sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

o que não vira sucata

“O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata” (Manoel de Barros). Se 2016 está virando sucata, não era ele verdadeiramente o tempo novo. Se 2017 também vai virar sucata, tampouco está nele o novo que desejamos. Mas onde viverá o novo? Sem teorizar ou fazer promessas, a aurora de não importa qual dia nos dá a resposta, sem exigir champanhe ou fogos em troca. 
Uma aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia é novo.
                                          

Erguer-se... como se ergue
a aurora do seio da noite.
Homero, Ilíada.

Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.
                                                                                                                                                                    Manoel de Barros



segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

monumentar passarinhos

Quem canta
ora duas vezes.
(Santo Agostinho)
                                                                                    
São Francisco monumentou os passarinhos.
(Manoel de Barros)

De pés descalços,
ele dançou diante do Papa.
(Deleuze)

Pedras viravam rouxinóis...
(Manoel de Barros)



Monumentar passarinhos

Em meio às ruínas de um templo
nu de  portas, paredes   e teto,
extintas preces se foram sem deixarem eco,
apenas húmus e pó ali tomavam assento.
                                                       
Foi nesse templo ao vento aberto,
chão da chuva e do sol caídos do céu,
foi na ruína do altar deserto
que Francisco viu pousado um rouxinol.

Na madeira da cruz  um ninho ele fizera,
para ali guardar sua cria  inocente.
E a cruz se fez de novo  árvore vivente,
para ser o lar da  vida em primavera.

Então, o rouxinol cantou a Francisco...

Sem precisar de sermão ou palavra,
Francisco ouviu, com o coração,
 a aleluia dos vivos poetizada.

Calçando nos pés as estradas,
pôs como chapéu o firmamento.
Em diferentes seres aprendeu a ler uma diferente página,
do infinito Livro cuja Lei é o encantamento.









domingo, 25 de dezembro de 2016

os "achadouros" do poeta

                                                 (jardim de primavera)



Eu tentei me horizontar às andorinhas.
Manoel de Barros

O plano de imanência é o horizonte absoluto.
Deleuze & Guattari





                                                    OS ACHADOUROS


                                                               Quando o sábio se vê reduzido à necessidade,
mesmo aí ele acha mais ocasiões de ofertar do que de receber,
pois ele possui um tesouro que nunca se esgota:
o de possuir a si mesmo.
Epicuro


No poema Achadouros Manoel de Barros nos fala de uma  senhora, a "negra Pombada, remanescente de escravos do Recife", que  contava aos meninos sobre Corumbá ter “achadouros” , que eram buracos  feitos pelos   holandeses  em seus quintais para esconder suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros , os homens  escavaram  quintais para ver se ali achavam ouro...
O poeta é aquele que busca os achadouros também, mas o tesouro que ele deseja é outro : ele escava o ordinário e ali acha o extraordinário; ele escava o habitual e neste acha o incomum; ele cava em si mesmo e dentro de si ele acha um mundo ainda por descobrir.  Em meio ao barro,  ao húmus, o poeta  acha/inventa o ouro de uma vida da qual nunca cessam os inauguramentos.




sábado, 24 de dezembro de 2016

o que é verdadeiramente novo nunca vira sucata




O que é verdadeiramente novo
nunca vira sucata.
Manoel de Barros



Arrumar a casa.
Limpar a poeira acumulada, para que as cores sufocadas respirem em nova aparição.
Cuidar dos suportes físicos, para que eles sejam a imagem externa da integridade do nosso espírito.
Lustrar os vidros, para que nesta transparência nosso pensamento se possa ver.
Reorganizar as distâncias entre as coisas, para que o espaço não seja um vazio, e para que a presença dos objetos não impeça o deambular de nossa percepção.
Praticar o desapego daquilo cujo tempo passou, para que a luz do dia toque de novo os olhos do nosso desejo: e que este seja como uma aurora a raiar.
Fazer tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina.
Depois de tudo revitalizado, alegrar que sejamos nossa primeira visita.



***   ***


O tempo não é um velho,
mas uma criança:
dentre os seus vários brinquedos,
o sempre  novo é a esperança.






segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

manoel - 100

"Na ponta do meu lápis há apenas nascimento".
Manoel de Barros
(Há exatamente cem anos nascia Manoel de Barros, para nunca mais morrer!)






                     (São Francisco, desenho de Manoel)

sábado, 17 de dezembro de 2016

regeneratio

Dentro do casulo, parece que a lagarta está morta. E, de fato, ela está.Ela não se move, ela está parada: ela é o passado que morre.Para a lagarta, o casulo é um túmulo.Mas algo ali acontece, e para ver esse processo poucos têm os olhos. Pois o que chamamos morte da lagarta, como fim ou término, é apenas o começo do nascer da borboleta. Não é a morte da lagarta que cria o nascer da borboleta. Ao contrário, é o nascer da borboleta que dá à morte da lagarta um outro sentido. O casulo , na verdade, nunca foi um túmulo: ele sempre foi um útero, um escuro ou treva, em razão da metamorfose que produz o que há de nascer.





sábado, 10 de dezembro de 2016

o sabiá com trevas


(trecho de livro a sair )


Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Manoel de Barros

No livro Arranjos para assobio, Manoel de Barros define a si mesmo, e aos poetas feito ele, como um sabiá com trevas. Um "sabiá de terreiro", diz ele, que aprendeu a ciscar a terra. Ele canta, ele voa, mas também sabe, com perseverança espinosista, ciscar a terra. Isso faz do poeta um artesão, um experimentador,  um metafísico - sem deixar de ser poeta.
      O sabiá com trevas é um empírico-delirante, um ser atual repleto de virtualidade, um hoje cheio de amanhãs: singular palavra que expressa  infinitos sentidos. 
      O sabiá-poeta é um corpo terreno, corpo de terreiro,  unido a um espírito celestante, cujo canto a vida celebra. Por intermédio do poeta,  o celeste se torna corpo, enquanto o terreno devém chão para o espírito nômade, andaleço.
O sabiá-poeta cisca na terra seu alimento, sobretudo onde há raízes. Grãos de sol é o que ele come - e se ilumina por dentro.  O sabiá-poeta também se desterritorializa: voa fora da asa. Quando retorna e pousa, seja na terra ou na linguagem, seu canto é o meio de reterritorialização em um território novo, como inauguramentos - de vida e de linguagem.
O terreiro não é só um meio físico, extenso. Ele é ,sobretudo,um meio expressivo: chão  da expressão , matéria de poesia . O terreiro do poeta é uma casa estendida, sem paredes ou teto, com portas de entrada que dão para fora, vez que  suas janelas coincidem com uma visão fontana que amplia o horizonte, celestando-nos.
O poeta é um sabiá com trevas. Ele não maldiz as trevas, tampouco as demoniza. Pelo canto o poeta  inventa um mundo, um cosmos, porém a treva ainda lhe acompanha, como ao recém nascido a placenta. O poeta é um caosmos : síntese de caos e cosmos, uma absurdidez . Sua lucidez  é olho divinatório umbilicado  a um inconsciente cósmico.
Somente sendo sabiá com trevas  o poeta  “vê semente germinar e engole céu”, pois “Ninguém é pai de um poema sem morrer”. Sendo o pai, ele morre, para devir  filho do poema que o inventa outro, “Ninguém”.
Sabiá com trevas, o poeta  traz o seu caos, as trevas,  feito uma  morte que seu canto venceu. Por isso,essa treva não é como a de um túmulo ou caverna, mais parece a treva de um útero , seja o de uma fêmea ou o de um monturo, pois começa na treva todo germinar: de gente, de planta, de bicho, de poema. O poeta é a aurora da noite que ele também é.
    A proximidade junto ao caos-trevas não é tão somente física, ela é também mental. Essa proximidade é um "crivo", uma "distância minimamente próxima do caos", como diz Deleuze. O crivo  não é a luz apolínia do  dia já adulto, o crivo é o momento onde a luz pode mais, embora disso não se gabe, faz: tornando-se a claridade ainda em embrião de uma luz-criança ,como a verdez da alvorada de um dia novo. A proximidade-crivo  é  “antesmente verbal”, embora seja dela que nasce o poético sentido, como  “iluminura”.
O poeta nos diz que sua poesia não nasce de inspirações românticas ou de engenharia com letras. Sua poesia surge de iluminuras. A iluminura é uma canção, mas uma canção do ver. O velho Aristóteles já dizia em sua Poética que música e poesia são artes irmãs: elas são irmanadas pelo ritmo. Os ritmos do poeta-sabiá são ritmos de uma canção que se vê, de uma paisagem que se ouve. A luz da iluminura não é apenas para os olhos; ela também o é para os ouvidos, para o tato, para o olfato , para o gosto - sobretudo para este.
     A iluminura é  a síntese disjuntiva Apolo-Dioniso: a iluminura não é totalmente luz, nem totalmente coisa escura. Iluminura é canto de sabiá, é canto de Orfeu a vencer a treva de todos os  Hades, os de fora e os de dentro, os do passado e os do presente, estes tristemente entrevados. Pois sem o canto do poeta, a treva é apenas treva mesmo: caos sem cosmos - cegueira de horizonte e surdez de canto.
É por isso que poesia talvez seja fazer outro mundo.Não desejar ir para outro mundo , aqui ou alhures;  mas fazer outro, aqui e agora, e sermos outros naquilo que inventamos. O sabiá-poeta é  o outro , a diferença e o  crivo das trevas.


                                                (flautista Antônio Rocha)







quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

evento em homenagem ao centenário de Manoel de Barros


Com Artur Gouvêa e Isabela Barakat, do Duo Musaion, e a jornalista Katy Navarro. Programa Antena Rádio Mec FM - Livraria da Travessa. Programa em homenagem ao centenário de Manoel de Barros.





(fotos : Andreia Luchesi)

Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
(Manoel de Barros)

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

a fonte do (des)saber

                                                 


                                                 A palavra abriu o roupão para mim:
                                                                                          ela quer que eu a seja.                   
                                                                         Manoel de Barros


O maior adivinho da Grécia foi Tirésias, o cego.O maior adivinho da terra da sabedoria era , no entanto, um cego.  Ele assim ficou por ter visto o que nenhum homem pode ver, a não ser pagando um alto preço.Tirésias  viu Atena nua. Ele viu a deusa despida das vestes e das convenções, ele a viu de corpo nu e inteiro, sem os véus e tecidos que a disfarçam.
 Atena é a deusa da Sabedoria. Tirésias viu a Sabedoria nua, sem disfarces, sem obstáculos, sem  coberturas, sem maquiagens. Ele a viu enquanto ela se banhava, pois mesmo a Sabedoria necessita do fluxo para renovar-se,para limpar-se do que já é antigo e se acumula.Ele viu  a Sabedoria diretamente, sem ser por intermédio de livros ou relatos.
Sabe-se que Atena se paramentava toda e se adornava antes de ir à Academia, para ali ser vista  e adorada pelos doutos,que adoravam apenas o brilho e luxo dos panos que a cobriam, e com estes se satisfaziam,vez que ignoravam  que mais riqueza e beleza havia em seu corpo nu. Mas a deusa não se paramentava  por exigência ou gosto dela, mas pelos ritos dos homens acadêmicos.Todavia,  estes nunca a viram como Tirésias a viu: nua, sem fazer poses, sem artifícios.Ele a viu sem ser por intermédio de signos. E nunca a deusa viu tanto amor na fala e discursos dos doutos  quanto viu nos olhos de Tirésias , que a viu nua, sob a “luz natural” do seu corpo .

Então, ela o cegou enquanto ele a via.Mas não por ódio ou punição, tampouco para manter-se em segredo. Ela o cegou  para protegê-lo.Para protegê-lo de si mesmo e dos homens,incluindo os doutos.  Na verdade, ela lhe cegou os olhos de constatar , para que sempre a visse os olhos de descobrir, pois apenas para estes ela se permite aparecer nua, desde que neles também viva a paixão e o desejo . Ele a viu a se banhar em uma fonte, em uma nascente. E esta foi a sabedoria que a deusa lhe concedeu: a de ver sempre nascer e renascer em si uma visão  fontana, uma visão que é fonte do que vê. Quando enfim se despe, é como poesia que a sabedoria se mostra.



quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

homenagem ao poeta na Rádio Mec FM

Manoel de Barros é homenageado com música e bate-papo na Livraria da Travessa

Antena MEC FM recebe convidados na quarta-feira (7) para celebrar o centenário do poeta
Manoel de Barros
Manoel de Barros Secretaria de Cultura do Rio da Janeiro
No mês de dezembro, o #AntenaNaTravessa homenageia os 100 anos do poeta Manoel de Barros. O programa convida o violonista Artur Gouvêa e a cantora Isabela Bakaratpara tocar, ao vivo, na Livraria da Travessa de Botafogo, com repertório inspirado nas obras do autor.

O programa especial será na quarta-feira (07) e conta com a participação de Bianca Ramoneda, escritora e atriz da peça "Inutilezas", montagem baseada no trabalho de Manoel de Barros, e Elton Luiz, professor e autor do livro "Manoel de Barros: A Poética do Deslimite", que apresenta o programa.

O endereço da Livraria da Travessa é Rua Voluntários da Pátria, 97, Botafogo. A entrada é franca. O programa começa às 18h, participe!