quinta-feira, 29 de agosto de 2013

geo-pop'filosofia





1-No Rio  é costume construirmos calçadas, isto é, extensões regulares,a partir de pequenas pedras sabão irregulares, cada uma completamente diferente da outra, tal como é diferente do outro cada modo ou maneira de ser da Natureza. Estas pequenas pedras também são chamadas de pedras portuguesas, e em tudo lembram a multitudo do português Espinosa.O modo como construímos tais obras expressa o estilo com o qual  produzimos outras obras do viver em comum. Nosso todo é construído a partir de pequenas singularidades que, unidas, tornam o chão um multifacetado mosaico de mônadas sob o sol, cuja liga é o afeto, mais do que a norma - para o nosso bem ou para o nosso mal.
A paciência das mãos anônimas dos dedicados demiurgos-operários, unindo cada pedra à outra, tecem composições que, barrocamente ajeitadas, modulam entidades que adornam os passeios , de tal modo que o caminhar nunca se faz apenas a serviço do útil, pois sob os pés se imprimem seres feitos da arte de uma linha de fuga: passeamos sobre ondas sinuosas, cristais, flores, rosáceas, golfinhos, notas musicais - como na calçada por onde deambulou Noel Rosa, acompanhado de Cartola, Pixinguinha e Jacob do Bandolim.E nesses passeios também nunca se fala de verdades ou constatações, mas se canta, se assobia, se ri  (sobretudo " ri-se de si mesmo", tal como preconiza o humor clínico de Nietzsche...).
A manutenção do todo formado - seja uma calçada ou nossa heterogênea sociedade - requer perseverante reinvenção, pois nada do que foi se manterá o mesmo , nas calçadas e  no tempo.
E quem desejar entender esse Rio menor , não vá ler livros ou teses, mas vá ouvir  o polifônico ritornelo chamado chorinho, cujas paisagens sonoras inventivas  não cabem na métrica recognitiva dos postais.








2-Quando eu tinha cinco ou seis anos, não mais que isso, morava em uma casa muito simples, ao lado de  outra casa igualmente simples, nos fundos de uma casa maior que dava para uma pequena rua de um singular bairro do subúrbio carioca. Havia um pequeno pátio comum às casas. Este espaço era  uma espécie de ágora menor ,  em cujo centro reinava um abacateiro sempre generoso, em frutos e em sombra.À noite, gostava de me deitar no chão  do pátio comum , que era aberto ao céu. Ficava a olhar o céu, suas estrelas, seus espaços sem limite. O céu infinito era meu principal brinquedo, e também quadro negro onde eu aprendia sem professor: aprendia a aprender, um aprender que precede todo ensinar. Eu não especulava, não perguntava, apenas me sentia parte de uma experiência que hoje vejo como de uma poética e filosófica  inocência. Lembro-me de uma alegria que sentia, uma alegria intensa de existir,  alegria esta que reencontro, renovada, ao ler Espinosa.

3-A linha é feita de pontos. Os pontos são atualidades contíguas umas às outras.Sempre se pode acrescentar ou retirar um ponto de uma linha. E aquilo ao qual se pode acrescentar mais uma realidade ou subtrair-lhe uma, de fato não é um infinito. O infinito é aquilo ao qual não se pode acrescentar ou tampouco retirar-lhe realidade.O infinito é uma linha também, mas linha que passa entre dois pontos.
Segundo Deleuze, a castração gera a angústia da finitude, da morte. Há toda uma cantilena da finitude, toda uma missa e cartilha. A castração não apenas separa o desejo da realidade, como acentua nossos contornos, fazendo-os de cela, presos à culpa. Ao invés da castração, Deleuze nos põe em contato com uma  fissura, uma fenda. A fissura ou fenda aparece, primeiramente, como fenda ou fissura do Eu.Uma fenda nada tem a ver com uma castração, com uma falta. A fissura fende o Eu em dois: em Eu transcendental, o Eu que Pensa/Conhece,  e eu empírico, o eu que existe ( e que possui nome próprio, RG, etc.), de tal modo que o Eu é um outro para o eu, o Eu que pensa/conhece se torna um outro para o eu que sente e existe. É o Eu que apenas pensa teoricamente que vê na fenda algo que o ameaça, e que pode levar o eu que existe a ver no pensamento algo que lhe falta, de tal modo que a fenda pode se tornar a marca de uma impotência imaginada, de uma dor, de um vazio que se vai querer preencher com uma droga, com um Deus, com uma anestesia...É o Eu que torna a fenda algo que ainda parece negativo. O Eu é um ponto, assim como o eu de nossa existência psicológica. Somente quando conectamos o pensar à experiência do que está no meio, e não mais ao Eu com suas Verdades ou ao eu com suas opiniões, somente assim  experimentamos a fenda como limiar para um outro mundo, um mundo a experimentar e a criar, como devir.Vemos então que a fenda é   uma linha que passa entre, que "é sempre mais veloz no meio".Entre dois pontos sempre passa uma linha labiríntica, linha nômade, linha de rizoma e ritornelo. Os pontos são atualidades, mas a linha nômade é sempre virtual. Ela passa entre dois pontos: e no meio dela não há pontos, há apenas velocidades, intensidades, fugas como criação.

sábado, 24 de agosto de 2013

Manoel de Barros e Paul Klee: as desaprendizagens ( trecho do livro)





Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Manoel de Barros se apropria, à sua maneira, da Máquina de Chilrear de Klee, e a faz de ferramenta de sua oficina poética . Este pintor ensinou-lhe a necessidade de "aprender a desaprender" - que define muito bem o que aqui chamaremos de devir-criança*, e que tão presente está na obra de Manoel de Barros: “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Por isso, completa o poeta,


Palavras

Gosto de brincar com elas.

Tenho preguiça de ser sério.


De sua parte, Paul Klee impôs a si mesmo uma espécie de “desaprendizagem”. Embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, esta mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão para as imagens que ele queria exprimir. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que , livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda ( desaprendizagem semelhante fez Miró...). O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Assim como a arte de Paul Klee,


A poesia tem a função de pregar a prática 

da infância entre os homens.


***
[ *Nota sobre o devir-criança:Quando alguém se torna adulto, a criança que ele foi está no passado;quando tal adulto era criança, o ser adulto era seu futuro.O adulto é o futuro da criança enquanto esta é um estado com uma identidade que lhe prescreve uma definição, um contorno; de maneira análoga, a criança é o passado do adulto enquanto este representa a si mesmo como um estado circunscrito por uma identidade.Sob esta perspectiva,"criança" e "adulto" são estados que se opõem pelas suas respectivas identidades.O devir não possui passado ou futuro: ele é, como dizem Deleuze e Guattari,antimemória. Ou melhor, se ele nos dota de uma memória, trata-se de uma memória como a que têm os anjos : memória que nos liga à eternidade.
O devir está sempre no meio: ele não é uma linha que liga dois pontos, ele é linha que passa entre dois pontos, uma linha transversal( as linhas transversais nunca se fecham em contornos).O devir não é exatamente a diferença entre o adulto e a criança,mas Diferença que está entre o adulto e a criança, e que os faz se comunicarem pelas suas diferenças, criando um contágio, um Afeto. É a História ( pessoal ou coletiva) que possui o passado e o futuro como pontos que o presente liga, ao passo que o devir está sempre no meio. Porém, ele não é uma média, ele é meio : ele é zona indiscernível que constitui a vizinhança entre o adulto e a criança. O presente do devir não é o presente cujos termos complementares são o passado e o futuro, uma vez que o presente do devir é o presente da metamorfose: esquecimento que cura dos fantasmas do passado, criação do novo que nos liberta de todo sentimento de esperança em relação a um futuro que nos deixa passivos.A criança do devir-criança não está no passado: ela co-existe com o adulto, mas não é feita de lembranças psicológicas deste.Ela é uma "criança molecular", imperceptível à percepção que só vê o já visto.
Segundo Deleuze-Guattari,molecular é aquilo que é, ao mesmo tempo, elementar e cósmico:elementos mínimos, heterogêneos,conectados ao absoluto.Intensos, tais elementos singulares não podem estar contidos em uma forma:seus limites são limiares trabalhados por dentro por uma Vida que de si mesma transborda.O devir-criança não é uma regressão ao estado de criança, tampouco ele é um mero imitar, infantilmente, uma criança.Quando devimos criança, tornamo-nos algo que a "forma adulto" nos impede de ser, ao mesmo tempo que a criança torna-se outra coisa que a criança definida em oposição ao adulto.No pintor Klee, por exemplo, a criança do devir-criança que ele inventa torna-se uma criança feita de linhas e cores,ao mesmo tempo que ele próprio se torna outra coisa , coisa esta que a obra testemunha e dá a ver.Essa criança que vemos na tela, e que é o produto de uma metamorfose, de um devir, não é menos real do que a criança que vive na nossa memória pessoal.Sua realidade é aquela que a arte engendra, libertando a Vida dos limites estreitos de nossas vivências pessoais. Quando devimos criança, captamos o que na criança há de intempestivo e eterno, cujo futuro não é virar adulto, mas produzir no adulto uma criança que não é a que ele foi. A criança do devir-criança não está no passado, tampouco somos o futuro dela: ela co-existe com nosso presente, libertando este do passado que ele imagina prolongar e do futuro em relação ao qual ele crê ser uma continuação daquilo que hoje é.Como dizia Espinosa, a criança do devir-criança não é um estado, mas uma atividade de re-generar-se, isto é, de nascer de novo para o novo.Devir é revir. Devir é retornar.Mas o retornar do devir não é um revir ao passado. Trata-se de retornar ao hoje, a este mesmo hoje do qual a imaginatio sempre nos afasta. Devir é retornar ao hoje para nele intuir o eterno que nunca é o mesmo a cada vez que a ele retornamos: muda ele, mudamos nós nele, como parte dele.]

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deslimite pode ser compreendido como um processo ao mesmo tempo estético e existencial, no qual vida e poesia se mostram como as duas faces de uma mesma Vida a qual não se pode impor uma forma ou limite . Esta Vida somente se deixa apreender em uma experiência de devir. O devir não é uma forma ou algo de determinado, mas um processo no qual os seres atingem seus deslimites (conforme veremos ao longo do estudo) .
Atingir o deslimite não significa destruir-se ou negar-se. Ao contrário, é o limite que destrói a invenção que se pode e se deseja. O deslimite , portanto, é uma experiência com a Vida, e não com a morte ( nos vários sentidos que essa palavra pode ter).
Embora seja uma experiência eminentemente poética, isso não significa que ela seja suscitada apenas pela leitura de poesia. A essência de tal experiência é exatamente nos ensinar a alargar a compreensão do que seja poesia, como faz Manoel de Barros, para que a vejamos em todas as coisas que, rompendo seus limites, deixam ver a Vida.




Paul Klee, Travessura.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

o bom encontro, o agenciamento




Um texto, para mim,
é apenas uma pequena engrenagem
de uma máquina extratextual.

Gilles Deleuze


O bom encontro, o agenciamento, faz nascer um terceiro ser entre aqueles que se encontram. Este terceiro não é como um filho, uma vez que o filho pode viver, depois que cresce, longe dos pais; já o terceiro ser nascido do bom encontro só pode aumentar e crescer enquanto aqueles que se encontram crescem.Este terceiro devém  um novo ser do qual os dois que se encontram se tornam partes singulares, ativas.O novo ser nascido faz renascer como novos os seres que se encontram e o produzem. Este novo ser, este terceiro, não existe antes do encontro, mas de alguma forma ele já existe virtualmente na imanência da natureza.É este terceiro que torna inteligível a ação daqueles que passam a viver sob o seu sentido. Como diz Deleuze, uma obra , quando nasce do afeto à vida,também engendra  para a vida quem a fez.Um exemplo: a amizade. A amizade é um terceiro que nasce do encontro entre dois amigos, ela também é uma obra. Os amigos a produzem ao mesmo tempo que ela os produz como amigos.Este terceiro , a amizade, não vem de fora dos dois, pois ela nasce em seus íntimos como aquilo que os abre ao comum.A única coisa que vem totalmente de fora é a morte, diz Espinosa.A vida, ao contrário, vem sempre de um íntimo que se conecta a outro íntimo na intimidade da Vida. Esta intimidade não é uma interioridade, mas imanência da potência a si mesma.
A amizade torna os amigos  inteligíveis um para o outro mediante este terceiro que os torna amigos. A amizade não é apenas uma ideia comum a ambos. Ela também é um corpo comum, um terceiro corpo, mediante o qual os dois corpos passam a existir mais. Trata-se de um corpo expressivo, um corpo intenso não orgânico.Existir, para o corpo, é agir.A amizade é ideia comum a duas ideias, corpo comum a dois corpos. Comum não significa homogêneo; o comum é a relação de heterogêneos que produzem um terceiro deles diferente, e dos quais eles são partes ativas, intensas. A amizade não é algo que vem apenas de fora, e é por isso que ela somente se torna inteligível tornando inteligível o amigo como aquele que cria a amizade como encontro com a diferença, encontro este que gera alegria.O corpo comum dos amigos tem a amizade como ideia comum que faz o corpo agir mais: e um corpo age mais quando ele age pela amizade, pela generosidade.Para o corpo, agir não é apenas correr, saltar, pular; agir também é ouvir, olhar e mesmo se calar.
Um bom encontro, um agenciamento, nunca é feito apenas de dois, mas de três. As tiranias, os maus encontros, sim, são sempre feitos de dois: dois que rivalizam ou duelam, ou dois como dupla tirano-servo, onde o primeiro precisa do segundo e o segundo do primeiro. Do mau encontro nada nasce, embora dele sempre algo morre ou se enfraquece.
O terceiro que nasce do encontro dos dois não é um três que sucede numericamente ao um e ao dois. Diferentemente, o terceiro é potência que multiplica cada um por mais de um, pois os multiplica pela potência que os torna múltiplos, singulares.
Aristóteles dizia que a amizade, como virtude, é o justo meio entre o egoísmo e o altruísmo. No egoísmo a amizade está ausente, ao passo que no altruísmo ela se encontra em excesso. Assim, encontrar o justo meio ou justa medida seria o que nos torna amigos.Em Espinosa, diferentemente, a virtude é o esforço do desejo em  atingir ao seu limite. O limite de um desejo ou virtude nunca é outra virtude ou desejo , pois como poderiam as virtudes se autolimitarem , duelarem ou competirem!?Na verdade, um desejo como virtude é aquele que produz um terceiro desejo comum a outro desejo, terceiro desejo este que possibilita ao desejos  agenciados  desejarem  mais. O limite de um desejo nunca é o justo meio entre sua carência e seu excesso. O limite de um desejo é seu esforço para continuar desejo.



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

exposição: territórios e fugas



A potência das questões vem sempre de outra parte que não das respostas
e desfruta de um livre fundo que não se deixa resolver.

Deleuze, Diferença e repetição.