sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

os gregos







Quem o mais profundo pensa,
ama o mais vivo.

                            Hölderlin

- Os primeiros filósofos e a filosofia
O nome “pré-socráticos” expressa um conjunto heterogêneo de pensadores.O termo “pré” não significa que eles vieram exatamente “antes” de Sócrates no tempo. Ao contrário, alguns lhe foram contemporâneos. Assim, o termo “pré” designa uma visão da filosofia que toma Sócrates como referência e padrão.Outros ainda empregam  a expressão “pré-platônicos”, uma vez que tomam Platão como o início da filosofia.
É errada a visão que considera inexistir nos  pré-socráticos uma reflexão sobre o ser humano.Entretanto, a maior dificuldade  para a  reconstrução  dessa visão que eles possuíam do homem repousa na escassez de fontes. Poucos escritos dos pré-socráticos chegaram até nós. Sabe-se, por exemplo, que Demócrito , o atomista, teria escrito bem mais que Platão!Todavia, apenas fragmentos nos chegaram.
Segundo  argumentam Deleuze e Guattari no livro O que é a Filosofia? ( Editora 34), é com os pré-socráticos que surge, pela primeira vez, o termo “filósofo”. Essa ideia nasce  mais especificamente com Tales de Mileto,embora a invenção do nome se deva a Heráclito. O filósofo veio ao mundo  antes da filosofia. O filósofo surgiu em um espaço “entre” o Ocidente e o Oriente, pois foi nessa área limítrofe das colônias da Grécia que o filósofo apareceu. Há algo do Oriente em Tales,isto é, há nele um tipo de sabedoria que não se apóia apenas em conceitos.Há nele a poesia, a alegoria, a linguagem simbólica – acompanhadas de uma intuição profunda, quase mística.Enfim, o filósofo também era, em seu berço, um poeta. Muitos pré-socráticos, até mesmo Parmênides, evocam as Musas para inspirá-los. Pitágoras, apesar de matemático, criara uma doutrina esotérica acerca da transmigração das almas, o que faz dele o primeiro filósofo a acreditar na imortalidade da alma .
A filosofia, sustentam Deleuze e Guattari,   nasceu um pouco mais tarde.A filosofia surgiu após já ter nascido o filósofo.  Enquanto este apareceu às margens da Grécia, a filosofia é fruto genuíno de Atenas, o coração do Ocidente. Para a filosofia emergir, foi preciso que o filósofo perdesse essa aura poética e mística,foi necessário que ele deixasse de ser um sábio:foi preciso que ele desse as costas para o Oriente místico.
A filosofia aparece  somente em Atenas, no auge da Grécia Clássica.A filosofia nasceu em um determinado meio político ávido por debates e disputas verbais. A Grécia de então era um meio atravessado por rivalidades de toda ordem. Nesse ambiente  era fundamental a constituição de associações. Nasce então  uma idéia muito especial de “amizade” que será considerada a base da filosofia. A filosofia seria um exercício dialogado entre aqueles que buscam a sabedoria tendo como elo uma forma muito especial, não privada, de amizade.Na Grécia Clássica, o filósofo se torna um “amigo da sabedoria”, um “amigo do conceito”. Enquanto amigo do conceito, o filósofo vai também  defender o conceito dos seus “falsos amigos”:os meros sofistas. Um amigo,um verdadeiro amigo,nunca faz seu amigo de meio para obtenção de coisas materiais. Segundo pensava Platão, os sofistas faziam da sabedoria um meio para obtenção de fama e dinheiro. Na verdade, então, eles não faziam sabedoria,mas”falsa sabedoria”, uma “aparência de sabedoria”. Sócrates, Platão e Aristóteles dedicaram boa parte de seus ensinamentos para refutar esses falsos amigos do conceito.
No Banquete, porém, Platão demonstra que o termo “philia” , presente em “philosophia”, não designa apenas “amizade”. “Philia” também significa , de forma mais profunda, “amor”. De maneira provocativa e sutil, Platão quer com isso dizer que o filósofo não é apenas um amigo do conceito: ele também é um amante do conceito, ele é um enamorado do saber. Enquanto “amigo do conceito”, podem aparecer rivais e pretendentes,como os sofistas.Mas como amante do conceito, o filósofo não tem rivais, uma vez que ele e a sabedoria formam uma unidade cujo elo é o amor. Aqui, Platão reata com certo misticismo pré-socrático de fundo pitagórico , no qual tinha grande importância a intuição silenciosa do Bem,isto é, daquilo que  a mera palavra não alcança (  mais tarde ,  Plotino e Santo Agostinho dedicarão belíssimas páginas a esse tema). Esse aspecto de amante da sabedoria dará ao filósofo uma condição de “estrangeiro”, isto é, de alguém que não se deixa determinar pelas convenções de uma determinada pólis. Sem dúvida, Sócrates é um personagem importantíssimo nos diálogos de Platão, talvez o mais  relevante.Todavia, importante também é o personagem apenas designado como “o estrangeiro”, isto é, aquele que porta uma fala que transcende ao estabelecido pelas leis e costumes que os homens estabelecem, de forma convencionada , em uma determinada pólis. Se a condição de “amigo” liga o filósofo aos homens, nascendo assim questões pedagógicas e políticas,  a condição de “amante” o liga ao divino que imortaliza sua alma, fazendo-a conhecer e viver a união amorosa com o Celeste.

- Principais pré-socráticos
Apesar da diversidade de doutrinas que caracteriza esse grupo de filósofos, uma questão pode ser apresentada como sendo a característica geral dos pré-socráticos: a busca pelo Um. Diante da multiplicidade de aspectos que a natureza apresenta aos órgãos da sensibilidade, os pré-socráticos buscavam a unidade que tornaria essa multiplicidade pensável e inteligível. A esta unidade eles deram um  nome: arqué.Esse termo grego possui uma rica carga semântica. Os principais sentidos atribuídos a arqué são: origem, princípio, comando e causa. Os pré-socráticos empregavam arqué no sentido de causa. Perguntar sobre a  arqué era indagar acerca da causa que gerou tudo o que existe.
Diante da multiplicidade de aspectos cambiantes que nossos sentidos testemunham, o pensamento se erguia diante dessa multiplicidade e fazia uma exigência: o Um, a arqué, a causa. A pré-socrática representou o primeiro momento de tematização de um problema que acompanhará toda a filosofia , de Tales de Mileto  a Deleuze: as relações entre o Um e o Múltiplo. Se o múltiplo constitui a realidade tal como ela se apresenta aos sentidos, alcançar o Um exige outro instrumento distinto da sensibilidade. Assim, emerge igualmente nesse período uma visão de que o homem é constituído por dois princípios: a sensibilidade, necessariamente ligada ao múltiplo, sendo ela própria múltipla, e o Logos, este igualmente Um, tal como a arqué. Assim, seria o Logos o instrumento que poria o homem em contato com a arqué, com o Um.
Os primeiros pré-socráticos estão ainda muito próximos da poesia. Há neles uma visão do caráter divino da natureza. Em grego, natureza é “physis”, palavra esta cujo sentido  se reporta ao processo de  “nascer” ou “brotar”. Mais do que se pautarem pela abstração dos conceitos, eles ainda se apóiam em imagens, apesar de já se fazer presente a exigência de racionalização comandada pelo Logos.
Tales de Mileto dizia que “tudo é água”. A água seria a arqué da qual tudo nasceu. Como ele chegou a essa posição?Após a chuva, ele percebia que a natureza se renovava ou renascia. Quando estão saudáveis, os olhos estão sempre umedecidos. Do mar vêm vários seres vivos. A placenta, que é o primeiro berço de todo ser vivo, é um reservatório de água. As fontes trazem vida aos desertos. Assim, onde está a água se encontra  a vida. Por outro lado, Tales  constatou que tudo o que morre e definha vai perdendo água e secando. A terra sem umidade se torna estéril. Enfim, Tales intuiu que a água é o princípio da vida. Então, existe a água visível em suas mais variadas formas. Mas existe ainda a água enquanto arqué ou causa de tudo o que existe. Essa água universal não tem um aspecto particular, e só o logos intuitivo a pode apreender. Ela não é doce ou salgada: ela é simplesmente água, a pura água que apenas o pensamento pode intuir e conceber.
Heráclito, por sua vez, afirma que o fogo é a arqué ou o  Um do qual tudo é feito. Esse Um, no entanto, reúne nele o múltiplo, de tal modo que este Um é idêntico ao movimento, ao devir. O fogo nunca fica imóvel, e é por isso que ele também é a imagem do tempo. E é isso que diz o célebre fragmento de Heráclito: “Nós não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”. Quando saímos do rio e retornamos para entrar nele, suas águas já passaram, assim como nós mesmos já somos “outro”. Muda o rio e mudamos nós.Nada é, tudo devém,pensava Heráclito. “Devir” significa: “vir de novo”. Cada “momento” do devir é uma repetição, um re-venir. Cada momento do devir é uma repetição dele mesmo, que sempre se repete diferente, pois nunca ele é o mesmo, assim como as águas do rio do tempo.Segundo dirá Platão, ninguém mais que Heráclito compreendeu tão perfeitamente o mundo sensível, que sempre é regido pela mudança. Hegel, Nietzsche, Bérgson e Deleuze foram muito influenciados por essa intuição heraclítica do devir.
Mas por que as coisas mudam? Heráclito dirá: “não existe um porquê”( Aristóteles , por sua vez, responderá a Heráclito afirmando que as coisas mudam para realizar um fim: a forma). Heráclito dizia que há no devir uma “inocência” pela qual o devir  constrói e destrói, tal como crianças que brincam de construir e destruir castelos de areia. Não raro, Heráclito  era visto observando crianças brincando e jogando. E a muitos ele dizia que aprendia mais com elas do que com os doutos. Para muitos, um obscuro. Para outros, o primeiro dos pensadores trágicos. Com Heráclito teria nascido o primeiro pensamento da imanência. “Imanência” provém de “i-manare”. “Manancial” se origina de manare. Manancial é a mesma coisa que “fluxo”. Assim, imanência é, literalmente, o que existe interior ao fluxo, ao devir, ao tempo. Por oposição, temos o vocábulo  “transcendência”. “Transcendência” é: “ir para além dos entes” ( no núcleo da palavra transcendência  existe o termo “ens”, “ente”).
Vale destacar outro pré-socrático: Empédocles. Ao invés de apontar para apenas um elemento como arqué, Empédocles nos diz que a causa de tudo são as quatro raízes e os dois princípios. As quatro raízes são: a água, o fogo, o ar e a terra. Os dois princípios são o Amor e o Ódio. O Amor é a Vida, ao passo que o Ódio é a morte. Sob o poder do Amor, as quatro raízes se combinam para gerar tudo o que existe, uma vez que tudo o que existe seria a união da água, da terra, do fogo e do ar. O ódio, por sua vez, é o princípio que dissolve o ser organizado e faz as quatro  raízes  voltarem a existir separadas. O ódio faz as raízes existirem sós.O ódio é a solidão.O ódio não destrói as quatro raízes, ele apenas desfaz os seres que nascem de sua união e composição. Além de realidades meramente físicas, Empédocles introduz Afetos (Amor e Ódio) na gênese do mundo. Esses afetos não estariam apenas no homem, eles não seriam tão somente subjetivos. Tais  afetos seriam também cósmicos e presidiriam, ao mesmo tempo, a vida dos homens e a vida do universo.
Outro pré-socrático importante foi Anaximandro. Com Anaximandro, o pensamento atinge graus de abstração nunca antes alcançados. Para esse pensador, a arqué não é a água, o ar , a terra, o fogo ou a mera combinação deles. Segundo ele, a arqué não pode ser nada de determinado, pois tudo o que é determinado possui um limite, uma identidade. E tudo o que possui limites não é o todo. Assim, para ele  a arqué ou causa de tudo será chamada de Apeiron. A-peiron:o que não tem limites.Mas por quê existem as coisas com limites, as coisas finitas? A resposta de Anaximandro introduz um elemento de julgamento moral: as coisas finitas existem por uma culpa. Todo ser finito que se separa do infinito o faz por uma culpa. Dessa forma, tudo o que é limitado, por isso mesmo, sofre. O sofrimento é a condição existencial de tudo o que existe separado. Anaximandro acreditava que a sabedoria seria um processo de reatamento com o que não tem limites, o que implicava em uma regra de vida que se libertasse do império das coisas limitadas. Por exemplo, bens materiais, por maiores que sejam, são coisas com limites.Todo apego ao limitado, seja o limitado das coisas ou o limitado do “ego” ( embora Anaximandro não empregue exatamente esta palavra tão moderna),  todo apego alimenta ainda mais a culpa e o sofrimento.  Por essa razão, impede a liberdade e o pensamento.
Por fim, existiu Parmênides.Para esse filósofo , a arqué não é mais nada físico, tampouco a combinação de coisas físicas.A arqué também não é, para ele, algo que se assemelhe a afetos humanos.  A arqué, porém, também não seria o infinito, o que carece de fins. Para Parmênides, a arqué, a causa de tudo, seria o Ser. E o que é o Ser?A resposta de Parmênides é seca,lacônica, e já anuncia,firmemente, o princípio fundante da  lógica: o Ser é o Ser. O Ser é idêntico a ele mesmo. O Ser não devém. Quando a água devém nuvem, ela deixa de ser água para se transformar em outra coisa. Como pode algo deixar de ser?Aceitar o devir é aceitar um paradoxo:afirmar que o não ser é.Assim, pensava Parmênides, o Ser não se move, ele não muda: ele simplesmente É. Os sentidos nos enganam: eles não nos mostram o Ser, eles nos mostram apenas as aparências. Desse modo, existiriam dois caminhos: o da Verdade, caminho esse que apenas a alma pode trilhar,  e o da opinião,que é o caminho no qual reinam as aparências e ilusões nascidas de vivermos apenas a vida do corpo. O caminho da Verdade  é o do Ser,ao passo que o da opinião é o caminho da mera aparência, isto é, do não ser. Com Parmênides são esboçadas  as primeiras exigências de um pensamento lógico, que posteriormente será desenvolvido por Aristóteles;em Parmênides também se dá início à célebre  distinção entre Essência e aparência, tema esse que merecerá especial atenção de Platão, e que marcará, até hoje, o vocabulário da filosofia.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

os frutos do manoel






Se a gente não der o amor ele  apodrece em nós.

Manoel de Barros


O que diz Manoel também já o disseram sábios, santos, simples.Já o disseram fazendo.Quando a gente dá o amor, aquele que o recebe e o que dá passam a existir mais. O poeta dá o amor à palavra: ao receber o amor que o poeta lhe dá, a palavra também recebe o poeta e deixa que ele viva nela. E assim o poeta já não vive apenas dentro dele, mas vive fora, nas coisas, no mundo. Van Gogh deu amor às tintas, e estas o receberam amando-o. E Van Gogh se metamorfoseou em girassol que nunca apodrece, mesmo que apodreçam as tintas com as quais o girassol pintado é feito.
Ódio, inveja, rancor, cobiça, vaidade...são frutos apodrecidos.Ódio, inveja...são amor apodrecido, e isto se vê facilmente no rosto , nas palavras e nas ações de quem os sente. As paixões tristes, como ensina Espinosa, são frutos apodrecidos . O ódio , o rancor, a cobiça, a vaidade...não são o fruto original,pois estes frutos não nascem da árvore da vida, da árvore da Natureza. Se tais paixões tristes existem e governam os homens, é na alma destes que tais frutos têm raízes. Não raro, estes frutos apodrecidos são a moeda pela qual se compram ou obtêm fama, poder, posses, títulos.
Somente o amor é, da árvore da vida, o fruto. Fruto que não se vende ou troca, mas que se dá, que se oferta. O poeta dá o amor sem esperar amor em troca. Ele dá o que já está nele, e não o que lhe falta. Generosidade da invenção, da alegria.
 Mas antes do fruto estar maduro, ele cresce em nós ainda verde. Ele amadurece em nós de acordo como amamos a nós mesmos, de acordo como o cultivamos cultivando-nos.E isto se faz discretamente, sem alarde, sem esperar reconhecimentos, a não ser da própria árvore que gerou o fruto. E esta nos recompensa fazendo nascer mais frutos em nós: ela nos faz nascer mais ideias, mais poemas, mais arte, mais alegria,mais afeto, mais afirmação, mais generosidade ,mais ousadia , mais  firmeza, enfim, ela faz nascer mais do mais: ela nos faz nascer nascimentos ( "na ponta do meu lápis só tem nascimento", sorri para nós o poeta).
Árvore rizomática de múltiplas raízes .Árvore sem centro, que cresce horizontalmente e nos horizonta.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

a parte e o todo



"A autoconfiança do Guerreiro não é a autoconfiança do homem comum. O homem comum procura certeza aos olhos do observador e chama a isso autoconfiança. O Guerreiro procura impecabilidade aos próprios olhos e chama a isso modéstia. O homem comum está preso aos seus semelhantes, enquanto o Guerreiro só está preso ao infinito".
                                                                                                        Carlos Castañeda

O todo é mais do que a soma de suas partes.O infinito é mais do que a mera soma de partes finitas. Uma soma de finitos não produz um infinito.O infinito é um  mais de potência, é um mais de realidade;por isso, ele não pode ser convertido em um menos do que ele é, tampouco ele pode ser diminuído, pois diminuir é negar.O infinito é aquilo que não pode ser negado, e nunca o infinito nega qualquer outra coisa, seja outro infinito ou algo finito . 
O infinito é sempre afirmação. Um ser finito, diferentemente, pode ser mais do que um outro ser finito. Por poder ser mais, um ser finito também pode ser menos, dado que ele pode ser menor ou poder menos  do que um outro ser finito. O “mais” de um ser finito pode ser “menos”.O mais do finito pode ser diminuído pelo mais de um outro ser finito, isto quando tomamos o finito à parte do infinito.
 O infinito é sempre mais, nunca menos.Ele é um mais dele mesmo, já que ele é infinito : nada é mais do que ele.Quando as partes finitas lhe estão integradas, o infinito as torna mais também: as faz existirem mais, uma vez que as dota de mais potência, de mais poder de agir.
 O que é verdadeiramente maior torna maior tudo o que se integra nele, e nele vive.Algo verdadeiramente maior nunca nos faz pequenos: pensar nele é tornar maior nosso pensamento.O absolutamente infinito é um mais que só produz mais, nunca o menos.Ele é mais do que a mera soma nossa. 
Todavia, como expressão singular dele, somos esse mais que não nos nega ou nos está fora, uma vez que esse mais nos está imanente, e que é a essência do nosso desejo.
Nossa essência singular também é um todo: ela é mais do que a mera soma de nossas partes extensivas. Mesmo nosso corpo pode ser compreendido como um todo que, enquanto tal, é mais do que suas partes. E é por isso que , como ensina Espinosa, nós não podemos saber tudo o que nosso corpo pode.Nosso espírito ou idéia é mais do que a soma das idéias que fazem parte dele.Enquanto todo, nossa idéia é mais do que a soma das idéias que são partes dela porque, enquanto todo, nossa idéia é uma atividade: a atividade de pensar.Nossa essência é mais porque ela também é uma parte singular do absolutamente infinito  que existe mais do que ela, mas que não a torna menor por lhe ser uma parte: ao contrário, a torna maior, maior em potência e atividade, de tal modo que, integrados no que é mais, somos sempre maiores do que nós mesmos.Ao contrário, tornamo-nos menores do que nós mesmos quando nos imaginamos um todo à parte, sem ser parte de um todo que nos seja mais e que, expressando-o, possamos ser mais existindo nele.
Enfim,o mais que expressa o todo não deve ser confundido com o mais enquanto operação matemática. Na matemática, o mais  se opõe ao menos.O mais do todo não é o de uma coisa, ele é o mais que é uma coisa: não uma coisa estática e imóvel, morta; mas uma coisa que é processo, devir,vida.
 Esse mais não pode ser diminuído por  outra coisa.É esse mais que deve ser conquistado como aquilo que verdadeiramente nos aumenta sem que para isso outra coisa precise ser diminuída.Em contraste, o mais das coisas que podem ser diminuídas não raro nos diminui quando as cobiçamos a qualquer preço, uma vez que o mais delas nunca parece ser o suficiente.
Um todo verdadeiramente todo,um todo verdadeiramente potente, nunca é um todo fechado, como um conjunto com contornos precisos e limites exatos. Um todo verdadeiramente potente, vivo, é como um horizonte: ele é abertura que  "desabre",como diz Manoel de Barros,  tudo o que dele faz parte. 










domingo, 16 de fevereiro de 2014

o nascimento do homem

           O NASCIMENTO DO HOMEM NA MITOLOGIA GREGA

  O céu da teoria é cinza;
  mas sempre verdejante é a árvore da vida.
                                                      Goethe


A mitologia grega constitui o primeiro capítulo da história da filosofia. Neste período,porém, inexistia ainda o logos, uma vez que todos os fenômenos, tanto os naturais quanto os humanos, todos os fenômenos eram explicados a partir do mythos.Mesmo quando o logos vier predominar, já na Grécia Clássica, mesmo assim o mythos ainda se fará presente, sobretudo nos relatos de Platão e dos autores do teatro.
Há nos mitos a presença marcante de uma narrativa poética. As principais fontes dos mitos são os poemas de Hesíodo ( Teogonia e Os trabalhos e os dias) e Homero   (Ilíada e  Odisséia). Todavia, estes poetas não são os autores dos mitos, eles apenas os relatam por escrito, uma vez que os mitos nasceram das narrativas  populares cuja origem se perde no tempo.Os mitos surgem em uma Grécia Arcaica ágrafa, sem escrita, predominante oral. Daí a importância da palavra falada como instrumento de construção da memória e identidade daquele povo, que será o berço da filosofia e da democracia.
Da perspectiva da Antropologia Filosófica, interessa-nos conhecer como se esboçou, nesse período inaugural,  a primeira concepção grega do homem. Mas para compreender o surgimento do homem, segundo aquela concepção, é preciso antes lançar um olhar sobre como vieram a existir os deuses gregos,pois teriam sido estes que criaram o homem.Criaram-no com uma finalidade, com uma razão.
Faremos a seguir uma exposição deliberadamente simples, e que possui um teor interpretativo mais atento ao sentido geral do que aos detalhes. Interessa-nos, sobretudo, mostrar a natureza simbólica de tal linguagem mítica. Ao fim do texto será apresentada uma pequena referência bibliográfica, caso haja o desejo de querer saber mais.

- A origem dos deuses gregos
O que vem primeiro que tudo?As primeiras páginas do poema Teogonia, de Hesíodo, buscam dar uma resposta a esta pergunta segundo a perspectiva do mito. Antes de tudo existir, antes mesmo dos deuses existirem, existia apenas o caos. O caos é uma realidade indeterminada, um “abismo sem fundo”, conforme os termos da Teogonia. Nele, o alto e o baixo, o pequeno e o grande, o belo e o feio,o justo e o injusto, a noite e o dia...tudo isto e mais outras coisas ainda não estavam distintas:tudo estava misturado, carecendo ainda de princípios que os separassem. Assim, o caos é a indistinção de coisas que precisam ser separadas. Simbolicamente falando, o caos prepondera quando aquele par de contrários ainda são tomados como sendo a mesma coisa. Então, quando o injusto existe da mesma maneira que o justo, quando a feiúra ( moral) existe com a mesma força que a beleza, quando o baixo não se distingue do alto, quando a escuridão e a luz   são confundidos...quando isto acontece estamos diante do caos ( tanto naqueles tempos quanto nos dias que correm...).
A primeira divindade a surgir do caos  foi Gaia. Em português, a Terra.Com Gaia, surgiu o chão,o plano horizontal, que é a dimensão fundante do espaço.Do ventre de Gaia, e não do caos, surgiu outra divindade: Uranos, o Céu. Este se pôs acima da Terra, e lá ficou. Entre ambos, um vazio.Várias outras divindades gregas nasceram oriundas do caos.A divindade mais importante foi Eros, o Amor. Segundo o mito, esta divindade se caracterizava por “unir o que está separado”. Então, ele foi colocar-se entre o Céu e a Terra.Sob o poder de Eros, Terra e Céu se uniram, e desta união surgiram novas divindades. Surgiram então Cronos ( o Tempo), Mnemósyne ( a Memória), Thêmis ( a Justiça) , e mais outras divindades.
Doravante, as divindades não representavam apenas aspectos físicos, uma vez que surgem divindades que, simbolicamente, expressam afetos e faculdades humanas (como a memória). As últimas divindades a nascerem, porém, representavam aspectos não muito louváveis. É o caso dos Ciclopes. Estes eram gigantes e possuíam apenas um olho no meio da testa. Simbolicamente, estas divindades representavam, com seu único olho, a estreiteza que pode haver na visão quando ela se torna refém das paixões, como será o caso,na democracia ateniense, da doxa. A doxa, a mera opinião infundada, nasce de um olhar limitado.Apenas uma visão limitada pode servir à violência. No mito, os Ciclopes eram a expressão da violência e da ignorância.
Na sequência da narrativa mítica, Cronos, o Tempo, destrona o Céu e passa a reinar no lugar dele. Com o reinado  do Tempo, o Céu se afasta totalmente e se torna tão distante da Terra que muitos esquecem que ele existe. Então, o Tempo se casa com Réia. Temendo que um filho seu, um filho do tempo, fizesse o mesmo que ele fez com o Céu, o Tempo pede a Réia que esta lhe dê o filho tão logo este nasça. Sob o seu poder, cada filho do tempo era então devorado.O Tempo devora cada filho que ele gera.
Certa vez,  contudo, nasceu um filho que portava certo aspecto que muito impressionou Réia. Esta se deu conta que este filho não deveria ser devorado pelo Tempo. Havia algo neste filho que parecia escapar ao poder destruidor do Tempo. Réia então o guardou no ventre da Terra.O filho do Tempo cresceu escondido . Seu nome: Zeus, o deus da justiça enquanto virtude ética. Crescido, este luta contra o Tempo e vence sua tirania que a tudo devora. Com Zeus nasce o Olimpo, a elevada morada divina que  torna mais próximo  Uranos, o Céu. Com sua vitória, Zeus liberta as divindades que o Tempo tentou destruir.

- O nascimento do homem
Até esse ponto da narrativa ainda inexistia o homem ,bem como todos os outros seres vivos . Zeus pede então a dois irmãos seus que fizessem toda a obra. Estas divindades se chamavam Prometeu e Epimeteu. "Epi" significa "tarde de mais", ao passo que "meteu" deriva de "métis": "prudência" ou "sabedoria prática". Assim, Epimeteu significa "saber tarde demais o que deveria ter sido feito". Já Pro-meteu tem o sentido de "saber antes o que deve ser feito". Epimeteu é o que só vê depois, quando "já é tarde", enquanto Prometeu é o que planeja e projeta.
Zeus lhes incumbiu da tarefa de criar a natureza.  Ele  fez algumas exigências : cada ser criado deveria ser dotado de uma essência que lhe permitisse viver e se desenvolver. E o mais importante: a principal criatura a ser criada deveria ser o homem. E tudo deveria ser feito dentro de um determinado tempo, ao fim do qual Zeus retornaria para ver a obra. Prometeu era a divindade mais indicada para comandar a obra, pois Epimeteu era uma divindade cuja característica principal era a volubilidade e ausência de constância. Porém, por estar atarefado com outras coisas, Prometeu pediu a Epimeteu que este começasse a obra. Prometeu viria ao fim para concluí-la.
Quando Epimeteu voltou-se para a natureza para criar os seres deu-se conta que diante dele estava apenas uma matéria muito indeterminada e confusa, na qual as formas ainda não haviam se separado e distinguido da matéria .Ao invés de começar pelo homem , Epimeteu inicia a obra pelos animais. A cada espécie criada ele a fazia dotar de alguma virtude da natureza, para que assim tal espécie pudesse se desenvolver e sobreviver. Em algumas espécies ele pôs a força, em outras ele colocou o veneno, em outras ainda a capacidade de voar; e houve aquelas que receberam a capacidade de respirar debaixo d’água. Algumas espécies receberam um cobertor natural para que pudessem ,apenas com a espessa pele, suportarem o frio extremo. Outras espécies receberam uma visão tão arguta que mesmo à noite eles poderiam ver. Enfim, Epimeteu foi esvaziando a dispensa da natureza e dotando cada espécie com aquilo que a natureza poderia oferecer. Chega então Prometeu para inspecionar a obra. A primeira coisa pela qual ele procura é o homem. Onde está o homem?Epimeteu se dá conta então que se esquecera completamente do homem. E indica para Prometeu onde estava o homem: este era um simples esboço no barro, um rascunho que mal se distinguia daquela matéria. Em latim, barros é “húmus”. Etimologicamente, “homem” procede de “húmus”.
Prometeu percebe então que a criação do homem não poderia ser feita apenas a partir daquilo que a natureza poderia oferecer. Prometeu se decide a ir buscar no divino o modelo para construir o homem.
A primeira divindade que Prometeu buscou foi Hefesto, o deus artesão-operário. Este deu a Prometeu, para este dar aos homens,a habilidade de usar as mãos. As mãos passaram a ser empregadas para fabricar coisas. Nascia assim a técnica e, com ela, o homo faber: o homem que fabrica coisas para seu sustento. Este homem já não aceita simplesmente a natureza externa: ele a transforma.  Todavia, apenas usar as mãos não  tornaram o homem  um ser completo, pois as feras conseguiam ainda assim destruí-lo e vencê-lo. Prometeu busca ajuda de outra divindade: Atena, a deusa da sabedoria. Este aceita dar a Prometeu, para este dar aos homens, a capacidade de raciocinar: os homens recebem a inteligência. Com a inteligência, os homens aprendem a contar, a medir, a raciocinar, enfim, a falar. Com a inteligência, nasce o homo sapiens.
Todavia, os que receberam a inteligência não foram os mesmos que receberam a habilidade técnica-manual. Entre estes dois tipos de seres humanos, os trabalhadores e os intelectuais,passou a existir então uma inimizade: cada um via no outro apenas a capacidade que faltava a este outro, e que era a capacidade daquele que julgava depreciativamente  a diferença. Cada classe desprezava a outra. Eles não se uniam, não viam entre si nada de comum. Assim, facilmente a natureza os vencia. Prometeu resolve ir então diretamente a Zeus e pedir-lhe ajuda. Este aceita conceder a Prometeu, para este conceder aos homens, o sentido ético da justiça. Zeus fez uma exigência: que este sentimento fosse colocado em todos os homens, e não apenas em parte deles. Este sentimento seria o afeto que os levaria a agir conforme o comum, e não apenas conforme o interesse particular, individual ou de classe.Prometeu resolve então colocar o afeto pela justiça,pelo comum, exatamente no lugar que serviria para mediar os conflitos entre os intelectuais e os operários, entre a teoria e a técnica, enfim, entre o cérebro e as mãos. Este lugar mediador foi o coração. É o coração que equilibra o homem, o equilibra primeiramente dentro dele mesmo, para que assim ele possa se equilibrar na relação com os outros. Nasce, dessa forma, o homo eticus.
Seguindo a justiça, os homens aprenderam a cooperar: e assim nasceu a sociedade. O homem não era mais apenas um ser individual, ele se percebeu também um ser de comunidade, um ser social. E assim eles passaram a comandar a natureza: tanto a externa quanto a interna, aquela que se revela como passionalidade ( ódio, rancor, cobiça, etc.).
Contudo, por muito tempo não durou aquela conduta pautada na justiça.Como sabiam falar e dominar a inteligência,logo os intelectuais criaram leis. Depois, o Estado. E este passou a ser monopólio deles. Nasceu assim o déspota.E este passou a crer que possuía uma origem diferente: não o barro, mas o ouro. O déspota criou uma casta com privilégios,bem como um exército para reprimir os operários pobres, que foram então tornados servos. O homem passou a ser então o leão do outro homem, a serpente do outro homem, o lobo do outro homem. Horrorizado, Zeus pensou em destruir com um raio toda a humanidade. Mas decidiu se vingar com uma lição: levaria o homem a ser destruído pela sua própria ambição e pouco amor pela justiça.
Zeus então pede a Afrodite que crie um ser que seria o instrumento de sua vingança.Alguns outros deuses a ajudaram na tarefa, como o deus Hefesto, o deus-artesão, que modela no barro úmido o que Zeus vai pedindo a Afrodite.  O homem fora criado no barro seco, ao passo que a mulher o foi no barro úmido. Por isso, a mulher é mais maleável e receptiva do que o homem, assim como o é o barro úmido em relação ao seco. O barro úmido é matéria que ainda se pode modelar, pois ele  é o símbolo da sensibilidade.
Zeus solicita  a Afrodite que crie um ser que o homem fique cego ao vê-lo. A pele desse ser deveria ser tão macia que, ao tocá-la, o homem se esqueceria do aveludado das pétalas. Esse ser também deveria ser tão perfumado que o homem ,ao sentir seu perfume, também se esqueceria do perfume das rosas. Esse ser também saberia usar com sedução as palavras, para que o homem sempre acredite nelas. Para tal, Hermes, o deus da comunicação, põe na boca desse ser palavras sedutoras.Mas tais palavras nasciam apenas de sua boca, e não de seu ser inteiro,  como arma para lutar contra a força física do homem.  E o mais importante: esse ser deveria ter dois estômagos, para que a insatisfação fosse o seu estado mais freqüente, e nunca o homem pudesse preenchê-la totalmente.  O nome desse ser : Pandora, a primeira mulher que foi criada.Mais do que a mulher, Pandora representa o feminino.
Zeus a envia de presente aos homens. O mais poderoso dos homens a faz de esposa.Zeus envia um baú ao casal. Na tampa do baú estavam escritas as seguintes palavras: “Não abra antes do  permitido”.A irrefreável curiosidade também era uma das características de Pandora.Não obstante a advertência, ela abre o baú. Dele saem a doença, a pobreza, as pestes e o pior dos males: a morte. Até então os homens não morriam, tampouco procriavam. Quando Pandora se apressou em fechar o baú, dentro dele ficou apenas a esperança.
Entretanto, algo de misterioso acontece com Pandora, mais especificamente com aquele seu segundo estômago. A semente da vida nele se depositou, cresceu e se alimentou. O segundo estômago morreu para que no lugar dele nascesse o útero.
Ela que trouxe a doença e a morte, agora dentro dela estava sendo gerada a vida. O homem foi criado do puro barro seco. Mas a mulher foi criada tendo como modelo o divino. A mulher teve como modelo Afrodite e Atena.E sempre quando a mulher potencializava o feminino que está nela , através dela vemos o divino.
Zeus viu então um novo papel para Pandora (que, simbolicamente, representa a sensibilidade, a sensibilidade à vida). Que ela seja o instrumento da educação do homem.Que suas palavras expressem lições que não nasçam apenas na boca, e nesta morram. Que a sensibilidade à vida  auxilie o homem a entender o que a inteligência não compreende; que o amor à vida o ensine a apreender realidades que as mãos não podem tocar.

- Conclusão
Pelo mito podemos perceber  que o homem é apresentado como um ser dotado de partes diferentes, como um ser heterogêneo. Ao invés dessas partes se harmonizarem, nasce no entanto um conflito. De um lado, o empirismo da técnica; de outro, a postura  teórica da inteligência . Este conflito também se mostrará no campo político, impedindo a convivência democrática dos homens. Platão chamará de “faculdades” essas partes diferentes do homem. Séculos depois, Kant retomará a mesma nomenclatura, criando assim uma “doutrina das faculdades”, componente fundamental de sua filosofia e daquelas que vieram depois, seja para referendá-la ou para criticá-la.
O mito aponta ainda para uma faculdade muito especial: a sensibilidade, simbolizada pelo coração. O coração como símbolo da vida em seu sentido mais amplo, não apenas biológico ou orgânico. De um lado, a técnica; de outro, a teoria. Entre ambas, a necessidade da ética.

-Referências básicas:
BACON, F. A sabedoria dos antigos. São Paulo: Unesp, 2002.
BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis: Vozes, 1991. 2vols.
___________. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1998. 3 vols.
NOGARE, P. D. “O humanismo dos gregos”, Humanismos e anti-humanismos: Introdução à Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1988.
PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos - um léxico histórico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1974.
SOUZA, E. L. L. de. “O nascimento da jurisprudência”, Filosofia do direito, ética e justiça – filosofia contemporânea. Porto alegre: Núria Fabris, 2007.
VERNANT, J-P. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990.


sábado, 15 de fevereiro de 2014

o mel e o néctar



Uma das noções mais ricas de  Espinosa é a ideia de conatus. Não  apenas  de Espinosa,  a própria vida é  conatus  . Não foi em livros, foi na própria vida que o filósofo aprendeu a onipresença do conatus. Tudo o que existe expressa um conatus. Toda existência é um conatus: a do homem, a da planta, a do animal... Mesmo os átomos e as moléculas são conatus. O sangue circula nas veias porque ele é um conatus, assim como é um conatus  o circular da seiva no interior do tronco das plantas.Não apenas o bater de asas do pássaro que voa é um conatus, também o é o ar que resiste ao bater de asas do pássaro. Nada do que existe carece de conatus, por mais tênue e imperceptível que tal conatus seja: mesmo o minúsculo feto já é um conatus pelo qual ele se diferencia do casal que o gerou.Espinosa vai ainda mais além: mesmo cada ideia que temos possui um conatus ,  é por seu conatus que ela existe, assim como toda coisa .  A palavra conatus costuma ser traduzida por “esforço”. O conatus é um esforço.
No sentido habitual do termo, todo esforço é uma atividade em vista de um fim: para caminhar, é preciso um esforço, assim como para andar, deitar,  falar... E mesmo ficar mudo requer um esforço. A meditação não é um anular o esforço, ela é um  tomar o máximo de consciência dele, uma consciência também do corpo.
É preciso, portanto,  compreender da forma mais abrangente possível essa ideia do esforço, para que assim possamos adentrar em seu rico sentido. O fruto de uma árvore, por exemplo, é fruto de um esforço que a árvore fez.Esse esforço para produzir algo não pode ser separado da existência da própria árvore.O esforço para existir não é feito apenas por músculos e ossos: ele é realizado por nosso ser inteiro, pelo corpo e pelo espírito. E mesmo os seres que não possuem músculos e ossos também se esforçam para existir, de acordo com o corpo e a ideia que são. O mel que a abelha secreta é fruto ou obra de um esforço dela. O perfume que a rosa exala também é  fruto do seu esforço. Por mais que a abelha se esforçasse, ela não conseguiria produzir o mesmo fruto que a rosa produz. No entanto, para produzir seu mel, a abelha necessita de um fruto que nasce do esforço das rosas:o néctar, pois é se alimentando do néctar das rosas que a abelha produz seu mel.Através do mel o néctar continua. Assim, cada ser que existe se esforça conforme  sua essência, conforme sua maneira  de ser.
Mas antes de se esforçar para produzir o mel, a abelha se esforça para existir. Esse esforço para existir não é separável do esforço para produzir o mel, pois a abelha não existe sem produzir mel, assim como a rosa não existe sem produzir o néctar. Produzir o néctar não é uma finalidade exterior à existência da rosa, dado que não se pode separar o produto do produtor.Isso vale para a abelha e seu mel, para a rosa e seu néctar, bem como para o homem  e as ideias que ele pensa, que também deveriam estar conectadas com o seu existir, assim como o estão, para a abelha e as rosas, o mel e o néctar.Ao produzir o néctar, a rosa também produz a si mesma e  afirma seu conatus.Desse modo, o conatus é idêntico à existência: todo ser que existe se esforça para continuar existindo a partir da sua maneira de ser.
Cada ser que existe é a expressão de um esforço para continuar existindo. Esse esforço não é uma coisa parada ou uma medida certa que não varia. Esse esforço é um processo,  um grau. Quando comemos uma maçã, absorvemos o conatus deste fruto  para assim fortalecer o nosso esforço próprio para existir . Há algo no esforço da maçã que se conjuga com o nosso esforço.Por sermos finitos, nosso conatus tem o apetite por outros conatus que o façam continuar existindo. Por sermos finitos, vivemos nosso conatus no encontro que ele faz com os outros conatus.
Os encontros podem ser bons ou maus: bons são os encontros nos quais fortalecemos nosso conatus,  maus são os encontros que o destroem ou o ameaçam. O vírus, por exemplo, busca no nosso esforço para existir algo que pode favorecer o dele. Visto a partir do mero conatus, cada ser quer apenas afirmar a si próprio . “Bom” ou “mau” não têm valor em si mesmo, pois são os conatus que determinam o que é bom ou mau. Bom e mau são sempre sentidos determinados por uma relação. A relação de fortalecimento ou composição é boa, enquanto a relação de enfraquecimento ou destruição é dita má.Mas o que vem primeiro é a afirmação, não a destruição ou negação.  Mesmo o vírus quer afirmar-se. A destruição que ele nos provoca, a qual chamamos de doença,  é um efeito.É por esse motivo que a finalidade da existência de um vírus não é nos adoecer: simplesmente o vírus quer viver.Para cada conatus não há nenhuma autoridade a não ser ele próprio.Ele não busca, como um fim exterior , a existência, uma vez que ele já está na existência: o que ele quer é continuar na existência.Ele quer afirmar-se. Todavia, além desse plano do mero conatus existe ainda  outro:o da Potência.
Para Espinosa, Deus é o infinitamente absoluto. Ab-soluto: o que não se dissolve.  Deus não possui conatus, ele é Pura Potência de Pensar e Existir. Deus não tem nada que lhe seja exterior. Por isso , ele não é ou possui conatus: ele é tudo,tudo é modificação dele mesmo.Por nada lhe existir fora, Deus nunca padece. Nada o limita, nada o diminui. Nos seres finitos,  muitas vezes a afirmação do conatus próprio acarreta na destruição de um outro conatus de um ser finito diferente. A finitude é uma determinação que vem de fora de cada ser: ela é determinada pelos outros seres finitos quando tomados finitamente. Cada onda do oceano se destaca ao mesmo tempo em que se individualiza ou finitiza, fato este que a leva a se chocar não contra o oceano, mas contra a outra onda finita nascida do mesmo oceano infinito, ao qual ambas permanecem ligadas, pois não pode existir onda sem oceano. O fato que as faz se  chocarem não é o oceano, mas suas respectivas existências que, enquanto durarem seus respectivos conatus, farão cada uma delas existir como onda. Cada onda possui um limite que é determinado não pelo oceano, e sim pela outra onda que lhe existe fora.No entanto, na imanência de cada uma  existe o oceano sem limites,  do qual cada onda singular  é uma expressão.
O conatus é a expressão da relação da nossa existência finita com outras existências finitas de nós diferentes, que igualmente querem continuar existindo afirmando suas existências. Quanto mais um ser finito isola sua existência da existência absoluta de Deus, querendo existir como um todo à parte,como uma onda que se imagina oceano, mais seu conatus será enfraquecido e viverá mais em conflitos do que em  acordos, a começar pelo conflito consigo mesmo.
 Segundo Espinosa, Deus também é potência absoluta de Pensar, e não apenas de Existir. Em Deus, o Pensar é uma atividade, um Verbo, e não um substantivo, tal como “pensamento”. Deus não é pensamento, Deus é Pensar. Assim, nosso conatus não é apenas existência, existência corpórea, ele também é atividade de pensar. Essa atividade se expressa através de uma potência: a compreensão. O pensar é o agir da alma.Quanto mais uma alma pensa,mais ela existe.Quando um corpo come uma simples maça, ele come também os inumeráveis conatus que a macieira absorveu ( o conatus dos sais, dos minerais, etc.) para produzir um único fruto. Quando o espírito pensa uma ideia, ela pensa também todas as ideias que fizeram aquela existir. Cada ideia assim pensada leva o espírito que a pensa a existir mais.Assim, pensar a ideia de Deus, do Absolutamente Infinito,  é apreender as infinitas ideias que são os infinitos conatus que fortalecem a potência de pensar de nossa alma. Quanto mais potente é o pensar, mais adequado é o agir do corpo ao qual aquele espírito está ligado.Quanto mais potente o pensar,mais o corpo aprenderá a agir não apenas buscando o bom encontro, ele desejará   também ser um bom encontro para aqueles que com ele se encontra,  vez que ele procurará, antes de tudo, ser, existir ( e não meramente padecer a ação externa).A abelha não fez o mel para adoçar nossa boca, ela simplesmente faz o mel  porque esta é a razão de sua existência.
 Nosso corpo necessita do conatus dos outros corpos para continuar existindo.  A existência do corpo se expressa como ação. É isto o que os corpos dão ao nosso corpo:o poder de agir. E agir também é respirar, alimentar-se...incluindo o alimentar e o respirar de cada uma de nossas células, pois cada célula também se alimenta e respira. Mas nosso espírito também é um esforço para continuar existindo como espírito.São as ideias  o alimento que o fortalece. A ideia não é algo abstrato que vive nas letras de um livro: cada ideia é um esforço, um conatus, uma potência. Nosso espírito necessita das ideias, ele que é também uma idéia. Deus também é uma ideia, a idéia absoluta da qual todas as outras são uma parte, um grau.Essa ideia não se dissolve, pois o tempo não a destrói. Quanto mais nossa ideia finita se saber parte dessa ideia absoluta, menos a finitude do seu corpo a cerceará em sua atividade de pensar. O nome desse processo de compreensão se chama salut, saúde. Toda coisa é vivida como um esforço, e deste depende. Contudo, quando alcançamos a compreensão, e desta a ação, o esforço se metamorfoseia em desejo, em potência. Quem começa a aprender a dançar precisa do esforço para manter vivo esse desejo. Se houver perseverança, e alegria, chega um ponto em que o esforço se torna potência, de tal maneira que compreendemos a necessidade do treino, pois neste a arte já está, como já está a árvore na imanência do fruto, fruto este que ela produziu.
Deus não possui conatus. Deus é pura potência, pois nada o limita. Em nós, em nossa existência cotidiana, essa potência é vivida de forma irrefletida e imaginativa  como simples conatus, isto é, como um esforço para existir sendo limitado por outros esforços, e muitos destes esforços podem ameaçar o nosso.O temer morrer não é viver.
 O conatus é a potência que ainda se ignora como potência, e à potência nada falta. O conatus é a potência no seu grau mais baixo de afirmação e existência.Quando compreendemos a Ideia Absoluta da qual nós somos uma parte, nosso esforço se converte em potência, e esta é sempre afirmativa , produtiva, de tal modo que afirmá-la nunca é destruir uma outra existência meramente. Quando percebemos em nosso esforço para existir a potência absoluta que já é eternamente  Existência, compreendemos que a beleza e a alegria não estão na obra, no produto,  mel ou néctar, mas no seu produzir, no seu criar. 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

artigo publicado: comunicação e mediação cultural






link para a Revista: 
http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/issue/view/15


(trechos do artigo)   

                     Em grego, comunicação procede de  to koinon ,“o comum”. O comum não é o público ou o privado; ele não se vincula, tampouco, ao Estado. O comum não é a propriedade de todos, posto que o comum é exatamente aquilo que foge à lógica da propriedade. Do comum se participa. O comum é a criação de um espaço que foge à lógica dos conjuntos fechados geometricamente e que ostentam uma identidade fixa. O comum é a criação de lugares topologicamente constituídos: ele é encontro de diferenças.
            Quando há uma mediação, nasce o que Espinosa  chamava de bom encontro. Uma relação como mediação e bom encontro nunca é composta  apenas de dois, mas de três: entre os amigos, a amizade; entre o professor e o aluno, a educação; entre o juiz e o réu, a justiça; entre aqueles que se amam, o amor; entre o museu e o público, a exposição. É o que está “entre” que torna cada parte que se encontra unidas pelo elo: este  abre cada parte ao encontro de um  todo que não é forma, mas processo, produção. Quando uma relação é reduzida a apenas dois, surge a possibilidade do domínio, ou do duelo, ou da submissão. O comum não é meramente semelhança. O que faz  dois amigos terem a amizade como o comum que os liga não é usarem roupas semelhantes, ou ostentarem posses semelhantes, tampouco terem opiniões semelhantes. O comum faz nascer elos pela diferença.

(...)

       Na teoria tradicional, o que está no meio sempre foi considerado como aquilo que apenas tem valor na medida em que liga dois polos, após o que se apaga enquanto meio (ninguém pensa muito na estrada depois que chegou ao seu destino). A mediação cultural, diferentemente, cria um espaço de mestiçagem, uma vez que produz interfaces, isto é, faces que se conectam a partir de uma face comum. A mediação, o terceiro que está no meio, não apenas transmite ou faz interagir dois: ele é um espaço de transformação dos dois em mais que dois. O meio, como mediação, não liga apenas os polos, liga também, através dele, os dois polos à sociedade, bem como à natureza. A comunicação assim entendida é vida que dá vida ao acervo, apresentando-o não apenas como fonte de informação, mas também como fonte de vida, de inquietações, de ideias, de experimentações, de surpresas, de aprendizagens não escolares (“saberes que não vêm em tomos”, como dizia o poeta Manoel de Barros ) .
            Conforme afirma Mattelart , democracia não é apenas exercício, pelo voto, da vontade. A democracia também é, antes de tudo, formação da vontade. Formar uma vontade é formar igualmente  uma pessoa. Formar uma pessoa é cultivá-la, e este é o sentido original de cultura: cultivo. A cultura cultiva a pessoa ao ligá-la ao que é comum, e do qual ela deve ser uma parte ativa. Não se pode formar uma vontade livre a não ser mediante um meio que também seja livre, e no qual a liberdade seja , antes de tudo, a liberdade do encontro:encontro com a exposição, encontro com o patrimônio, encontro com o outro, encontro, enfim, consigo mesmo.Esse é o sentido maior de "política"; é por isso que expor também é um ato ético.O pai das Musas, Zeus, é o deus da maior virtude ética: a justiça.É por essa razão que musealizar também é fazer justiça ao que não pode ser esquecido, pois esquecê-lo seria esquecer o que faz de nós humanos.Aliás, recordar, criar memória, vem de re-cordis: cordis é, em latim, coração. Recordar: trazer de novo ao coração, que é o mediador que integra mãos e cérebro, técnica e teoria, e os faz viver a comunhão que os torna completos. Se “gosto não se discute”, como afirmam alguns, sempre é necessário discutir a formação dos gostos, a sua produção, o que nos obriga a pensar  nas  formas multifatoriais de educação.


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

a casa dos pardais



É a minha própria casa,
mas creio que vim fazer uma visita a alguém.
Maria Gabriela Llansol

Segundo Espinosa, a coisa na qual o homem livre menos pensa é na morte.Então, é da vida de que falo e falarei ,não exatamente a minha, mas aquela que flui, que continua, que brota de si mesma e se afirma, e da qual sou e somos uma parte. Penso na continuidade da minha vida através da Vida, e não no seu fim.
Para tal, é meu desejo: quando vier de fora um encontro , o derradeiro mau encontro, que desfará minha maneira de ser, queria então ser cremado.Não quero ficar sob a terra.Não quero lápide,mármore ou placa me identificando . Não queria, porém,  que minhas cinzas  ficassem em um baú: quero que elas sejam colocadas ao pé de uma amendoeira, que elas sejam aí lançadas. Quando eu estiver bem velhinho, desejo até mesmo escolher a amendoeira que devirei.
Ao invés de ser roído pelos vermes cinzas,quero ser sorvido pelas plantas,pelo verde −este mesmo verde que se alimenta do amarelo que atravessa o azul. As raízes serão apenas a porta de entrada para aonde desejaria ir: às flores e, a partir destas, aos frutos, e que eu possa ser  parte de um.Lágrimas, se houver,que sejam apenas as da chuva, lágrimas sem tristeza,que possam me regar.
 Não queria que fosse a amendoeira dentro de  alguma propriedade, destas que ficam no quintal ou calçada de alguém que pretenda ser seu dono,em torno da qual há sempre um limite,uma cerca. Teria que ser uma amendoeira sem dono,impessoal, anônima, “uma” amendoeira,  que fosse apenas a casa dos pardais,sob a qual possa haver o descanso para o viajante, a proteção para as crianças que brincam e o acolhimento para os casais que se amam.
Provavelmente , ela teria que existir em algum parque ou floresta,mas que não fosse inacessível ou isolada. Que eu possa continuar a ser nela, como parte dela , ela que é parte da terra, do cosmos, de deus: simples casa de pardais.