sábado, 11 de maio de 2013

evento: lançamento do livro do Professor e Filósofo Cláudio Ulpiano

Mestre na filosofia de ensinar Deleuze para todosPor: Hugo Pernet/ Foto: Weiler Filho
Tese de doutorado de Claudio Ulpiano vira livro, que é lançado no auditório B8, após 14 anos de sua morte


x-alunos, amigos e familiares prestigiaram debate sobre vida de Ulpiano
x-alunos, amigos e familiares prestigiaram debate sobre vida de Ulpiano


Jovens e idosos disputam uma cadeira para se sentar. A sala do auditório B8 ficou lotada, no dia oito de abril, para o lançamento do primeiro livro, Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento, do professor e filósofo Claudio Ulpiano. Após 14 anos da morte do professor, o encontro lembrou as concorridas aulas na Uerj, na UFF e em cursos no Rio de Janeiro, ministradas por Ulpiano, inovador na filosofia de lecionar, desde 1978.

– Eu encontro alunos do Claudio que até hoje me dizem: “Ele mudou a minha vida” – afirma Silvia Ulpiano, mulher de Claudio e responsável pela organização do livro, resultado da tese de doutorado do filósofo, defendida na Unicamp.
Sempre com a sala cheia, Ulpiano dava aula para alunos de diversos cursos. Elton Luiz Leite de Souza, professor da UniRio, conta que, nos anos 80, um amigo, estudante de sociologia, o convidou para assistir a uma aula “imperdível” na Uerj, onde ele cursava filosofia. Desde então, começou a frequentar as aulas de Ulpiano, que, segundo ele, “mesclavam intuição poética belíssima com rigor conceitual filosófico”.
– Ele mostrava a importância da filosofia também para os não filósofos. Com preocupação pedagógica no diálogo, o Claudio atraía estudantes de comunicação, direito, engenharia, sociologia, cinema – ressalta Souza.
O cantor e compositor Paulinho Moska foi convidado por um amigo para ir às aulas de Ulpiano, em um curso no Jardim Botânico. Naquela época, Paulinho já havia lançado o primeiro CD. Após convivência com Ulpiano, o cantor diz ter “encontrado um caminho de busca através das palavras e dos sentidos”, para compor as faixas do segundo disco.
– Eu acabei resultando em um compositor de música popular que pretende também fazer com que o ouvinte se force a pensar – argumenta Paulinho, que gravou a música Gotas de tempo puro, com refrão escrito por Ulpiano: Choveu sobre mim/ Gotas de tempo puro/ Trovoadas de passado/ Relâmpagos do futuro.
Em 1995, após convite de Paulinho, o compositor e músico produtor Sacha Amback assistiu à primeira aula de Ulpiano. Para ele, a sala ficava muito cheia, por isso visitava o professor depois dos encontros no cursos livres. Ulpiano tinha a vida restrita ao estudo da filosofia, não frequentava “lugares comuns”, mas, segundo Silvia, gostava de cinema, música, teatro e dança. Sacha, então, se aproximou do filósofo pela afinidade artística:
– Ele tinha um piano na sala da casa, onde eu ficava tocando canções de uns compositores que eu gostava - descreve Sacha, que foi aconselhado por Ulpiano a compor letras de música a partir da leitura dos textos do filósofo Deleuze.
Fundado por Silvia, em 2005, com verbas públicas de Macaé, cidade natal do filósofo, o Centro de Estudo Claudio Ulpiano tem o objetivo de preservar e de divulgar o trabalho do professor. O material, disponível no site www.claudioulpiano.org.br, é organizado a partir de gravações de áudio e de vídeo doadas por ex-alunos.
– No lançamento do livro, tinha uma garotada de 20 e poucos anos que o conhecia via internet, pelo Centro de Estudo Claudio Ulpiano – analisa Souza. - Isso mostra a importância do Claudio para as novas gerações, no mundo de hoje.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Manoel de Barros e o conatus ( trecho de novo livro sobre o poeta a sair no segundo semestre)






Minha linguagem não tem função explicativa,
só brincativa.

Manoel de Barros



1.No poema Lacraia, o poeta nos fala de uma lacraia cujas partes foram desmembradas. Isto ele viu quando criança.O poeta, afirma Manoel, é aquele que "vai à infância e volta".Inteira, a lacraia se assemelha a um trem: neste, vagões unidos que se seguem a partir da locomotiva que vai à frente;naquela, gomos unidos a partir da cabeça.As semelhanças entre uma lacraia e um trem param sobretudo neste ponto:descarrilado, um trem sucumbe em pedaços que , por conta própria, jamais  voltam a formarem uma unidade; já quando a lacraia é desmembrada, e cada gomo/vagão seu é separado do outro, logo a "força de Deus" mostra-se onde menos se espera: cada parte da lacraia se move e busca a outra, elas se procuram. Busca na outra o todo sob o qual cada uma existe mais. Cada parte se esforça para se integrar ao todo que é mais do que a mera soma das partes.Essa força também é amor.Segundo Espinosa, cada ser se esforça para perseverar na existência. O nome desse esforço é conatus , ou desejo. Co-natus: junto ao que nasce. Assim, o conatus está sempre junto ao que nasce para permanecer existindo, pois o esforço para permanecer na existência nunca está no passado, mas no presente - não como coisa parada ou estática, e sim  como esforço dinâmico, como potência,  desejo e afirmação. Em nós mesmos, cada molécula, cada célula, cada parte que nos constitui expressa o mesmo conatus, o mesmo desejo.Existir é idêntico a esse esforço de tudo aquilo que, nascido, continua a (re) nascer a cada momento.Por isso, o nascer é um ato que nunca se completa, posto que nunca termina para aquele que se percebe como parte da natureza que é sempre nascer, e nunca morrer.Natureza vem de natura, que é exatamente nascer. Em grego é physis, que tem o mesmo sentido. O conatus é o esforço do ser finito para permanecer no infinito renascer da natureza.Manoel de Barros, por sua vez, fala em "natências" , não como data em que nascemos, mas o "tempo quando" , não cronológico,  no qual , como duração viva e intensa, estamos sempre a (re)nascer.
Cortada a lacraia em 5 partes, cada uma das partes expressa um conatus que não pode ser numericamente quantificado, posto que ele é, ao mesmo tempo, um e múltiplo. Mesmo na lacraia inteira cada parte dela, suas infinitas partes, já se esforçam para perdurar expressando o todo-lacraia, que é sua essência e ideia.O desmembramento da lacraia poderia ser em 10 ou cinquenta partes: em cada uma dessas partes o mesmo conatus se expressa de forma única e singular, como potência. É esse todo que dá a cada parte a sua inteligibilidade  e explica o fato de cada parte se mover de forma que não é apenas movimento como resultado de ações externas, pois há uma força que guia cada parte : guia não por fora, mas a partir da imanência de cada uma. As partes desejam  refazer a relação que eram, o todo que eram.Em cada parte está a expressão do mesmo conatus, ao mesmo tempo um e múltiplo, posto que multiplicidade. E mesmo na lacraia inteira cada parte dela persevera no mesmo desejo: o de continuar na sua existência, e essa é a maior perfeição que ela aspira. Uma lacraia  não precisa ser um homem ou um anjo para, enquanto lacraia e permanecendo lacraia, expressar sua maneira de ser, seu modo, sua perfeição enquanto lacraia.Segundo Manoel de Barros, as partes procuram se emendar, elas são movidas por uma emendatio, tal como o intelecto  precisa se emendar quando se acha separado do contínuo existir da vida, a começar pela vida do seu corpo. No Tratado sobre a emenda do intelecto, Espinosa afirma que todo aquele que deseja produzir algo necessita de um rascunho. O rascunho é o esboço de um ser a produzir, não de um ser a imitar ou copiar. Como se participasse dessa discussão, Manoel de Barros afirma que a poesia nos põe em "estado de rascunho", tornando-nos "formas em rascunho".Emendar não é apenas ligar uma parte à outra, mas ligar cada parte à outra em razão de um todo que faz cada parte existir mais.Isto vale para uma lacraia, como vale para um livro, um poema, uma obra, uma vida.

2.Há uma diferença entre "parte" e "pedaço".Para se poder compreender a diferença, porém, é preciso que se faça a ideia do todo. Na arqueologia, por exemplo, muitas vezes se acham pedaços. Para que estes virem partes, e se tornem mais inteligíveis e compreensíveis, é necessário fazer uma ideia do todo ao qual tais partes pertenciam, mesmo que este todo não seja dado de forma tangível, como é o caso do todo da cultura. Se não se consegue formar uma ideia do todo, do pedaço não nasce a parte.A parte faz parte, ao passo que o pedaço é o caco que restou de um ser partido.O mesmo vale para a natureza.A maioria dos homens se comporta como pedaços, não como partes.Os pedaços não se compõem, as partes sim.Frequentemente, a passionalidade e a ignorância tornam o homem um pedaço com contornos pontiagudos, prontos para ferir ou supostamente se defender da pontiagudez do outro, o que finda por ferir, primeiro , aquele que assim pensa e age, pois o fere por dentro a ideia confusa e equivocada, fruto que é da  tristeza e do ódio.A natureza não é um Frankenstein, mas uma polifonia.Acumular muitos pedaços quantitativamente é menos do que ter de uma coisa apenas uma parte, por mais diminuta que ela seja.Através da parte sempre se vê o todo do qual ela faz parte, ao passo que quanto mais pedaços se vê e tem menos se enxerga e se conquista, menos se compreende.A natureza não é feita de pedaços, ela é feita de partes. O mesmo vale para nossos desejos e ações.No homem livre cada pensamento e ação é uma parte dele, ao passo que no escravo as ações e os pensamentos são vividos como pedaços sem muito sentido, posto que deles está ausente o todo, que é o que dá vida.No amor e na amizade  cada um é uma parte, não do outro, mas do encontro.A infelicidade acontece quando um quer fazer do outro um pedaço seu , na ausência de um todo, de um bom encontro.As imagens e aparências somente deixam de ser pedaços, e se tornam partes, quando aprendemos a ver para além delas, em busca das essências que elas expressam.A essência não é uma forma estática, ela não é uma figura com contornos e limites  rígidos; a essência , diz o poeta, é “um minadouro”: dela mina e brota um sentido sempre novo,  que ela retira de sua imanência, de seu coração.

Na minha infância havia um personagem louco que caminhava pelas ruas do bairro portando um pedaço de um espelho.Ele nunca olhava para as coisas e pessoas diretamente, mas sempre através daquele pedaço de espelho.Apressadamente, contorcendo-se, ele se esforçava para em muitas posições mover o tronco e a cabeça, virando também o pedaço de espelho em várias direções, como se quisesse apreender dos seres todas as suas faces, tal como o faz o artista cubista.Mas naquele pedaço tudo o que se refletia eram pedaços, um mundo em pedaços.O louco carecia da ideia que, dando saúde a seus olhos, permitiria que ele visse cada coisa como parte de um todo, a começar por ele mesmo. Aquele pedaço de espelho pertencera a um espelho cuja unidade se quebrara e jamais voltaria, talvez, a ser restituída.E, junto com a unidade perdida, perdeu-se para aquele homem a unidade da linguagem, do seu corpo, da sua mente.Assim, procurava ele pela unidade onde ela jamais esteve.E a mera soma de pedaços só faz aumentar o tamanho do todo perdido ( como as muitas fotos guardadas do amor que acabou).
O todo é sempre maior que suas partes. Mas é um maior  que não torna cada parte dele menor do que si mesma; ao contrário, quanto mais cada parte  expressar, em seu íntimo, esse todo, mais ela se torna maior , mais ela existe, mais ela se compõe com a outra parte, mais ela adquire singularidade e afirma sua diferença, sem negar ou destruir a outra parte, que é outra parte do mesmo todo. O que é verdadeiramente maior nunca diminui, nunca age por "comparamentos", mas por "comunhão". Enfim, diminuir é negar ( e como poderia o todo negar sua parte? Se ele o fizesse, estaria negando a si mesmo, o que seria um absurdo!).
Fernando Pessoa narra em um de seus poemas um fato que ele presenciara ainda bem jovem: distraída, a ama deixa cair , do alto de uma escada, um vaso de rara porcelana. O vaso rola pela escada, salta sobre o último degrau e se quebra, esparramando-se pelo chão em incontáveis pedaços, como estrelas sem um céu.Em cada um dos pedaços, Pessoa se viu inteiro, como "outro": "e havia mais cacos do que havia de louça no vaso".
Conforme afirma Arnheim, "um pedaço é como uma melodia interrompida pela metade", enquanto que a parte é feito um momento singular que se conecta com os outros momentos singulares para durarem na continuidade de uma melodia polifônica.O pedaço é sempre incompleto, ao passo que a parte somente se completa por não ser, sozinha, inteira.
A parte é partícipe, e extrai seu sentido não sozinha, mas em conexão. O pedaço, ao contrário, é sempre desconexo, como se fosse um todo à parte: à parte do todo, à parte de si mesmo. Esse existir como um todo à parte é a solidão característica de tudo o que é pedaço, enquanto que a diferença constituinte de toda singularidade se expressa e se afirma em um fazer parte, mesmo que seja um fazer parte de um "todo ainda por vir", como diria Nietzsche. Esta conexão que constitui uma singularidade recebe, em Deleuze, um nome: agenciamento.