sexta-feira, 30 de outubro de 2015

as formas em rascunho








Se  a gente não der o amor,
ele apodrece em nós.

 ***     ***  
   
Os raminhos com que arrumo
as escoras do meu ninho
são mais firmes do que as paredes
dos grandes prédios do mundo.

     ***  ***

O menino sentenciou:
se o Nada desaparecer a poesia acaba.
E se internou na própria casca ao jeito que o
jabuti se interna.

                                                                                                                                              ***         ***            
                                                                               Não sou da informática:
sou da invencionática.

Manoel de Barros

                                                   

Segundo o poeta Manoel de Barros, somos “formas em rascunho”.Somente quem está pronto se assume assim, como “forma em rascunho" de si mesmo. Pronto não como o que está acabado e não muda mais,  mas pronto como aquilo cujo essência é o produzir e o autoproduzir-se,o autoinventar-se.Se o viver é processo, somente como forma em rascunho estaremos na vida não como a pedra está no rio, ficando imóvel enquanto ela, a vida,  passa. Uma longa tradição nos inculcou que todo rascunhar existe em razão de uma  forma pronta : o “Modelo”, e que , este sim, dá a ver o que de fato somos. Inclusive, esta forma pronta precederia ao rascunho, como a árvore ao grão, como o adulto à criança. Mas só como forma em rascunho aprenderemos a não opor mais  a verdade ao erro, o ensinar ao aprender, a forma ao processo, o modelo à invenção.A forma em rascunho refaz seus contornos em razão de uma potência que lhe é imanente, mas que não lhe é um centro, posto que é abertura.Tudo é forma em rascunho para quem aprende a  viver as coisas de dentro, como processo e metamorfose: o amor, a arte, o pensar, o corpo, o desejo, o cosmos inteiro...tudo é forma em rascunho que de dentro se vive e se afirma.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

as zonas de vizinhança



A história relata o que são o negro, a mulher, o índio...A ciência define seus objetos segundo uma identidade objetificada. A escola, a pedagogia e nossa percepção nos mostra o que é uma criança. A história, a ciência e nossa percepção têm um ponto em comum: elas fazem um recorte, para assim terem um objeto, uma identidade.
Mas Deleuze e Guattari dizem que um devir nada tem a ver com a história, com a ciência, com a percepção e seus esquemas de recognição. Primeiramente, um devir não é apenas conhecimento, um devir não existe pronto, ele não é um objeto, de conhecimento ou de percepção. Um devir só existe se for produzido, fabricado, desejado.O que é então um devir?
Primeiramente, não aceitar como dado o negro, a mulher, a criança, o índio.Tais seres fazem parte de e são um fluxo, um processo, que não é apenas histórico ou social.Há nesses seres, como em todos os seres, uma realidade ainda não formada ou conformada, uma realidade molecular. Deleuze e Guattari opõem o molecular ao molar. Molecular vem de molécula. A molécula de hidrogênio se compõe com a de oxigênio  e assim nasce uma realidade visível, perceptível,molar: a água. "Molar", por sua vez, significa "massa". O molecular não possui massa ou extensão, possui apenas intensidade. Toda realidade molecular é múltipla e heterogênea, ao passo que de homogeneidades são feitas as massas.
     O que o senso comum chama de realidade são sempre massas, molaridades.Porém as moléculas possuem também realidade própria, e esta realidade própria não pode ser plenamente conhecida se aplicarmos sobre ela a lógica do mundo molar.Assim, em tudo o que existe molarmente ( mulher, índio, negro...) há uma realidade molecular que não pode ser sentida e conhecida pela lógica das identidades molares.Contudo, somente podemos apreender o molecular que existe em algo se, antes de tudo, fizermos viver o molecular que existe em nós. "Eu" e "tu" são molaridades.Mas molecular é o nós. A molecularidade é uma multiplicidade.Uma multiplicidade é uma heterogeneidade não formada. Tudo o que não é ou não está  formado não se opõe, não é "dialético": ou se compõe ou escapa, foge ( em uma linha de fuga).A realidade molecular é sempre um deslimite. Para apreendê-la, precisamos nos colocar como forma em rascunho, como diria Manoel de Barros.
Devir-negro não é se identificar com a forma histórica ou sociológica do negro, mas descobrir no negro uma molecularidade que também tenho, eu que não sou negro. Descobrimos assim  uma zona que nos torna vizinhos: nossa relação se torna  de vizinhança. Em geral, moro em minha casa, e o vizinho na dele. Mas a zona de vizinhança não é minha casa ou a dele, pois ela é uma zona comum na qual , saindo de nossas casas, afirmamos o aberto como nosso teto e chão. A zona de vizinhança é um espaço exterior à casa, a toda casa, mas une minha casa à do vizinho e nos permite nos encontrar, nós que não temos o mesmo sangue, nós que não temos o mesmo sexo, nós que não temos a mesma religião, nós que não temos a mesma percepção.
Devir-negro, devir-mulher, devir-criança, devir-índio...é achar uma zona de vizinhança que me amplia para fora de minha casa, me faz habitar no mundo, ao mesmo tempo que liberta o negro, a mulher, o índio e  a criança da mera referência histórica ou sociológica. Do ponto de vista da história e da sociologia, os negros e as mulheres , por exemplo, têm suas lutas, suas libertações a serem travadas e conquistadas. Da perspectiva do devir-negro e do devir-mulher, porém, sua libertação também é a do branco e a do homem.E o devir-criança, por sua vez, pode libertar o adulto dos infantilismos de uma criança que não cresceu.
 A zona de vizinhança que constitui o devir-negro não é negro; a zona de vizinhança que constitui o devir-mulher não é mulher.Deleuze afirma que o devir é um rio que é mais veloz no meio e rói suas margens.As margens são os lugares onde prevalecem identidades que se opõem, como as identidades homem-mulher, branco-negro. O devir as rói, e as atrai para seu meio que as faz devir outra coisa. Por isso,  o devir é duplo: ele passa entre o negro e aquele que entra no devir negro. Não é o negro o sujeito do devir, nem a mulher, nem o índio. Sujeito é uma categoria histórica e sociológica, além de psicológica. É o devir que vem primeiro em todo devir. É a mudança que é primeira nas coisas que mudam ou precisam mudar.Negro, mulher...só se tornam livres se lhes anteceder um devir que os impeça de se tornarem padrões, modelos.Contudo, o devir não é um padrão ou modelo, mas o desfazer o lugar do modelo e do padrão, enfim, o lugar do poder, que é sempre um lugar ressentido, raivoso, triste...
Todo devir nasce de um agenciamento, de um encontro, de uma conexão entre seres diferentes, e que inventam uma zona de vizinhança que amplia ambos. Uma coisa são as lutas privadas que travo em minha casa, outra é a luta pela vizinhança, pelas questões de vizinhança. Eu sou uma casa, o outro é uma casa, mas o devir-outro é uma zona de vizinhança que passa entre eu e o outro, que faz de mim outro que eu, e faz do outro outro que ele: e o que nos tornamos não sabemos antes de nos tornar. Criamos uma realidade, uma realidade nova, para a qual não existia, antes de ela ser criada, a sua ideia pronta.
     O importante em todo devir não são os termos propriamente, mas o hífen. Este une, conquanto  separa. O hífen é o lugar de um crivo, de uma distância mínima onde vive e acontece o afeto.É por isso que o devir nunca é uma fusão homogênea que apaga as diferenças.O hífen expressa um terceiro indivíduo que, ao mesmo tempo, nasce dos dois termos que se encontram, mas que também  produz o devir em ambos, abrindo-os, potencializando-os.
       Nisto, como em  outras coisas, temos ainda muito o que aprender com os nômades:os espaços de vizinhança antecedem as casas, e quanto mais potentes são as zonas de vizinhança, menos muros precisam ter as casas.



domingo, 25 de outubro de 2015

vênus em conjunção com a lua



O galo canta porque ele pressente,
ainda em meio à noite,
a manhã chegando.

Não seria esta a essência de todo cantar:
anunciar , na manhã que vem,
todas as manhãs que ainda vão chegar?

Sempre haverá uma manhã por vir,
por mais longa que seja a noite.
Disso sabe quem canta.







Com a mão direita segurando o passado,
para que não fuja,
e com a mão esquerda estendida ao futuro,
para que me puxe,
abro  meu coração para que entre  nele o agora.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

os mestres-intercessores






Qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos: repetir  o que eles disseram , ou fazer o que ele fizeram,isto é, criar conceitos para problemas que mudam  necessariamente?
                                                   Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?


                                               ***

              Falar ou escrever sobre Cláudio Ulpiano nos põe, como diria Manoel de Barros, em “estado de rascunho”: um  “afloramento de falas” vem ocupar nossa voz.Somente como rascunho, anexatos, podemos conquistar alguma consistência, mas sem perder o infinito. Abordar Cláudio só o podemos deixando nascer em nós um sujeito coletivo de enunciação: poli-fonia - múltiplas vozes, heterogenia de expressão. Isto porque Cláudio Ulpiano assinou seu nome para expressar singularidades e acontecimentos dos quais ele foi e é o criador. O nome de Cláudio é a assinatura através da qual vemos paisagens, personagens, acontecimentos, afetos, experimentações, devires, beleza, sujeitos larvares, mundos por criar que nascem da terra incognita da filosofia.
             Em Cláudio, a filosofia estava tão íntima à vida que é  nesta, e não em livros, que suas lições foram escritas. É em minha vida que o leio, e na vida de muitos. É no mais íntimo, no íntimo exterior, que vou buscar o que dele aprendi e aprendo.


                                                                   ***


 Segundo Deleuze, o intercessor é “aquele que intercede a nosso favor”. O intercessor é aquele que intercede. Inter: ele se coloca “entre”. Todo espaço de travessia é um espaço “entre”: espaço de processos.
O intercessor se coloca diante de e   a favor. Não a favor de si próprio, mas a favor daquele que o tem como intercessor. Somos nós que nos damos intercessores, mas é preciso que o intercessor seja diferente de nós mesmos. Do contrário, seríamos nós mesmos intercedendo a nosso favor.O intercessor nos "desabre", como dizia Manoel de Barros. Quando nos damos um intercessor, o intercessor intercede a nosso favor e nos faz alcançar realidades que não alcançaríamos sozinhos.O intercessor nos tira do estar sozinho, mesmo que não exista ninguém à nossa volta. Não existe um tipo de ser portando uma etiqueta e dizendo: “eu sou seu intercessor”. Qualquer coisa pode ser um intercessor, desde que interceda a nosso favor, em favor sobretudo daquilo que em nós crê e cria um intercessor. Um poeta pode ser nosso intercessor. Ele intercede a nosso favor pondo-se diante de nós e diante, também, da realidade que alcançamos através dele.Um intercessor nunca se põe de costas , à frente ou atrás, mas sempre diante: diante de nós e diante do que não conhecemos, mas que, através dele, nos pomos diante, com os olhos abertos, despertos.
Dona Nadir, querida Professora Nadir lá do antigo segundo grau, minha primeira intercessora a quem tudo devo, como gostaria que essas palavras de gratidão a encontrassem.


                                                           ***

"A maior perfeição que podemos alcançar para nós mesmos é servir
de instrumento para que os outros possam conquistar a perfeição deles próprios". 
                                                                                         Espinosa


 Dos quatorze anos aos dezesseis fiz capoeira. Passados já trinta anos desse fato, vejo hoje que aquelas aulas de capoeira foram , na verdade,minhas primeiras lições de filosofia, pois meu professor de capoeira era um verdadeiro Mestre. Seu nome: Joãozinho. Nós o chamávamos de Mestre Joãozinho. Ele era um homem simples, negro, do povo. Para sobreviver, ele trabalhava em uma feira ( e a maioria de nós não podia pagar pelas aulas de capoeira). Ele falava pouco, mas como nos dizia nesse pouco! Aprender capoeira com ele era uma verdadeira iniciação em um tipo de vida que não aceitava a covardia, a ostentação, a vaidade e a soberba. Muitas vezes ele nos dizia: “Se eu souber que algum de vocês usou o poder que lhes ensino para se vangloriar em disputas ou buscar fama em brigas , ou simplesmente para aparecer , esse que agir assim não será mais digno de continuar aprendendo como ser guerreiro”.
Ele observava muito como procedíamos, e parecia formar um conhecimento de cada um de nós a partir da observação do que fazíamos, e não do que dizíamos. Por exemplo, havia duas formas de lutarmos a capoeira entre nós. A primeira delas era simplesmente uma brincadeira quase . Geralmente, quando observamos grupos de capoeira se exibindo para um público mais amplo, é a essa forma de luta dançada que assistimos. A segunda forma de luta, porém, parecia de fato algo mais sério. À primeira vista, parecia uma luta de verdade para vencer o outro. Muitos interpretavam dessa forma, e chegavam a golpear duramente seu parceiro de disputa. Várias vezes eu observava o rosto do Mestre Joãozinho durante essas lutas mais sérias.Via-o reprovar silenciosamente quem duramente golpeava mais, e aparentava sair-se vitorioso.
Confesso que eu não apreciava muito essas lutas mais sérias, mas não fugia delas. Elas nos provavam de muitas formas ( e isso tudo eu aprendi depois, embora fosse um conhecimento que nunca era dado diretamente pelo Mestre Joãozinho). Primeiramente, era preciso procurar como parceiro de luta alguém que fosse um “igual”, ou seja, alguém que tivesse um poder assemelhado ao nosso. E isso exigia de nós uma constante e renovada observação das capacidades dos outros, de seus avanços e virtudes, mas também de seus pontos fracos. E era a partir das virtudes e pontos fracos dos outros que nós devíamos fazer uma idéia das nossas próprias virtudes e fraquezas. Superando um igual, superaríamos a nós mesmos. Porém, quem escolhia lutar com um mais fraco , nada mais do que fraqueza estaria demonstrando. E quem, ao contrário, buscasse medir-se com um mais forte, estaria dando provas de que era um pretensioso. Por isso, nada mais difícil do que saber tratar um diferente como igual ; e nada mais fácil do que , àquele que desconhece seu poder, subestimar um superior ou destratar um inferior.Isso tudo fazia parte do aprendizado de como se conduzir na observação de nós mesmos diante daqueles que são mais capazes do que nós, por já estarem em um nível superior, ou daqueles que nos são inferiores (por ainda não terem alcançado o mesmo patamar onde estávamos). Mas para distinguir estes daqueles era preciso, antes, sabermos em que patamar estávamos, e isso não se fazia apenas com o conhecimento de nossas virtudes. Fazia-se necessário saber também nossas fraquezas. E isso nós aprendíamos muitas vezes ao preço de derrotas.
Mas um dos últimos aprendizados que tive, e dos mais importantes, tinha como suporte o rosto de desaprovação do Mestre Joãozinho diante daqueles que, nas lutas mais sérias, golpeavam o adversário e , aparentemente, venciam a luta. Certo dia, então, tomei coragem e perguntei diretamente ao Mestre Joãozinho o motivo daquela desaprovação. Parecendo esperar que alguém lhe perguntasse isso , embora ele cuidasse para que seu rosto não fosse enfático nas expressões de reprovação ( na verdade, ele sempre esperava que nós soubéssemos perceber as sutilezas...), o Mestre me disse mais ou menos as seguintes palavras: “ A essência da luta é demonstrar poder. Mas o verdadeiro poder não está em vencer o outro com um golpe violento, e sim mostrar ao outro que poderíamos vencê-lo se quiséssemos, mas que disso não precisamos para afirmar nosso poder. A vitória não consiste em vencer o outro, mas a nós mesmos. A luta de brincadeira nos prepara para essa luta séria. Mas essa luta séria tem como objetivo nos preparar para as lutas da vida”.
Estas foram umas das últimas palavras que ouvi do Mestre Joãozinho. Para tristeza de todos nós, ele foi morto com um tiro nas costas ( só mesmo dessa forma se poderia derrubá-lo...) , quando saía à noite do trabalho . Até hoje não se sabe quem foi o covarde que o golpeou assim.


                                                           ***

Hoje me veio à boca uma palavra que há muito eu não dizia. Andam me faltando as oportunidades para dizê-la, embora também fossem raras as oportunidades para dizê-la na época em que eu , como aluno, a dizia - pois a disse a poucos, pouquíssimos. Eu mesmo, não sei se merecendo, já fui designado recentemente por essa palavra, pois hoje sou professor. Embora seja honroso ser por esse nome chamado, nada se iguala a poder ter alguém a quem chamar por esse nome, que será sempre o professor do professor, fazendo-nos não esquecer que o aprender precede todo ensinar.
Hoje, como dizia, eu caminhava pela rua quando vi, vindo na minha direção, um senhor de cabelos muito brancos, como neve a adornar altos picos. Aliás, creio que apenas em homens elevados, e que auxiliam os outros a se elevarem, deveria nascer tal cobertura branca. Não obstante sua vida muito vivida, tal senhor se mostrava altivo, e seu olhar parecia estar lá naquele lugar que somente o espírito desperto alcança, e onde sempre há coisas novas para ver , descobrir e colher. Quando ele estava bem perto, pude enfim dirigir-me a ele, dizendo a tal palavra que há muito eu não dizia: “Mestre!”. Quando a dizemos a quem a merece, nada há de submissão em seu sentido. Ao contrário, merece esse nome quem ajuda a despertar , como dizia Espinosa, no olho de cada um o olhar que lhe é próprio, olhar este que nos ajuda a ver para além de nós mesmos.
Então, o Mestre me viu, reconheceu-me e sorriu. Estendeu-me a mão, encontrando a minha que já estava em sua direção. Trocamos poucas palavras. Mas nem precisavam muitas. Ele se foi, e segui meu caminho tendo agora a companhia de suas lições que ainda estavam em mim como se eu as tivesse escutado ontem, embora eu as tenha ouvido há mais de vinte anos, pois quanto mais o tempo passa mais se aviva em nós o que tem valor e mereceu ser aprendido .
Pensei comigo: “será que ele sabe o quanto suas aulas foram importantes para mim?”.
O nome do Mestre: Luiz Alfredo Garcia-Roza.







domingo, 11 de outubro de 2015

flor do abacate (2)

 A própria mente,
supondo que
abrange, analisa
e compreende todas as coisas,
conclui
que está em tudo
e tudo está nela.
Nicolau de Cusa 

Segundo afirma o filósofo Leibniz, se pegarmos uma simples semente, a de um abacateiro por exemplo, se a pegarmos e  plantarmos, dela nascerá uma árvore:um abacateiro.E do abacateiro brotarão incontáveis frutos, e dentro de cada um haverá uma semente.Se plantarmos as sementes assim nascidas, delas nascerão outros abacateiros, e em cada um deles florescerão incontáveis frutos.E em cada fruto uma nova semente.Se plantarmos cada uma, novos abacateiros nascerão e em cada um deles novos frutos com novas sementes...
Na simples semente está contida uma floresta inteira, o finito é o casulo que prende o bater de asas do infinito.A forma ou limite é a semente, mas potência é a floresta.Quem tem forma é a semente, não o infinito que está no coração dela.
Dentro de cada semente não está a floresta com suas árvores já prontas e individuadas, pois a floresta que existe dentro da semente é uma floresta em rascunho, uma floresta-embrião ;uma floresta enquanto potência de expansão e diferenciação. No interior da semente não está uma floresta com duas, mil ou um bilhão de árvores.Essa virtual floresta existe não como quantidade, mas como intensidade de uma vida que nasce de si mesma, e que o faz se afirmando. Além disso, a semente enquanto indivíduo isolado é uma abstração que não existe.Pois a simples semente que temos nas  mãos somente existe porque ela permanece ligada à potência que mora dentro dela: é esta potência que é sua razão de ser e essência, e não o inverso.
Na simples alma de uma criança está a alma da humanidade inteira, na simples palavra está o sentido que nem mesmo um bilhão de palavras podem dizer, mesmo que que fossem ditas juntas.No simples dia, para quem sabe viver, está a eternidade inteira: carpe diem...
Mas para que a floresta nasça é preciso que a semente seja plantada, cultivada, cuidada.
E feliz se torna a semente que descobre em si essa floresta, uma floresta que não cabe nela, e que a põe em estado de rascunho, de anexatidão, de deslimite, enfim, em estado de poesia.É preciso ver não apenas a floresta que está em cada semente, mas também as sementes que nascem dos frutos da floresta, de tal modo que nunca deixarão de nascer sementes enquanto das sementes nascerem florestas.
Para Espinosa, a mente singular é como essa semente:mais potência de compreensão ela obterá quanto mais ela deixar nascer a floresta que está na imanência dela. De tal maneira que o nascimento da floresta não significará em  morte da semente, mas na sua maior potência de vida, de ampliação de sua vida.Ela poderá ser reconhecida pela sua generosidade, pela sua simplicidade e pela sua capacidade de renascer no fruto que nasceu da árvore que se tornou uma potencialização sua, e não sua morte.









Frida Kahlo - Moisés ( ou  O núcleo da criação) // 1945.




sábado, 10 de outubro de 2015

aurora...aurora...

Erguer-se... como se ergue
a aurora do seio da noite”.
Homero, Ilíada.


Assim como a membrana
rodeia  e protege o núcleo da vida,
e o núcleo da vida é o nascer
que antecede a criança,
a aurora rodeia e protege
o novo dia,
e sua luz sem tremer aos vivos chama:
"levanta!"














segunda-feira, 5 de outubro de 2015

manoel de barros: a poesia como afloramento de falas




(trecho do livro)
Quanto às funções da poesia...Creio que a principal é a de promover o arejamento das palavras, inventando para elas novos relacionamentos, para que os idiomas não morram a morte por fórmulas, por lugares comuns. Os governos mais sábios deveriam contratar os poetas para esse trabalho de restituir a virgindade a certas palavras ou expressões, que estão morrendo cariadas, corroídas pelo uso em clichês. Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose. Além disso, a poesia tem a função de pregar a prática da inocência entre os homens.
Manoel de Barros, “Sobreviver pela palavra”).

             Essa “terapia” da linguagem e dos homens constitui a essência dessa poética que se abre a uma experiência singular, onde o chão “pode divinar” e nos restituir a eucaristia com os seres que, “vestindo o poeta” , fazem da poesia um “afloramento de falas” : falas da vida, falas da infância, falas dos excluídos, falas do inconsciente, falas do corpo, falas daqueles que não têm falas...enfim, falas de nós mesmos que muito nos custa calar.
         Assim, essa “didática da invenção” e do estilo, construindo uma “Imagem” singular para a vida,  “empoemando” as palavras para assim nos ensinar a “empoemar” a nós mesmos, nos diz que é preciso
A prática do desnecessário e da cambalhota , desenvolvendo em cada um de nós o sentido do lúdico. Se a poesia desaparecesse do mundo, os homens se transformariam em monstros,máquinas, robôs.
           Se a poesia desaparecesse do mundo, adoeceríamos de uma fala puramente egóica ou massificada, uma fala-clichê sem “florescimentos”: uma fala refém das significações e representações que, no presente, prostituem e estupram as palavras.
        Se a poesia desaparecesse do mundo, restaria apenas uma fala que tão somente reproduziria, como “boa-cópia”, aquilo que o poder, estabelecendo seus limites (semânticos, políticos, midiáticos, mercadológicos, existenciais...), permite falar e ser.
         A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica,consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto no final da frase. 
Manoel de Barros “O menino que carregava água na peneira”)

domingo, 4 de outubro de 2015

geometria do deslimite (2)

A relação de nosso intelecto com a verdade
é como a do polígono com o círculo:
a semelhança com o círculo
aumenta com a multiplicação
dos ângulos do polígono.
Mas a não ser que se transforme em círculo,
nenhuma multiplicação de seus ângulos,
mesmo que infinita,
fará com que o polígono
iguale o círculo.

Nicolau de Cusa

  
         Quanto mais lados um polígono possui, mais próximo ele está do círculo. Um triângulo possui três lados, o quadrado possui quatro. O quadrado está mais próximo do círculo do que o triângulo. O hexágono está mais próximo do círculo do que o quadrado. O hectágono, polígono que tem cem lados, está mais próximo do círculo do que o hexágono. O megágono, polígono de um milhão de lados, encontra-se mais próximo do círculo do que o hectágono.Um bilhão de lados possui o gigágono,  e isto o faz estar mais próximo do círculo ainda.  Mas acima do gigágono existem ainda outros incontáveis polígonos com mais lados ainda, todos se superando em estar mais próximo do círculo.



       Um círculo, porém, não possui um trilhão ou um quatrilhão de lados, pois ele simplesmente não possui lados.Por isso, a única maneira de um polígono alcançar o círculo  é se tornando um, é coincidindo com ele.Um polígono somente pode alcançar o círculo se libertando do afã de ampliar seus limites, pois é isto o que acontece quando ele aumenta seus lados.Coincidir com o círculo é um deslimite, diria Manoel de Barros.
Comparado com um polígono que tem menos lados, o polígono de mais lados parece que está mais perto do circulo.Mas comparados com o próprio círculo, todos os polígonos lhe estão a igual distância, dado que o círculo é incomparável.



       Como o círculo  não possui lados, ele está além ou aquém da lógica dos lados e das quantidades. O círculo não tem lados em excesso, tampouco lhe faltam lados.
 A inteligência é como o polígono: ela tenta alcançar a Vida aumentando as teorias, tal como o polígono que aumenta seus lados achando que assim alcançará o círculo.Física, química, biologia, matemática, sociologia, psicologia, etc., são os lados do polígono-inteligência. Contudo,  mesmo que se aumente indefinidamente a quantidade cumulativa de tais ciências, nunca elas alcançam o todo da Vida, pois este todo é um processo, um devir. Diferentemente da inteligência, o pensamento é como o círculo:sua riqueza e multiplicidade não advém do aumento de teorias.
O pensamento coincide com a Vida.Ele já está nela, e ela já está nele, em sua imanência.No círculo  absoluto da Vida , o pensamento , a poesia e a vida são a mesma coisa: produção, poiésis.
O círculo da Vida, porém, não tem centro ou perímetro determinados. Ele é um círculo cujo centro está em toda parte e cujo perímetro não está em parte alguma.
Todos os polígonos estão no círculo, ele que não é teoria, mas ideia  ̶ ideia que também é Afeto.
Olhado apenas nele mesmo ( como Natura Naturante, diria Espinosa), o círculo é a coisa mais simples que existe. Mas quando intuímos todos os  polígonos que estão compreendidos nele, o círculo nos aparece então como a coisa mais complexa que existe, pois é a mais variada, múltipla, rica, mas sem deixar de ser simples.Todos os polígonos estão no círculo, sem que isto o aumente ou exceda.
Não é aumentando ou diminuindo os lados que um polígono pode coincidir com o círculo.Não é aumentando a inteligência que se alcança a sabedoria, não é contando todas as estrelas que existem no universo que se compreende intuitivamente o que é o céu.Não é meramente aumentando o número de ações que fazemos que nos tornamos ativos, não é proliferando o número de palavras que dizemos que aprendemos a ter o que dizer. Mesmo que tivéssemos um trilhão de dias para viver isto não significaria que , somando esses dias, chegaríamos a viver a eternidade, pois esta somente a podemos viver se coincidirmos com ela.
Um polígono apenas  pode coincidir com um círculo na medida em que se liberte do aumentar e do diminuir, isto é, quando não está mais refém da comparação quantitativa. Não é aumentando os lados que o polígono aumenta sua potência. O círculo é a figura de maior potência, exatamente porque esta não aumenta ou diminui, mas é plenamente, afirmativamente.





            








sábado, 3 de outubro de 2015

uma nova consulta ( gratuita) com o Drº Espinosa ( Clínico Geral)



Platão: "Pensar é aprender com  a morte."
Nietzsche: "Pensar é aprender com a  vida."
Espinosa: "Pensar é aprender com o eterno."

O pensamento é como um ímã:
se ele pensa o mal, o atrai;
se ele pensa o bem, o atrai.
Tales de Mileto

1-Ninguém pode dizer: “Nunca mais vou ficar gripado em minha vida!”.Pois dizer isso seria como imaginar poder fazer desaparecer, com simples palavras, os vírus e seus transmissores. Além disso,  nosso corpo é uma parte do mundo : ele possui incontáveis portas e janelas por onde  infinitas coisas entram e, por isso, ele está sujeito a   ações de seres exteriores que existem independentemente da nossa vontade.
Porém, o que está ao meu alcance é agir de tal forma que a gripe, ou o vírus que a propaga, não conte com minha ajuda para que aquilo que me enfraquece se instale em mim.A única maneira de evitar a gripe é agindo, e não meramente falando ou imaginando. Quanto mais eu agir, e pensar, mais a gripe não me pegará. Agir por amor à saúde, e não por ódio ou medo da doença.Agir em favor da saúde do meu corpo também é agir em favor da saúde do corpo social, bem como de minha mente e da mente coletiva, social.
Além disso, o que chamamos de gripe é tão somente a busca do vírus pela sua própria saúde, isto é, por fortalecer sua existência. Se olharmos as coisas de uma perspectiva não pessoal, não existe doença, existe apenas saúde, vida.E se o vírus nos provoca a doença, não é por ódio ou raiva de nós, mas por amor ao modo de ser dele, modo de ser este que ele sempre afirmará com o máximo de potência que ele tiver .
Como afirmar então nosso amor à nossa maneira de ser? Compreendendo que nosso corpo faz encontros com outros corpos, e que alguns desses corpos podem destruir o nosso, não por ódio, mas por querer afirmar a si próprio. Então, devemos compreender como o vírus age, como é seu modo de ser, e disto apenas nos tornamos capazes  quando adquirimos amor pelo conhecer, pois é ele que nos faz compreender como vive o vírus. O conhecer é a saúde da alma. Ao contrário, se imaginarmos que o vírus age por ódio ou como um enviado do “demônio”, jamais compreenderemos como vencê-lo, já que nós mesmos não teremos amor ao conhecimento: teremos na alma apenas ódio ao vírus e ao próprio conhecimento que poderia nos libertar ( nos libertar não apenas da doença que o vírus traz, como também da própria doença da ignorância).
O que vale para a gripe também se aplica aos sentimentos. Ninguém pode dizer: “Jamais sentirei ciúmes, ódio ou inveja!”. Imaginar isso seria como crer que não temos corpo, e ignorar também que este sofre a ação de outros corpos .Pior: imaginar isso seria crer que tais sentimentos existem em nós porque somos fracos, irrecuperáveis...(o que faz a alegria da indústria farmacológica ,bem como enriquece pastores espertalhões...).
Esses sentimentos podem existir em nós pelas mesmas causas que fazem existir a doença na natureza. E uma dessas causas é nossa imaginação, já que a compreensão nos mostra que, de um ponto de vista maior, não existe doença, apenas saúde.Para vencermos a tirania daqueles sentimentos, somente compreendendo como eles nascem.
Então, assim como é impossível não ficarmos gripados, é igualmente impossível não termos aqueles sentimentos. Mas assim como podemos, pela ação, evitar ficarmos gripados, também podemos evitar termos ciúmes, inveja, etc ( não, claro, isolando-se, mas pensando os encontros que fazemos, a começar pelo encontro consigo mesmo). Antes de tudo, compreendendo que o ser que nos provoca tais tristezas não o faz sozinho: nós também somos, reativamente, causa, causa parcial, daqueles sentimentos que nos enfraquecem.
Assim como só existe a saúde, apenas existe o amor. O ódio é uma gripe que apenas conseguiremos vencer se agirmos de acordo com o amor. Mas a coisa certamente não é tão fácil, pois uma simples gripe pode crescer e matar, assim como o cotidiano ódio que supomos inofensivo. 

"cambaleando...quase cai-não-cai..." ( Cartola)




2-O especialista é aquele que conhece determinada espécie. Na natureza, dizem os biólogos,  existe a “espécie Homem”, a “espécie Cão”, a “espécie Tigre”, etc.
O especialista vive em briga com o generalista. Este discursa sobre  coisas mais amplas do que a espécie: ele fala dos gêneros. Ele não fala do Homem ou do Tigre, mas do gênero Animal; ele não discorre sobre a “espécie margarida” ou sobre a “espécie petúnia”, e sim sobre o gênero flor.
O especialista acusa o generalista de não ser rigoroso; já o generalista boceja do formalismo do especialista, que acaba sendo sempre um discurso para poucos.Na filosofia, o discurso do especialista é sempre o mesmo: formal - não importando se o filósofo do qual se é especialista é Kant ou Nietzsche, Platão ou Marx. Nunca  vemos os especialistas tão felizes do que quando se encontram nos Congressos de Especialistas.
Pela sua própria maneira de ser, o especialista é um formalizador. De toda a vida que há em um pensador, ele retém apenas a forma. Ele busca as constâncias , as identidades, as lógicas.
Mas o que torna um ser singular não é o que o especifica ou o que o generaliza. Encontrar a singularidade de um pensador não é encontrar o que ele tem de específico. Achar a singularidade de um pensador não é generalizá-lo, como se ele tivesse um pouco de todos, e todos tivessem um pouco dele. Assim, só se pode encontrar a singularidade de um pensador não se sendo especialista, tampouco generalista.
A singularidade de um pensador é inespecificável, não generalizável. Sua singularidade é o que faz único: nem algo  específico, nem algo  genérico. Não são os botânicos que lidam com a singularidade das flores, mas os jardineiros. Não são os biólogos que se afetam com a singularidade dos leões ou lobos, mas os que aprendem a caçar com eles. Não é o especialista em pássaros canoros quem melhor entende o que pode o canto de um passarinho, mas o poeta que o transforma em versos, o músico que o metamorfoseia em música ou a criança que, assobiando, inventa para si um ritornelo.
Como ensina Espinosa, em cada ser singular da natureza ela , a Natureza,está inteira. Cada coisa singular é uma maneira de ser de um ser que se expressa de infinitas maneiras. Cada coisa singular é uma expressão do todo, e o todo não  é uma espécie ou um gênero. Do todo não se pode ser generalista ou especialista, do todo só se pode ser uma maneira de ser, uma maneira de ser singular ( espécie e gênero não são maneiras de ser, eles pretendem ser o “Ser” da melhor maneira).
O conhecimento de cada coisa somente se torna vivo se o compreendermos como parte de um todo não específico, não genérico. Um todo que é sem fronteiras, sem limites. Esse todo é um horizonte: uma abertura infinita, não uma altura ascensional ou uma profundidade abissal.
Tanto as espécies quanto os gêneros são coisas já prontas, e deles tratam os livros.Mas nunca está pronto o singular:pois está incluída no singular sua capacidade de afetar e ser afetado.Por isso,  nunca  podemos apreendê-lo apenas como objeto teórico, sobretudo quando se trata do singular que somos.
Não importa se um filósofo, uma flor, um bicho, um objeto exposto, um quadro, uma música...Se os olharmos com olhos apenas teóricos, procuraremos encontrar apenas de qual espécie ou gênero eles são um tipo. Mas se os compreendermos segundo suas capacidades de afetar e ser afetado, os compreenderemos segundo as relações, conexões e agenciamentos  que eles fazem, a começar pela relação com a gente mesmo e com o todo do qual somos partes.São as conexões e relações que tornam um ser único, são as relações o que singulariza. Nenhuma relação singulariza tanto quanto a relação com o infinito.É essa a relação primeira: a fazemos , antes de tudo,  ao nos relacionarmos com a gente mesmo enquanto maneira de ser do infinito, e do qual todas as outras relações dependem.
Um psicólogo lhe perguntaria: "Como você se relaciona com a sociedade?"; um psicanalista talvez lhe indagasse: "Como você se relaciona com seus pais?"; um médico especialista talvez lhe inquirisse ainda: "Como você se relaciona com a comida, com a bebida?"...O Doutor Espinosa apenas  faz uma pergunta, da qual dependem todas as outras inumeráveis perguntas ( específicas ou genéricas) que podem ser  feitas quando se quer conhecer uma pessoa: "Como você se relaciona com o infinito?"




3.Segundo o Doutor Espinosa,são cinco os afetos básicos: o amor, o ódio, a alegria, a tristeza e o desejo. Por que um número impar ? Porque é impar o afeto, ele é singular.Entre os afetos, nada mais ímpar, singular, do que o desejo.
O ódio é o contrário do amor; a tristeza é o contrário da alegria.Mas o que é o contrário do desejo?O desejo não tem contrário: não existe não desejo. O contrário do desejo é , na verdade, a sua diminuição,A tristeza e o ódio diminuem o desejo; a alegria e o amor o aumentam. Se a essência mesma do homem é o desejo, isso significa que, do ponto de vista da essência, há apenas desejo. A diminuição do desejo, ou o seu aumento, constituem a existência do homem. Cabe aqui uma observação. O amor é a passagem a uma perfeição maior acompanhada da ideia de uma causa externa. O amor é aumento do desejo.Mas este desejo que aumenta depende de algo externo para aumentar. Quando nos tornamos plenamente ativos, porém, conquistamos a plena posse do desejo, que é a plena posse de nós mesmos: então compreendemos que aquele aumentar da existência que dependia de algo externo na verdade ainda era passividade , ainda que alegre. Estar na plena posse de si mesmo não é como estar na posse de uma coisa externa. A posse  de si mesmo se assemelha à posse do pintor em relação às tintas, à posse do músico em relação aos sons, a posse do poeta em relação às Musas...É uma posse de um meio que expressão.
Enquanto não alcançamos essa posse, dependemos ainda de coisas externas que a favoreçam, que a auxiliem.O amor é um desses auxílios. Embora passivos, na dependência dele, essa dependência não nos escraviza, assim como a dependência do aluno em relação ao professor visa a tornar aquele, aos poucos, independente deste. A passividade somente é positiva quando decresce. E o que chamamos de alegria aumentando é uma passividade diminuindo. Do ponto de vista da atividade, porém, a alegria ativa, a que nasce da posse de nós mesmos,  é potência sendo exercida , sem haver mais passividade diminuindo, pois não há mais passividade ou impotência.


quinta-feira, 1 de outubro de 2015

manoel de barros:: a origem que renova







                                                                                                        Quem se aproxima da origem se renova.

***   ***  

O que não aprendeu ainda a renunciar ao desejo de informar,
ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar.
Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva.
Poeta não precisa de informar sobre o mundo.
Poeta precisa de inventar outro mundo.

***   ***      

Palavra séria, para mim,
é aquela   que convida as outras 
para brincar de poesia.

Manoel de Barros

Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz ter visto, quando criança, dois homens "escovando osso" ( o nome do poema é exatamente "Escova").Isso o afetou singularmente. Tempos depois, ele soube o nome do  que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam "arqueologia", eles eram "arqueólogos". "No começo achei que aqueles homens, afirma o poeta, não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra  o dia inteiro escovando osso.Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos . E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor".Desse aprendizado ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante , só que com as palavras. Ele aprendeu a "escovar" as palavras.
Os arqueólogos escovam o osso , algo aparentemente inerte e morto, para nele fazer viver a "arqué". "Arque-ologia" procede de "arqué". "Arquivo" também procede. "Arqué" tem por sentido "princípio", "causa" ,"fonte", "origem" ou "começo".Só arquivamos( em armários, gavetas , museus ou em nossa própria memória) aquilo que julgamos ter alguma relação com nossa existência, seja como causa , fonte ou origem.Em nossa memória não está apenas o passado, está também o que dá sentido ao presente.Em A Arqueologia do Saber, Foucault mostra que o saber é prática de construção de "arquivos" que co-existem sem se sucederem em progressão.No exemplo de Manoel de Barros, os arqueólogos descobriam que havia, naquele osso, algo arquivado: arquivado não como um papel em uma gaveta, já que , nesse caso, o que está arquivado é o próprio osso como arquivo, como signo, como sentido. O tempo estava arquivado nele, e ele, o osso, estava arquivado no tempo. E este tempo não é o passado no qual aquele osso foi esqueleto, já que se trata também do tempo no qual ele é descoberto como arquivo.Um osso não é apenas um osso, quando nele descobrimos um arquivo.Outrora ele fazia parte de um esqueleto escondido sob pele e músculo.Hoje, como arquivo, percebe-se que ele faz parte do universo inteiro, e sobre este ensina.O osso vira um documento: docere, aquilo que ensina.
O poeta escova a palavra, e a faz nos ensinar coisas que a mera informação utilitária não ensina. O poeta escova a palavra para nela fazer nascer sua alma: o sentido. Escovada, tornada arquivo, ela não designa apenas o referente que o uso consagra, pois ela passa a expressar também a origem que a inventou, e essa origem não está fora, mas lhe é imanente como ato de invenção.Esta é a fonte do sentido: a invenção. Ao escovar a palavra, não importa qual, o poeta acha a poesia, tal como o arqueólogo acha no osso o mundo no qual ele era uma parte, e  hoje esse mundo é parte dele, como mundo a descobrir. A palavra se torna mais do que palavra quando o poeta a escova, para nela fazer viver uma memória.
Nietzsche dizia que sempre nos esquecemos que nunca vivemos o que agora vivemos. Ele evoca então  uma memória singularíssima: uma memória que deveria nos lembrar que nunca vivemos o que agora vivemos; uma memória não do passado ou do que se viveu, mas uma memória do novo, do que nunca se viveu. Pois é disso que a gente se esquece: do novo. Nesse sentido, a percepção utilitária, aquela que busca sempre o "já visto" em todo ver, tal percepção também precisa ser escovada, para que assim de fato possamos deixar nascer em nós a memória daquilo que a todo tempo nasce,  e que somente pode ser visto por  uma "visão fontana" , uma visão que também é fonte do que vê.Quando olha para uma árvore, nela somente vendo o útil, o lenhador vê o possível móvel ou as folhas de papel que guiam sua percepção interessada, que se torna cega de uma cegueira ignorada. Ele não vê a árvore, muito menos a poesia que a faz e fez. Ele não vê a "arqué", ele não vê que ali há uma fonte.Em um museu, um objeto exposto deveria expressar essa poesia que faz o  objeto ser mais do que um objeto, tal como o escovar a palavra a faz ser mais do que mera informação utilitária que amanhã já será sucata, feito as informações  do jornal de ontem. O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata, o verdadeiro novo nunca vira ontem.O novo é sempre fonte:arqué.A fonte é a "origem que renova".A fonte não é como um ponto de onde um fluxo jorra, pois este fluxo que a atravessa vem de um infinito com o qual ela permanece ligada. Pois é isto ser uma fonte: nos ligar a um infinito que nenhuma metragem utilitária pode diminuir. A fonte é o que nos liga e amplia.
"Poesia": poiésis, produção. Assim, o escovar é prática de cuidado também. Mais importante do que o "conhece-te a ti mesmo" é o "cuida de ti mesmo". Em latim, "caute" é a palavra que Espinosa imprimiu em seu anel. De caute provém cuidado também, assim como "curador": aquele que cuida."Caute" também pode ser "cautela" enquanto conduta ética. Desse modo, a poesia não é um conhecer meramente  intelectual, ela é um cuidado com o sentido, um cuidar do sentido.E é por isso que a poesia é também uma ética e uma clínica, como deveria sê-lo todo conhecimento, que nada é se não for também autoconhecimento. Assim , ao escovar um simples osso, é a nós mesmos que procuramos conhecer, não como um ser à parte , mas como parte de uma Natureza que é Poiésis.