domingo, 29 de setembro de 2013

Manoel de Barros: a visão fontana






A razão vê,
a poesia transvê.
É preciso transver o mundo.

Manoel de Barros



Segundo Manoel de Barros, o poeta é aquele que possui visão fontana, uma visão que é fonte do que vê. Não é uma visão que constata o referente ou objeto; diferentemente, ela é uma visão que vê , antes, o sentido - que é a alma das coisas. Toda fonte se comunica com um fluxo invisível , que é de onde vêm as águas que nela nascem e fluem. Embora possam estar, hoje, sob o chão, tais águas já estiveram, outrora, no céu  - do qual caíram como chuva; elas já circularam também no interior dos animais, como sangue e suor ; já desceram as montanhas quando a neve derreteu; já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; já foram o meio que alimentou o feto no interior da placenta. Um dia tais águas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; sobre elas o Espírito, um dia, andou ;hoje sobre elas se surfa, se desliza, se mergulha. E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos a bebem. É esse elemento que está em tudo , e que é a Vida de tudo em processo, é este elemento o que o poeta vê e sente , primeiro nele, como metamorfose e encantamento.





















quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Espinosa: o apetite e o desejo



                                                                                       
O sentido não é o culto ao relativismo como antídoto ao dogmatismo;
o sentido  não é a afirmação de que tudo é igual ou relativo;
o sentido é o relacional: ele é a afirmação do encontro; 
não a relatividade do encontro, mas  a sua necessidade.

José Américo Pessanha.


Pior do que seus frutos ainda estarem verdes,
é se estar ainda verde para os  frutos já maduros.

Nietzsche.


1-A existência do homem, mas não apenas a do homem, está apoiada em uma noção: o apetite. A palavra apetite nasce de um termo latino que significa "pedir", assim como "petição" e "pedido". O apetite é um pedir. Enquanto tal, o apetite não é uma coisa, ele é um processo. É nesse processo, apoiado nele, que a existência transcorre e persevera. Quem o diz é Espinosa.No sentido comum do termo, quem pede,  pede alguma coisa a alguém.Contudo, ao falar do apetite Espinosa se coloca em um plano mais direto com a vida. Todo viver é um processo de apetite. A vida se mede pelo apetite. O apetite concerne não apenas ao corpo, ele concerne também à alma. Enquanto existem, e para permanecerem na existência, corpo e alma pedem: o corpo pede por corpos, a alma pede por almas.O corpo precisa de outros corpos para continuar corpo, a alma precisa de outras almas para continuar alma.Quando sentimos fome, por exemplo,a fome é   o nosso corpo  pedindo corpos ( carne, leite, água, frutas, etc.). O alimento da alma é o afeto. A alma pede amor, justiça, amizade, generosidade...A alma precisa do afeto para continuar alma, pois alma é afeto.
O pedir do corpo é o pedir mesmo da alma visto sob uma outra perspectiva; o pedir da alma é o pedir mesmo do corpo visto sob uma outra perspectiva, pois corpo e alma são a mesma realidade apreendida de duas formas diferentes pelo intelecto.Se nós pudéssemos entrar em contato com a realidade sem ser por intermédio do intelecto, se nós conseguíssemos ir além do que pode apreender o intelecto, certamente experimentaríamos  imediatamente como um aquilo que o intelecto conhece como dois. E essa experiência seria mais do que conhecimento, seria também poesia.
 O corpo e a alma são modificações singulares da Natureza ou Deus, que a nada pede, que de nada carece e a tudo produz.Quando reportamos nossa existência à Natureza como sua causa imanente, passamos do pedir ao produzir, ao afirmar.Quando o quadro fica pronto, quando a música devém realizada, se há amor e potência em seu fazer,parece que a tinta pedia o quadro, parece que os sons pediam a música, não como algo de que careciam, mas como realidade intensa  na qual tinta e som entram , e que os faz existirem mais, pois os faz existirem em composição, como expressão, criação.O mesmo vale para o apetite finito que se descobre parte da composição musical infinita que a Natureza é, polifonicamente. Deus ou a Natureza não tem apetites: Deus ou a Natureza é Potência. No ser finito, portanto, o apetite é a potência que ainda se ignora.
Em suas existências finitas  corpo e alma pedem, porém  não  pedem o mesmo. Todavia, como a maioria das pessoas vive mais a vida do corpo do que a da alma, em geral os homens buscam mais o que pede o corpo do que aquilo que pede a alma. Essa ignorância existencial os leva a substituir o que pede a alma por aquilo que pede o corpo. É por isso que muitos buscam nas coisas materiais um substituto para o afeto que a alma pede, e assim encontram em tudo que o dinheiro pode comprar uma espécie de chupeta , um substituto para o que não tem preço. As coisas que o corpo pede podem ser compradas, furtadas e até mesmo roubadas, mas não o pode ser o afeto.  O inverso também se aplica: o puro idealismo ou a rigidez moral/religiosa nada mais são, na maioria dos casos, do que a impotência de uma existência para ousar obter aquilo que seu corpo pede.Então, aquele que assim padece vai buscar um substituto nas ideias, no imaterial, e assim trai a ambos, o material e o imaterial, a ideia e o corpo, sendo que antes ele trai a si mesmo.
O pedir do apetite só pode ser visto como uma falta ou carência quando reportado exclusivamente  à existência finita no qual ele nasce, isolando essa existência de toda a natureza.Mas quando o pedir do apetite é reportado à natureza, compreendemos o apetite como um desejo de conexão, de agenciamento. 
Há uma diferença entre o pedir e o implorar.Uma coisa é o corpo pedir por alimento, outra é ele implorar por mais alimento, por mais corpos. Do mesmo modo, uma coisa é a alma pedir amor, outra é implorar por amor ou por mais amor. Quando do pedir nasce o implorar,sucumbe-se a uma vida que passa a ser determinada mais por aquilo que ela não tem do que por aquilo que ela é. O ser finito que perde a dimensão positiva da sua diferença vê em tudo aquilo que não é ele coisas que lhe faltam, ao passo que aquele que está de acordo consigo vê nas diferenças possibilidades várias para se conectar e aumentar sua potência de pensar e de agir. 
O apetite pode  transformar-se em mera passionalidade triste ( a que destila a falta)quando do apetite  não nasce o desejo. Para Espinosa, o desejo nasce quando o apetite se reflete sobre si mesmo.O desejo nasce quando o apetite se dobra sobre si mesmo, como a lagarta rastejante que se dobra sobre si para em metamorfose autoproduzir-se asas.O desejo nasce quando o apetite se dobra sobre si, e não   sobre a coisa externa que aparentemente lhe falta, e pela qual ele pede. O desejo é o apetite que reflete sobre aquilo que ele pede, e mede a potência desse pedir, se é liberdade ou servidão.Re-fletir, re-flexão, significa exatamente dobrar-se sobre si mesmo, criando uma pequena distância a si como dimensão crítica e clínica.Assim, a reflexão não é apenas uma atividade psíquica ligada à consciência, ela também é um exercício que concerne ao corpo que devém ativo. O desejo é a compreensão de que o pedir é conexão, e não falta.Enquanto o prazer é o efeito do apetite em sua relação com quantidades, o desejo é o apetite que descobre mais do que a quantidade: ele descobre a qualidade e, mais ainda, a intensidade. Quando o apetite se metamorfoseia em desejo, uma existência aprende não a negar ou reprimir o prazer, ela aprende a ter prazer com qualquer coisa, sobretudo com a vida em seus aspectos mais simples. O apetite é um processo, não uma coisa. Mas quando do apetite não nasce o desejo( que é  sempre puro processo), o apetite pode ficar refém do prazer exclusivo com coisas ( inclusive as coisas que se fuma e bebe, bem como aquelas mais tecnológicas, nas quais se tecla ou tagarela...).
O desejo não concerne apenas ao corpo, o desejo concerne ao corpo e à alma. É por isso que o desejo também é, no que concerne à alma, a ideia adequada do apetite, o seu vencer a mera passionalidade. O desejo não é negação ou repressão do apetite, mas a sua potencialização, de tal modo que aprendemos, pelo desejo, a ter apetite também pelas ideias, pela justiça, pela arte, pelo infinito; do mesmo modo que o corpo também aprende a ter apetite por ouvir, por deambular, por dançar, e não apenas por comer , beber e se anestesiar. O desejo não é o remédio, tampouco o apetite é a doença. O desejo é a saúde, a salut.

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Minha alma tem a forma do meu corpo:
Mas como é afinal meu corpo?
Eu nunca exato o vi.

Murilo Mendes

2-Não se alcança a saúde através de  um mero lutar contra a doença; não se conquista a alegria por um mero reprimir a tristeza. Do ponto de vista do esforço, e a existência não é um estado mas um processo ou  esforço mesmo para existir, esforçar-se para conquistar a alegria e esforçar-se para impedir a tristeza não se diferem, enquanto esforço ou conatus. Todavia, do ponto de vista da ideia da alegria, quando de fato a  conquistamos, percebemos que o esforço para conquistar e viver a alegria nada tem a ver com o esforço para reprimir a tristeza, uma vez que a tristeza é aquilo que diminui todo esforço, todo desejo, toda existência, a começar pela nossa. Assim, não é diminuindo a existência que, por acúmulo, chegaremos a aumentá-la. Quando tomamos uma vacina para lutar contra uma doença, por exemplo, a vacina age primeiro fortalecendo a ação do nosso corpo para manter-se na saúde, pois é a afirmação da saúde que vence a doença, e não o mero querer destruir a doença . Nele mesmo, o vírus que gera a doença não é uma doença, mas um outro ser cuja ideia de saúde difere da nossa.
Apenas quando se alcança a saúde é que se compreende o que é a doença e como vencê-la ( e não apenas perpetuá-la através de nossas próprias forças); somente quando se alcança a alegria é que se faz um ideia adequada da tristeza, inclusive das falsas alegrias da tristeza ( como o deboche, o zombar, o ironizar, etc.).

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3.As palavras "modo", "modéstia" e "medicina" têm uma origem comum:elas nascem de um termo latino que significa "medida".Assim, em Espinosa os modos são medidas do ser, são maneiras do ser se expressar/produzir singularmente, ele que não tem medida, posto que é puro processo e devir.A modéstia não é um negar, mas o afirmar de uma medida que não perde o infinito.O modesto não quer o infinito, como o pretensioso, tampouco nega a medida, como o humilde; o modesto  afirma o infinito na imanência de sua medida, jamais deixando que ela se feche ou perca consistência. A medicina não é exatamente saber tudo sobre fórmulas ou saber descrever e definir doenças.O autêntico médico é aquele que sabe prescrever a medida do remédio, o remédio como medida. 
Assim, há duas concepções de medida: medida que se mantém exterior ao medido, como uma régua, e que se define  por um limite rígido, um contorno, um padrão ( em geral, tais medidas são apenas formas destituídas de conteúdo).E há a medida que traz em sua imanência o medido como seu conteúdo. E o conteúdo é sempre a potência. Por isso, os modos são medidas intrínsecas à potência, são medidas que jamais se fecham: delas jamais nascem padrões, paradigmas ou tudo aquilo que se coloca de forma transcendente aos processos, como Verdade ou Poder.Somente quando se considera a medida como algo exterior e que não varia , somente assim é que nascem as ideias de excesso ou falta: o excesso como aquilo que excede a medida, e erroneamente se identifica esse exceder como potência.Na verdade, a potência é o conteúdo imanente de uma medida que não o nega, e que se expande ao afirmá-lo, afirmando-se.Cada modo é uma maneira de ser do mesmo ser que se expressa de infinitas outras maneiras, cada maneira sendo uma variação ou grau intensivo, que traz em seu coração aquilo que  mede, como potência que não se fecha.Ser a medida da potência sem medida é afirmar-se como diferença que difere, em primeiro lugar, de si.
O homem não é a medida de todas as coisas, pois todas as coisas são uma medida singular do mesmo ser do qual o homem também é uma medida diferente.O pensamento não é outra coisa senão uma medida que revela também aquele que mede, e não apenas o medido. O pensar nunca é um produto de um sujeito, ele é sempre um processo cuja causa se encontra na potência que ele expressa.A Ética de Espinosa está sustentada em uma simples lição: sejamos  uma medida que não diminua o que medimos, o que implica que nos apreendamos , como diria Manoel de Barros, como uma forma em rascunho, uma forma em deslimite.
É o não fechamento do medido que possibilita que existam medidas comuns que se aplicam a seres diferentes, desde que haja um bom encontro. Por exemplo, a amizade não é uma medida exterior aos amigos, mas uma medida comum que os amplia. A educação não é uma régua que pertence exclusivamente ao professor,pois a educação é uma medida comum ao educando e ao educador: uma medida comum não é uma igualização homogeneizante, dado que é somente por uma medida comum que educando e educador podem se encontrar na afirmação de suas diferenças.Uma medida é mais potente quanto mais ela afirma o medido como algo que lhe é imanente e o torna capaz de produzir agenciamentos. 

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4.Segundo Espinosa, Cristo é a ideia da perfeição humana. Toda ideia o é de um corpo. Assim, Cristo não é apenas a ideia da perfeição da alma humana, ele também é a perfeição do corpo humano. Corpo múltiplo, heterogêneo, plural e, ao mesmo tempo, singular, intensamente vivo, amoroso.O corpo de Cristo não é um corpo simbólico , substituto, que se ingere em ritos administrados em um templo. O corpo de Cristo também é um corpo orgânico, físico, político, metafísico, poético, sem deixar de ser o nosso corpo mesmo tal como existe no mais simples cotidiano. O corpo de Cristo não é uma convenção, ele não é apenas "carne", ele também é cérebro, pulmão, sangue, desejo. Em Espinosa, a perfeição não é uma ideia pronta, pois toda perfeição é inseparável de um exercício de aperfeiçoamento: a perfeição não é o quadro pronto, mas o seu perseverante esboço e, antes mesmo deste, a inspiração, a intuição.A perfeição não é a música na partitura, mas a sua execução, o seu durar. A perfeição nunca é um produto ou fim a alcançar, ela é sempre meio, instrumento, processo.

A perfeição da alma é pensar, a perfeição do corpo é agir. O corpo de Cristo é o corpo mesmo do homem enquanto este age tendo como meio o amor, a justiça, a generosidade,a amizade e, também, a indignação. O corpo de Cristo não bebe apenas água, ele também festeja o vinho. O corpo de Cristo não é um corpo morto que  eterniza a dor e o sofrimento, ele é o corpo que nasce, que renasce, sempre em nome da vida.
Cristo, portanto, é a ideia da perfeição humana, e não a ideia que corresponde a um grupo da espécie humana. Cristo não é uma ideia que determina uma parte da humanidade como cristã, pois a determinação de uma parte da humanidade como cristã seria também, ao mesmo tempo, a determinação de uma outra parte como não cristã, o que sempre leva ao conflito e ao ódio ,a começar pelos inúmeros subgrupos que existem no interior do grupo que se diz cristão ! Se há cristão, é porque existe não cristão. Se Cristo fosse hoje vivo, ele não seria cristão, ele seria , antes de tudo, um ser cujo esforço maior, esforço de compreensão e amor, todo o seu esforço seria para ser um homem, todo seu esforço seria para realizar a ideia da perfeição humana, que ele passaria a ensinar não escrevendo livros, papers ou teses, ele a ensinaria com o exemplo vivo, ele ensinaria agindo.E onde houver alguém agindo assim, ali o Cristo está vivo, porque o estará , no homem, o corpo e o espírito.Não uma Perfeição Imaculada, Livresca, mas um devir-aperfeiçoamento, o qual sempre depende de um esforço, de um desejo, de um apetite.A ideia de Cristo não é uma ideia que recorta uma parte da humanidade como objeto dela, dado que ela diz respeito à humanidade inteira, enquanto espírito e corpo, desde que em processo ou devir de aperfeiçoamento, o que se faz na alegria, na liberdade, na compreensão.
 Cristo é a ideia da perfeição da humanidade como um todo, e não a ideia da perfeição de uma parte dela como sendo cristã.Quando se considera Cristo como não tendo sido um homem, passa-se a imaginar que o que ele fez um homem não o pode fazer, a não ser com a intervenção de um milagre ( ou com o pagamento de  tributos, tributos em moeda e em obediência,  aos espertos representantes de Deus na terra...). 
Mas o que Cristo  fez senão amar? Dependeria de um milagre o homem amar?Por que não dependeria de um milagre o homem odiar? O ódio define mais a natureza do homem do que o amor?Mas quem determinou isso, o próprio homem?Mas e se for o contrário, se for  o amor de fato o que determina a essência do homem, por que é mais difícil aceitar essa tese do que aquela que afirma ser o ódio o que mais define o homem?Além disso, amor e ódio são mais do que sentimentos psicológicos, eles são expressões existenciais  de como nos relacionamos com a potência.Visto assim, o amor é um fortalecimento, uma intensificação do existir , ao passo que o ódio é um enfraquecimento.
Para Espinosa, a essência do homem não pode ser definida sozinha.A essência é sempre uma relação ou agenciamento de essências.O homem não é um todo à parte, ele não é um ego que pensa e, por isso, existe. A essência do homem é ser  a modificação singular da essência mesma de Deus ou da Natureza, que é absolutamente infinita.O valor exemplar de Cristo é que sua essência é uma afirmação potente da essência da Natureza ou Deus, essência esta que se expressa em cada essência singular, e não apenas na essência de Cristo.
Para haver amor é necessário existir um encontro. O homem somente se torna capaz de compreender a essência própria quando ele a vive como um encontro. Se ele a conceber como algo isolado, como um todo à parte, que existe em si mesma e em oposição a outras essências, ele tornará abstrata a ideia do amor, tornará imaginativa a ideia do Cristo, que é a ideia do homem mesmo; pois um ser sozinho não tem como compreender o que é o amor, pois este é sempre encontro. O homem sozinho está sempre pronto mais a odiar do que a amar, sobretudo se ele se sentir sozinho em meio aos homens ou, o que é pior, se sentir sozinho diante de si mesmo, se ele não for um bom encontro para si mesmo.









segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Manoel de Barros: o devir-imperceptível ( trecho do livro)





A importância de uma coisa não se mede com fita métrica  nem
com balanças nem com barômetros etc. (...) A importância de uma coisa
há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Manoel de Barros


“Não sou biografável”, disse certa vez Manoel de Barros.  E nos confessa ele ainda que suas memórias são inventadas.Sem dúvida, é difícil capturá-lo em uma apresentação biográfica habitual, pois ele se aloja em uma região imperceptível aos olhos daqueles que só percebem o já visto, o etiquetado.
Ser imperceptível não é ser invisível. A imperceptibilidade é a maneira de ser daqueles que, como diz Deleuze, emprestam seus nomes para assinar acontecimentos, idéias, sensações. Ser imperceptível é um caso de devir: devir imperceptível. Tornar-se imperceptível é pôr em questão os mecanismos que, de forma a priori, determinam a percepção, fazendo-a submeter-se a um já dado que nos cega diante daquilo que é diferente.
Quando o nome próprio conquista a potência de expressar acontecimentos e sentidos, despe-se da pessoa que até então designou , uma vez que aquele que o porta atinge a mais necessárias das artes: a de se tornar impessoal. “Palavra que eu uso me inclui nela” afirma Manoel de Barros. Para haver essa inclusão, esse devir, é preciso aquela arte. Assim, diz Deleuze a esse respeito, descobre-se “sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau.” No poema intitulado “Ninguém”, Manoel de Barros escreve:

Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios,
com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.

Tornar-se impessoal, “Ninguém”, é conquistar o estatuto de um agente coletivo de enunciação: sua voz já não diz “eu” , mas “nós”. E neste “nós” inclui-se sobretudo o que não tem voz, mas que a poesia faz falar: “Queria ser a voz em que uma pedra fale”,uma voz que já não manifesta um eu pessoal :

Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.

Pela voz poética de Manoel de Barros também se tornam sujeitos,mas sujeitos larvares, uma quantidade infindável de seres: lagartixas, girinos, bocós,pedras que dão leite, patos atravessados de chuva, arames de prender horizonte,tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma... enfim, o que não se pode vender no mercado:“coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser idéia ou pensamento”. Manoel de Barros nos diz ainda:

Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos
seres apagados.
Ou alguém que possa freqüentar o futuro das palavras.

Mais do que tudo, o que por sua voz fala é a própria língua que, despida da forma da gramática, “voa fora da asa”:

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimento
 O verbo tem que pegar delírio.

Esse “fazer nascimento” referido pelo poeta inunda a poesia com a potência de um germe: na imanência deste, o verbo, como logos, liberta-se dos substantivos e das substâncias; devém ele próprio experimento com o sentido, e nos ensina: “Poesia é voar fora da asa”: “a poesia é a loucura da palavra”.