectiva identidade. Do ponto de vista da utopia, os lugares são coetâneos: eles co-existem e se conectam, pela diferença. A coetaneidade dos lugares utópicos: espaços de rizoma e heterogênese.          Do ponto de vista da física social, estudantes, trabalhadores, artistas, negros, brancos, homossexuais, heterossexuais, favelados, intelectuais, etc., ocupam lugares euclidianamente estanques,molares,  delimitados que são por contornos determinados, muitas vezes construídos com arame farpado, dado que um Paradigma os segmentaliza. Da perspectiva da coetaneidade da utopia, esses lugares se abrem e se comunicam pela experiência de um agora que faz do aqui o espaço comum daqueles que, em devir-minoritário, sintagmático, desejam criar agora um outro lugar que seja aqui, e não em outra vida ou em outro mundo. Como dizem Deleuze e Guattari, " a revolução é a apresentação do infinito no aqui-agora : a revolução é a desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo  à nova Terra, ao novo povo"  (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 131).
            Os que nascem em um mesmo lugar se reconhecem chamando-se reciprocamente de "conterrâneos":os que têm "uma terra em comum", um mesmo natal.Como desterritorialização absoluta, a Terra de que falam Deleuze e Guattari não se confunde com um território ou Estado. Somente afirmando essa Terra é que nos tornamos conterrâneos de tudo o que é vivo, e nos reconhecemos pela Diferença que escapa a toda recognição, uma vez que nosso natal é a terra incognita: esta terra está onde se afirma uma linha de fuga. A célebre pergunta de Espinosa, “o que pode um corpo?”, mais do que pretender uma resposta, ela nos quer pôr diante de uma incógnita.Toda potência é uma incógnita.
         A  afirmação da Terra é dupla: ela implica a coetaneidade dos lugares  vividos como lugares de diferenças em conexão e agenciamento para instituir o comum, e supõe também a experiência de um devir planetário que nos torna conterrâneos por aquilo que criamos e ousamos, contra todo fascismo e apequenamento da vida.A Terra  é sempre terra incognita: “o que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio do novo , isto é, a diferença, é provocar no pensamento forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um modelo totalmente distinto, numa terra incognita  nunca reconhecida , nem reconhecível” ( DELEUZE, 1988, p. 224). Esta terra incognita  é a Terra que nos torna conterrâneos da criação , e que invoca um povo que não deve ser reduzido a  uma realidade pertencente a um território psicossociológico.  O povo é  um agente coletivo que povoa sem padronizar ou segmentar. O povo não é maioria, ele é um devir-povo sempre minoritário. O filósofo não fala por esse povo ou no lugar dele, o filósofo fala diante dele, ele “fala  na frente”[1].      
                                                                                                       




[1] A expressão “fala na nossa frente se você tem coragem” , não tem por alvo exatamente enunciados duvidosos que se quer combater; diferentemente, essa expressão também expressa o desejo de constituição de um lugar coletivo como coragem de um devir-verdade.Sobre a “coragem” como virtude filosófica, mais potente do que a “philia” : Michel Foucault, Le courage de la vérité, Paris, Gallimard,2009 ( especialmente a referência a Espinosa , que não define a filosofia como “philia”, mas como “emendatio do intelecto” e “salut”: emendatio, ou correção, do instrumento, o seu perseverante “polimento”, para que assim alcancemos a salut, cuja tradução adequada é “saúde”, e não “salvação”, daí o aspecto “crítico e clínico” que deve acompanhar um modo de vida  filosófico).









quarta-feira, 24 de maio de 2017

anarquismo e micropolítica



Odeio tanto seguir como ser seguido:
para me acompanhar aonde vou
é preciso aprender a amar andar ao lado.

Nietzsche


"Anarquia"= "an-arqué". Um dos sentidos de "arqué" é "comando". A anarquia é um não-comando: "não" como crítica, e não como mera reação à existência de um comando. Sobretudo, a anarquia é uma crítica a um "comando externo" que se coloque acima dos comandados. Assim, criticar o comando é criticar também os mecanismos que nos tornam "comandados": não apenas pelo Estado, mas comandados também pelo mercado, pela mídia, pelo consumo, pelo ódio, enfim, pela tolice. É preciso compreender a ideia de "comando" em um sentido bem amplo, para assim não reduzir anarquia a compreensões estreitas, clicherosas. O poeta  por exemplo, como afirma Manoel de Barros,é aquele que escapa aos comandos homogeneizantes da gramática.
Porém a crítica ao comando externo deve ser  o resultado ou consequência de uma atitude que a precede.Essa atitude não é negativa, ela não é um destruir, mas um construir:"Só podemos destruir sendo criadores", já nos ensinava o "anarquista" Nietzsche.Então, antes da crítica aos comandos externos que, de fora, querem nos impor modelos de como viver, devemos construir uma consistência interna, uma potência, uma saúde imanente. Esse procedimento de consistência exige também uma luta, um esforço, que não se faz sem as ideias e sua força, e a força das ideias nada  tem a ver com a força física ou bélica.O autêntico anarquista comanda a si mesmo não como um general a um exército, não como a bebida ao dependente, não como o pastor a um rebanho; ele se esforça para comandar, em primeiro lugar , a si mesmo, e deve se inspirar no modo como um maestro comanda uma orquestra, como um pintor comanda as tintas, como o poeta comanda as palavras. Pois tal como essas coisas, nós também somos uma multiplicidade.
Por isso, o autêntico anarquismo não é preto,branco ou cinza. Ele é multi e pluri-colorido, e em cada cor ele afirma ainda as nuances e matizes, os tons, as variações.E ainda: para pintar um quadro é preciso ter uma perspectiva.
Segundo Negri interpretando Espinosa, o anarquismo não é sistema político ou proposta de governo,simplesmente porque ele não é sistema , mas rizoma, conexão. O anarquismo não é sistema político, ele é modo de vida, ontologia, estética, poética. Ele é isso porque ele é afirmação da heterogeneidade da existência, e esta heterogeneidade não pode ser representada, dado que ela pode apenas ser vivida, experimentada, produzida.A poesia vive no "antesmente verbal", escreve Manoel de Barros; a anarquia precede a política, tal como o fazer precede o produto.
Por isso, o plano do anarquismo é sempre micropolítico, o que nada tem a ver com a macropolítica dos partidos."Micropolítica" não significa política das coisas pequenas, pois política das coisas pequenas costuma ser a prática da macropolítica."Micropolítica" é a política que não pode ser separada das práticas, sobretudo daquelas práticas que a macropolítica diz não serem práticas políticas, como as práticas de ensino, as práticas artísticas, as práticas de consumo, as práticas de prazer, as práticas culturais, etc.
O anarquismo não é discurso de um partido, ele é expressão de uma parte, de uma parte sempre heterogênea que, em sua diferença, expressa um todo. Assim, o anarquismo não é pulsão de morte contra o todo, ele é a afirmação de um todo que potencialize as partes. E esse todo nunca é um partido ou um Estado, pois estes também são partes. O Estado fascista é aquele que se comporta como um todo à parte, que vive à custa da sociedade.
É na micropolítica que se luta contra os fascismos e suas várias manifestações, principalmente os micros fascismos cotidianos que infestam as práticas mais rotineiras.Mas se luta com alegria, e não com ódio. Sobretudo, nunca, jamais um anarquista pode ensejar comportamentos que alimentem  a menor confusão entre suas práticas e a de um fascista.





terça-feira, 23 de maio de 2017

manoel de barros & deleuze: pop'filosofia



O homem só encontra nas coisas aquilo que ele mesmo nelas pôs:
o ato de encontrar se chama ciência,
o ato de pôr se denomina arte.

Nietzsche



Cego é quem vê só aonde a vista alcança.
Mandei meu dicionário às favas:
Mudo é quem só se comunica com palavras.

Candeia




( trecho do livro)

Gilles Deleuze criou uma expressão para nomear essas relações entre a arte e a filosofia. Seu nome: Pop’Filosofia. Trata-se de uma concepção da filosofia pensada a partir de suas fronteiras com as artes, sobretudo a literatura e a poesia.
Através de uma pop’filosofia, a filosofia encontra seu deslimite e , ao afirmá-lo, devém também uma prática inventiva, problematizadora, questionante.
Uma pop’filosofia se constitui apoiada na seguinte ideia : a filosofia pode ser compreendida de maneira não conceitual ou acadêmica, sem que isso signifique um prejuízo à essência problematizadora do dizer filosófico.
A compreensão exclusiva através de conceitos é apenas uma das formas possíveis para se compreender a filosofia, mas não é a única — dado que a compreensão de qualquer coisa em geral, e da filosofia em particular, mobiliza camadas de nosso pensamento e de nossa sensibilidade que igualmente são mobilizadas quando ouvimos uma música, lemos uma poesia ou vemos um quadro .

E é nesse território onde o Pensar e o Sentir embaralham suas fronteiras, perdem seus respectivos limites e fazem do inacabamento o processo que os afirma, é nesse território que vemos surgir a possibilidade de construção , com Deleuze, de uma pop’filosofia.







azular

Em grego, "eros" significa tanto “amor” quanto “asas”. Na mitologia, Eros é um Daimon, uma dividade que não mora no Monte Olímpico, tampouco vive ele em lagos, florestas, cavernas ou debaixo da terra. Eros vive entre o ceu e a terra, ele habita um espaço de travessias, passagens. Por isso, a necessidade de asas. Porém, as asas  de Eros são asas de borboleta,  não são como as que têm os pássaros.  Enquanto as asas dos pássaros são feitas de penas, e com elas os pássaros já nascem , como se lhes fossem inatas, as asas da borboleta nascem como expressão de um processo de metamorfose.As asas inatas dispensam um aprendizado, pois o “instinto” as programou. Contudo, as asas de borboleta apenas nascem após um processo que parece uma  morte, mas é renascimento ( tal como parece que está morta a lagarta em seu casulo).
Para os gregos, Eros é “uma força que une”: onde há separação, onde há dois, Eros faz nascer um.Antes de tudo, Eros deve nos unir a nós mesmos, uma vez que o mundo muitas vezes nos faz existir separados de nós mesmos, cindidos, em desacordo com a gente mesmo. E é por isso que, querendo dizer sim, muitas vezes dizemos não; ou querendo dizer não ,dizemos sim; querendo nos aproximar, nos afastamos; querendo nos afastar, ficamos perto, mesmo daquilo que nos afasta de nós mesmos. Enfim,  querendo amar, odiamos.Se não estamos unidos a nós mesmos, em acordo com a gente mesmo, jamais nos uniremos de fato aos outros.Ao contrário, amaremos ao outro com a esperança que ele nos ame, e quem sabe assim possamos, mediante o outro, nos unirmos a nós mesmos. Mas esse amor jamais dá certo, pois ele equivale a querer não exatamente se unir ao outro, mas subordiná-lo a nós. Logo esse amor possessivo vira ódio, rancor, queixa.
Para Espinosa, amar a si mesmo é unir-se a si mesmo, esforçando-se para evitar fazer de si mesmo espectador ou público de si mesmo, seja nas coisas boas seja nas ruins que nos acontecem, uma vez que esse proceder imaginativo sempre cria cisão. Por essa razão, a autêntica união a si nunca é apenas união a si mesmo, e é por isso que amar a si nada tem a ver com amar apenas ao próprio ego.Como Narciso, o ego está sempre em relação consigo por intermédio de reflexos, aparências, idealizações, e não em um verdadeiro encontro. Quando verdadeiramente nos unimos a nós mesmos, vemo-nos como parte de um todo.Assim, não vemos apenas a nós, egoicamente, pois vemos também ao outro como parte diferente do mesmo todo.
É por isso que Deus, ou a Natureza, é , para Espinosa, Amor: ele é o que une. O Amor   nos une a nós mesmos nos unindo a ele, e unidos a ele nos unimos ao diverso que está unido a ele, diversamente.Através do Amor, aprendemos a amar o diverso de nós enquanto amamos a nós mesmos.
Espinosa chama a esse conhecimento do todo  de Ciência Intuitiva, ou Terceiro Gênero de Conhecimento.Não conhecemos o todo conhecendo cada parte dele, uma a uma, indutivamente. Tampouco podemos conhecer o todo sem conhecer suas partes singulares, naquilo que elas têm de únicas. O azul que está nos infinitos graus de azul não pode ser separado dessas infinitas maneiras que o expressam. Cada uma dessas singulares maneiras entra em relação com todas as outras, por intermédio do todo que ela expressa. Cada grau de azul é percebido e  visto com nossos olhos finitos, ao mesmo tempo que o azul enquanto todo é intuído pelos olhos do nosso espírito  como aquilo que antecede em potência azular cada grau seu de azul.
 “Intuir” significa: “apreender no interior o que está no interior”. Intuir é apreender imanentemente a imanência. Intuir nunca é colocar-se fora, tornar-se sujeito, e fazer do intuído um objeto exterior. Todos os graus de azul têm algo em comum: eles são expressões do azul. Conhecer o comum é prática do Segundo Gênero de Conhecimento. Este segundo gênero quem o faz é a razão. O segundo gênero conhece a relação entre os graus, a partir do que eles têm em comum. Nenhum grau é idêntico a outro, e é por isso que eles podem ter o azul enquanto o comum que os põem em relação, agenciados, enquanto diferentes.
Porém, como conhecer diretamente, nela mesma, a diferença que cada grau é? Como conhecer a singularidade de cada grau? Nenhum grau existe em si, como um ponto ou ego. Cada grau é a expressão de algo. Não se pode conhecer um grau separado da realidade da qual cada grau é um grau, uma expressão, um modo, uma diferença. Não há como conhecer o grau singular sem conhecê-lo como expressão do infinito azul que infinitamente se expressa em outros graus. Esse infinito azul não está fora do grau singular que o expressa: ele lhe está imanente, como Corpo do seu corpo, como Espírito do seu espírito, como Vida da sua vida. Intuir não é apreender o grau e depois o todo. Intuir é apreender na imanência do grau o todo , com seus infinitos graus. Para Espinosa, essa apreensão se assemelha a um clarão, como o de um relâmpago que percorre o infinito com velocidade infinita. Nunca se pode apreender o todo a não ser como imanência imanente a um grau singular.
O azul não está “dentro” de cada grau seu. Ser imanente não é ser “interior a”. “Imanente” vem de “imanare”: “ir para dentro do manancial”. “Manancial” é “fluxo incontível, irrepresável”.O grau de azul é um   ir para o manancial-azul, para ser mais azul intensamente.O manancial-azul desrepresa o grau de todo limite que o impede de ser mais azul . Quanto mais um grau vai para dentro do manancial-azul, mais o grau aumenta sua potência de expressar o azul, diferencialmente. O que pode limitar um grau de azul é outro grau de azul, quando estes não  se compreendem como graus, mas como o próprio azul. O todo não pode limitar um grau seu, pois isso seria limitar a si mesmo, o que seria  um absurdo.
Um grau de azul se torna mais potente não enquanto domina ou destrói os outros modos de azul. Um grau de azul se torna mais potente quanto mais potência ele tem de azular, afirmativamente. Ele se torna mais potente quanto mais de azul ele consegue expressar.

(Martha Barros, Poético Azul)



segunda-feira, 22 de maio de 2017

- a criação do homem na mitologia grega





Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que não tínhamos visto o que vemos.
                                         Paul Valéry



Após vencer Cronos,o Tempo, e gerar as Musas, para que estas fossem agentes da comemoração da vitória  ( co-memorar é criar memória daquilo que não pode ser esquecido), Zeus se preocupa então em criar a natureza.Até esse ponto da narrativa ainda inexistia o homem ,bem como todos os outros seres vivos .
Zeus pede então a dois irmãos seus que fizessem toda a obra. Estas divindades se chamavam Prometeu e Epimeteu. "Epi" significa "tarde demais", ao passo que a terminação "meteu" deriva de "métis": "prudência" ou "sabedoria prática" (“meticuloso” se origina de “métis”). Assim, Epimeteu significa "saber tarde demais o que deveria ter sido feito". Já Pro-meteu tem o sentido de "saber antes o que deve ser feito". Epimeteu é o que só vê depois, quando "já é tarde", enquanto Prometeu é o que planeja e projeta.
Zeus lhes incumbiu da tarefa de criar a natureza.  Ele  fez algumas exigências : cada ser criado deveria ser dotado de uma essência que lhe permitisse viver e se desenvolver. E o mais importante: a principal criatura a ser criada deveria ser o homem. E tudo deveria ser feito dentro de um determinado tempo, ao fim do qual Zeus retornaria para ver a obra. Prometeu era a divindade mais indicada para comandar a obra, pois Epimeteu era uma divindade cuja característica principal era a volubilidade e ausência de constância. Porém, por estar atarefado com outras coisas, Prometeu pediu a Epimeteu que este começasse a obra. Prometeu viria ao fim para concluí-la.
Quando Epimeteu voltou-se para a natureza para criar os seres deu-se conta que diante dele estava apenas uma matéria muito indeterminada e confusa, na qual as formas ainda não haviam se separado e distinguido da matéria .Ao invés de começar pelo homem , Epimeteu inicia a obra pelos animais. Encantado com as asas que vira em Eros, Epimeteu decide criar primeiro os animais alados. Criou asas sutis, ligeiras, que deu ao colibri; criou asas imensas, potentes, que pôs no Albatroz.
     A cada espécie criada ele a fazia dotar de alguma virtude da natureza, para que assim tal espécie pudesse se desenvolver e sobreviver. Em algumas espécies ele pôs a força, em outras ele colocou o veneno, em outras ainda o dom de cantar; e houve aquelas que receberam a capacidade de respirar debaixo d’água. Algumas espécies receberam um cobertor natural para que pudessem ,apenas com a espessa pele, suportarem o frio extremo. Outras espécies receberam uma visão tão arguta que mesmo à noite elas poderiam ver como se fosse sob o dia. Enfim, Epimeteu foi esvaziando a dispensa da natureza e dotando cada espécie com aquilo que a natureza poderia oferecer. Chega então Prometeu para inspecionar a obra. A primeira coisa pela qual ele procura é o homem. Onde está o homem? O eco da indagação do Deus pode ser ouvida até hoje, e  ainda hoje perdura a mesma silenciosa resposta...O homem, o ser humano, onde está?Epimeteu se dá conta então que se esquecera completamente do homem. Ele indica para Prometeu onde estava o homem: este era um simples esboço no barro, um rascunho que mal se distinguia daquela matéria. Em latim, barros é “húmus”. Etimologicamente, “homem” procede de “húmus”.
Prometeu percebe então que a criação do homem não poderia ser feita apenas a partir daquilo que a natureza material  poderia oferecer. Prometeu se decide a ir buscar no divino o modelo para construir o homem.
A primeira divindade que Prometeu buscou foi Hefesto, o deus artesão-operário. Este deu a Prometeu, para este dar aos homens,a habilidade de usar as mãos. As mãos passaram a ser empregadas para fabricar coisas. Nascia assim a técnica e, com ela, o homo faber: o homem que fabrica coisas para seu sustento. Este homem já não aceita simplesmente a natureza externa: ele a transforma.  Todavia, apenas usar as mãos não  tornou o homem  um ser completo, pois as feras conseguiam ainda assim destruí-lo e vencê-lo. Prometeu busca ajuda de outra divindade: Atena, a deusa da sabedoria. Esta aceita dar a Prometeu, para este dar aos homens, a capacidade de raciocinar: os homens recebem a inteligência. Com a inteligência, os homens aprendem a contar, a medir, a raciocinar, enfim, a falar. Com a inteligência, nasce o homo sapiens.
Todavia, os que receberam a inteligência não foram os mesmos que receberam a habilidade técnica-manual. Entre estes dois tipos de seres humanos, os trabalhadores/técnicos  e os intelectuais/teóricos,passou a existir então uma inimizade: cada um via no outro apenas a capacidade que faltava a este outro, e que era a capacidade daquele que julgava depreciativamente  a diferença. Cada classe desprezava a outra. Eles não se uniam, não viam entre si nada de comum. Inexistia entre eles a comunicação.Existia apenas rivalidade e ódio.Cada  um desprezava a diferença do outro e prezava apenas sua própria identidade.Assim, facilmente a natureza os vencia . Na verdade, o mito tematiza a danosa oposição que pode existir entre a teoria e a prática (ou a técnica) quando vistas à parte da natureza do homem como um todo.
Prometeu resolve ir então diretamente a Zeus e pedir-lhe ajuda. Este aceita conceder a Prometeu, para este conceder aos homens, o sentido ético da justiça. Zeus fez uma exigência: que este afeto fosse colocado em todos os homens, e não apenas em parte deles. Este afeto seria o impulso que os levaria a agir conforme o comum, e não apenas de acordo com  o interesse particular, individual ou de classe.Prometeu resolve então colocar o afeto pela justiça,pelo comum, exatamente no lugar que serviria para mediar os conflitos entre os intelectuais e os operários, entre a teoria e a técnica, enfim, entre o cérebro e as mãos. Este lugar mediador foi o coração. É o coração que equilibra o homem, o equilibra primeiramente dentro dele mesmo, para que assim ele possa se equilibrar na relação com os outros. Mais do que mero sentimento, o coração representa a sensibilidade no sentido maior da palavra.Este lugar de mediação entre a teoria e a técnica é o lugar da arte,o lugar da cultura.  Sobretudo, a cultura que tem como base a educação do homem.A técnica e a teoria podem servir à guerra e à destruição, ao passo que a arte que educa é instrumento de humanização do homem, humanizando igualmente a teoria e a técnica. Não por acaso, as Musas são as divindades que celebrarão a arte como maneira de vencer a barbárie, inclusive a barbárie que pode nascer da mera técnica desumana e da teoria estéril que serve ao poder.As Musas não são apenas divindades ligadas à memória: elas também são associadas à ética, pois são filhas de Zeus.
E é por isso que musealizar algo também é um ato ético. Além disso, há um aspecto das Musas pouco lembrado: elas também eram divindades que cantavam, elas cantavam para celebrar os matrimônios. Elas cantavam, celebrando, os matrimônios. Assim, elas co-memoravam: criavam uma memória em comum.
Patrimônio é um termo nascido do mundo jurídico romano, e significa: aquilo que se herda, sobretudo do pai.Sem dúvida,há algo de masculino na noção de patrimônio ( “patri” é “pai”).Mas para que um patrimônio seja reconhecido como tal, é preciso que haja um “matrimônio”, um enamoramento, um encontro. “Matri” pode significar  mãe ou mulher, e expressa,simbolicamente, o princípio feminino da sensibilidade. E é isto que as Musas fazem: celebram matrimônios, elas cantam elos nascidos de afetos que unem ( o tal “fundo comum” citado pelos autores da obra referenciada no início desse texto)  .
Todo patrimônio é precedido de um matrimônio, de um encontro. Ir ao museu deveria ser como adquirir um matrimônio com o conhecimento, com a cultura. Fala-se muito de “patrimônio cultural”,mas talvez seja necessário pensarmos também a idéia de um matrimônio cultural,cuja base é o afeto,o encontro,  e não meramente a masculina e jurídica razão.Simbolicamente falando, um patrimônio somente é reconhecido como tal se antes houver um matrimônio,um enamoramento. A exposição, enquanto espaço de mediação, é o lugar desse matrimônio cultural.
Voltando ao mito.Ao receber o afeto ético pela justiça,nasce enfim  o homo eticus.O afeto deveria ter a função de servir de mediação  entre a técnica,o mundo do fazer, e a teoria, o mundo do conhecer.
Seguindo a justiça, os homens aprenderam a cooperar: e assim nasceu a sociedade. O homem não era mais tão somente   um ser individual, ele se percebeu também um ser de comunidade, um ser social. E assim eles passaram a comandar a natureza: tanto a externa quanto a interna ( a natureza interna,em seu aspecto danoso, é aquela que  se manifesta  como passionalidade , ou seja , como  ódio, rancor, cobiça, ignorância,etc.).
Contudo, por muito tempo não durou aquela conduta pautada na justiça,guiada pelo afeto pelo comum.Como sabiam falar e dominar a inteligência,logo os intelectuais criaram leis. Depois, o Estado. E este passou a ser monopólio deles.O Estado passou a substituir o coração nos assuntos da justiça. Nasceu assim o déspota, o homem que faz do Estado um monopólio seu.E este passou a crer que possuía uma origem diferente: não o barro, mas o ouro. O déspota criou uma casta com privilégios, bem como um exército para reprimir os operários pobres, que foram então tornados servos. O homem passou a ser então o leão do outro homem, a serpente do outro homem, o lobo do outro homem. Horrorizado, Zeus pensou em destruir com um raio toda a humanidade. Mas decidiu se vingar com uma lição: levaria o homem a ser destruído pela sua própria ambição e pouco amor pela justiça.
Zeus então pede a Afrodite e Atena que criem um ser que seria o instrumento de sua vingança.Alguns outros deuses as ajudaram na tarefa, como o deus Hefesto, o deus-artesão, que modela no barro úmido o que Zeus vai pedindo a Afrodite e Atena.  O homem fora criado no barro seco, ao passo que este novo ser o será  no barro úmido, que Zeus umedecera com sua saliva. Por isso, este novo ser  será mais maleável e receptivo do que o homem, assim como o é o barro úmido em relação ao seco. O barro úmido é matéria que ainda se pode modelar, pois ele  é o símbolo da sensibilidade, base da educação no seu sentido mais amplo.Atena e Afrodite seriam os modelos divinos dessa nova existência a ser criada.Olhando para elas, e instruindo-se no que pede Zeus, Hefesto ia modelando o úmido barro.
       Zeus quer   que o homem, ao ver esse novo ser,  fique cego. A pele desse ser deveria ser tão macia que, ao tocá-la, o homem se esqueceria do aveludado das pétalas. Esse ser igualmente  deveria ser tão perfumado que o homem ,ao sentir seu perfume, também se esqueceria do perfume das rosas. Esse ser também saberia usar com sedução as palavras, para que o homem sempre acredite nelas. Para tal, Hermes, o deus da comunicação, põe na boca desse ser palavras sedutoras.Mas tais palavras nasciam apenas de sua boca, e não de seu ser inteiro: elas seriam    armas para lutar contra a força física do homem.  E o mais importante: esse ser deveria ter dois estômagos, para que a insatisfação fosse o seu estado mais freqüente, e nunca o homem pudesse preenchê-la totalmente.  O nome desse ser : Pandora, a primeira mulher que foi criada.Mais do que a mulher, Pandora representa, simbolicamente, o feminino.
Zeus a envia de presente aos homens. O mais poderoso dos homens a faz de esposa.Zeus envia um baú ao casal. Na tampa do baú estavam escritas as seguintes palavras: “Não abra antes do  permitido”.A irrefreável curiosidade também era uma das características de Pandora.Não obstante a advertência, ela abre o baú. Dele saem a doença, a pobreza, as pestes e o pior dos males: a morte. Até então os homens não morriam, tampouco procriavam. Quando Pandora se apressou em fechar o baú, dentro dele ficou apenas a esperança.
Entretanto, algo de misterioso acontece com Pandora, mais especificamente com aquele seu segundo estômago. A semente da vida nele se depositou, cresceu e se alimentou. O segundo estômago morreu para que no lugar dele nascesse o útero.
Ela que trouxe a doença e a morte, agora dentro dela estava sendo gerada a vida. O homem foi criado do puro barro seco. Mas a mulher foi criada tendo como modelo o divino. A mulher teve como modelo Afrodite e Atena.E sempre quando a mulher potencializa o feminino que está nela , através dela vemos o divino.
Zeus viu então um novo papel para Pandora (que, simbolicamente, representa a sensibilidade, a sensibilidade à vida). Que ela seja o instrumento da educação do homem.Que suas palavras expressem lições que não nasçam apenas na boca, e nesta morram. Que a sensibilidade à vida  auxilie o homem a entender o que a inteligência não compreende; que o amor à vida o ensine a apreender realidades que as mãos não podem tocar.
Por isso, em termos simbólicos, temos a essência eminentemente artística  da educação humanística, que difere da natureza meramente  operacional  do ensino técnico e do caráter exclusivamente racional do ensino  teórico.Nesse sentido, a comunicação, a mediação e a educação são termos que se complementam.

-Referência:
Hesíodo: Teogonia e Os trabalhos e os dias.









domingo, 21 de maio de 2017

manoel de barros, espinosa

Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.


No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Pois minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver.

Manoel de Barros


Segundo Manoel de Barros, o poeta é aquele que diz “eu-te-amo para todas as coisas”. Ele não o diz na esperança de receber em troca o mesmo amor. O afeto não é prática de trocas. Quem dá o afeto na esperança de receber em troca o que deu mede o que deu e mede o que recebe: pesa, enfim. Quem assim procede na verdade quer vender o que não é objeto de comércio.
Além disso, o poeta não diz “eu-te-amo” apenas ao que é belo , ou ao que o gosto médio diz ser amável. Ele não ama sob os critérios da recognição dos valores dominantes. Ele não diz eu-te-amo exclusivamente  a isto ou aquilo: o que ele diz amar não se torna,para ele,   um ser à parte. Ele diz eu-te-amo a todas as coisas, de tal modo que cada coisa se torna parte singular de um todo que é processo, potência.Ele  diz eu-te-amo a todas as coisas porque primeiro ele o diz ao todo do qual cada coisa é uma parte , uma expressão.
O poeta não diz apenas em versos ou palavras, ele o diz em gestos,em pensamentos, em ações.Ele o diz também com o seu corpo e com sua existência inteira, e desse amor não nasce ciúmes ou traições.Somente sendo fiel a esse amor é que o poeta é fiel a si mesmo.Esse amor não o torna dono do que ama,nem se alimenta de esperanças.Por esse amor ele se liberta e liberta o que ama: no poema que de fato vive e  cria, e não em promessas.
Espinosa dizia que a função da filosofia é nos produzir um olhar sinóptico, um olhar que liga cada coisa ao todo. Um olhar que vê não apenas uma coisa e depois outra, mas a conexão entre elas, o meio. Tudo está conectado com tudo: a vitória está conectada com a derrota, o acerto está conectado com o erro, a  verdade está  conectada com a falsidade, o juiz está conectado com o bandido, a razão está conectada com a imaginação, a realidade está conectada com o sonho. Estar conectado não significa estar subordinado, ou que um é superior ao outro. O importante, o que dá sentido aos termos de cada relação , é o que está no meio, é a própria relação. Quando nos colocamos na perspectiva da relação, percebemos que juiz e bandido, razão e imaginação, acerto e erro, etc., são termos relativos não apenas  uns aos outros, mas relativos à relação que lhes dá um sentido.
Todavia, afirmar a relação nada tem a ver com defender o relativismo.O relativismo nasce quando se supõe que bandido e juiz são o mesmo, assim como a verdade ou o erro. O relativismo geralmente segue  de mãos dadas com o ceticismo e o cinismo,uma vez que reduz a relação aos termos.Mas quem dá as mãos ao ceticismo finda por andar em círculos, ao passo que quem as dá ao cinismo cedo descobrirá que se encontra sozinho. Somente a compreensão, como diz Espinosa, pode conduzir-nos pelas mãos e nos levar para onde já estamos.E lugar onde estamos é sempre o de uma relação, a começar pela relação de cada um consigo mesmo.
Por isso,  quando nos colocamos na perspectiva da relação afirmamos apenas ela como necessária, de tal forma que compreendemos que, sob uma outra relação, o que hoje é bandido pode se tornar um justo,ou o que sob determinada relação é erro sob outra poderia ser acerto, ou o que sob determinada relação é ensino pode ser aprendizado sob  outra relação. Através da relação e da conexão cada coisa se liga não apenas a outra que lhe seja oposta, ela se liga também ao todo e , através deste, a ela própria,para assim mudar, devir, (re)inventar-se.
Sob determinada relação, a droga é veneno; sob outra, remédio. Todavia,isto não significa dizer que ela nunca é veneno .Ao contrário, significa dizer que nem sempre a droga é veneno, ou que nem sempre a razão é razão:sob certa relação, a razão pode ser veneno, o juiz pode ser bandido, e o bandido pode ser um santo. Pensar as coisas sob o viés da relação é pensar como é produzido o sentido que lhes atribuímos, e que este sentido sempre está inserido em uma prática que nós mesmos construímos, mesmo que passivamente. Enquanto pensarmos a relação apenas em termos duais ( juiz-bandido, verdade-falsidade) corremos o risco de ficarmos reféns das dicotomias e dos discursos que se alimentam  do preto e do branco, do não e do sim apenas.
Na pintura, o discurso racional sempre se expressou com o predomínio da forma, do limite, em detrimento da cor.O discurso passional, ao contrário, sempre realçou a sombra, o claro-escuro, o fundo negro, as trevas...Em ambos os casos, sempre se colocou a cor em segundo plano. Sabe-o disso não apenas quem pinta : a cor desborda os limites, bem como introduz uma pluralidade expressiva irredutível à gramática redutora do preto, branco, cinza e sombra. Pelas cores, percebemos que a sombra não é a ausência da luz ou o efeito de um princípio ativo distinto da luz ( a treva). Pois as cores também produzem sombras, como se o pode ver em Vermeer.
olhar sinóptico não é um olhar relativista ou que aceita, resignadamente, que tudo é igual,homogêneo. O resumo de algo  às vezes é dito “sinopse”. Para fazermos a sinopse de um livro ou filme, é preciso que o tenhamos visto ou lido. Mas quem viu, inteira, a própria vida? Em princípio, somente podemos fazer a sinopse de um dia que vivemos à meia-noite do mesmo.Essa idéia , porém, confunde a sinopse com a reprodução abreviada do que se viveu ou do que se teve a experiência.
Quem viu, inteiro, Deus ou a Natureza? A experiência com o infinito nunca pode terminar, como se termina a leitura de um livro.Quem leu um livro se torna apto a relatar o que leu.Mas e quem viu Deus ou o Absoluto,do que se torna capaz de narrar?E deve fazê-lo em prosa? Ou apenas em versos o conteúdo do que viu pode caber?
Quando Espinosa emprega o termo “sinopse” ele está a querer dizer que o infinito está resumido em cada coisa, por mais simples que seja esta coisa, não importando se ela é uma vitória ou uma derrota, uma dor ou uma alegria, um idoso ou uma criança que acaba de nascer. Enquanto vivemos  o dia, e o tomamos  mais como algo que passa do que como algo que dura, não conseguimos experimentar/viver cada parte dele como o resumo dele mesmo. Se a isto soubéssemos enquanto o vivemos, seríamos como um artista a criar uma obra, dado que o todo não é um texto pronto,mas uma virtualidade , uma matéria ou potência a criar. Então, quando à meia-noite fazemos uma sinopse do dia, o fazemos segundo as possibilidades existenciais daquela parte do dia, e não segundo toda a potência que foi o dia inteiro. Inclusive,parte dessa potência que escapa à consciência  pode ser melhor resumida e expressa em um sonho que nos desperta no meio da noite, fazendo-nos compreender algo que não percebemos durante o dia.
O que vale para um dia vale igualmente para uma vida inteira: cada momento de uma vida é um resumo da vida inteira. Quem descobre isso, e o vive, olha não só a parte,o resumo, mas o todo, o que está sempre a se viver,pois o todo é sempre maior que cada   parte sua, e é maior até mesmo que a soma das mesmas.É surpreendente pensar assim:o dia que vivemos é maior do que as partes dele que vivemos, assim como é maior que cada parte dela a vida nossa mesma. É maior não como um pé que não cabe  em um sapato, ou um livro que não cabe em uma bolsa. É maior porque torna maior cada parte que  a expressa,assim como um tom mais vivo de azul torna mais azul o grau de azul que o expressa.Quando uma parte se liga ao todo do qual ela é uma expressão, ela se torna maior porque ela,através do todo, se liga a todas as partes que expressam o mesmo todo: embora única e singular, ela se descobre ligada ao inumerável que expressa o mesmo todo de mil outras perspectivas, e nenhuma dessas outras perspectivas é a dela própria, o que acentua sua diferença, ao mesmo tempo em que a liga e a integra ao todo que é sua alma heterogênea.
Cada parte de uma vida é uma sinopse de uma vida inteira, embora a vida inteira seja maior do que a mera soma de suas sinopses. De nossa vida inteira vivemos quase exclusivamente a parte atual, a mesma que a cada momento passa. Mas o que passa é a parte atual, não a vida inteira, que é sempre virtual. A parte atual é governada pela percepção, ao passo que a vida inteira somente é vivida pela memória,pelo pensamento e mesmo pela imaginação.
olhar sinóptico, porém, não é um olhar da percepção, da memória ou da imaginação: ele é o olhar da alma que, enfim, se tornou inteira, sabendo-se parte do que é infinito, e o infinito é a multiplicidade do que existe de infinitas  maneiras. O olhar sinóptico  é aquele que vê cada coisa finita como um resumo singular do infinito, uma vez que o infinito lhe está imanente como aquilo que nunca a deixa ser finita, limitada. Para ligar cada resumo a outro é preciso, antes, ter a experiência do todo, e este nunca é um livro ou texto. Ele se assemelha mais a uma música:não a música que está em uma partitura ou cd, mas a música que flui, que dura, e que faz de nós mesmos o seu intérprete, de tal modo que apreender tal música não se faz sem que criemos e aperfeiçoemos nosso próprio estilo, tal como o artista, o músico, que ama tanto o tocar quanto o que precede e prepara o tocar: o estudo,o treinar,o aperfeiçoar, enfim, o esforço.








manoel de barros: o menino que carregava água na peneira




(trecho do livro)

Podemos dizer que a poética de Manoel de Barros é uma original “empoética” sem regras ou cânones , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra conjuga quando perde seu limite utilitário (...).“Empoemando”, a palavra adquire a potência de expressar. Através desta potência, dá-se “um inauguramento de falas” que “insana”o significado habitual , gramatical e ordinário. Mas essa “insanidade”, ou agramaticalidade, produz uma verdadeira saúde : a de uma linguagem que redescobre a natureza extraordinária, singular, do sentido. Graças a essa poiésis da agramaticalidade,a linguagem é redescoberta como fonte de inauguramento de sentidos: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, revela-nos o poeta.
Empoemar as palavras é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Esta empoética não possui regra de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer agramática.O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.
Empoemar a palavra é torná-la despalavra, verbo-substantivo onde se pode enxergar “o feto dos nomes”. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar desde que “abra seu roupão para o poeta”, e o deixe sê-la.
A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica, consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto no final da frase.

("O menino que carregava água na peneira", livro: Exercícios de ser criança)




sábado, 20 de maio de 2017

o ouro do poeta

                                                 (jardim de primavera)



Eu tentei me horizontar às andorinhas.
Manoel de Barros

O plano de imanência é o horizonte absoluto.
Deleuze & Guattari




                                                    OS ACHADOUROS

                                                               Quando o sábio se vê reduzido à necessidade,
mesmo aí ele acha mais ocasiões de ofertar do que de receber,
pois ele possui um tesouro que nunca se esgota:
o de possuir a si mesmo.
Epicuro


No poema Achadouros Manoel de Barros nos fala de uma  senhora, a "negra Pombada, remanescente de escravos do Recife", que  contava aos meninos sobre Corumbá ter “achadouros” , que eram buracos  feitos pelos   holandeses  em seus quintais para esconder suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros , os homens  escavaram  quintais para ver se ali achavam ouro...
O poeta é aquele que busca os achadouros também, mas o tesouro que ele deseja é outro : ele escava o ordinário e ali acha o extraordinário; ele escava o habitual e neste acha o incomum; ele cava em si mesmo e dentro de si ele acha um mundo ainda por descobrir.  Em meio ao barro,  ao húmus, o poeta  acha/inventa o ouro de uma vida da qual nunca cessam os inauguramentos.