quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Manoel de Barros: o "escovar a palavra"

                                                                           






                                                                                                        Quem se aproxima da origem se renova.

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O que não aprendeu ainda a renunciar ao desejo de informar,
ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar.
Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva.
Poeta não precisa de informar sobre o mundo.
Poeta precisa de inventar outro mundo.

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Palavra séria, para mim,
é aquela   que convida as outras 
para brincar de poesia.

Manoel de Barros

Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz ter visto, quando criança, dois homens "escovando osso" ( o nome do poema é exatamente "Escova").Isso o afetou singularmente. Tempos depois, ele soube o nome do  que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam "arqueologia", eles eram "arqueólogos". "No começo achei que aqueles homens, afirma o poeta, não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra  o dia inteiro escovando osso.Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos . E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor".Desse aprendizado ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante , só que com as palavras. Ele aprendeu a "escovar" as palavras.
Os arqueólogos escovam o osso , algo aparentemente inerte e morto, para nele fazer viver a "arqué". "Arque-ologia" procede de "arqué". "Arquivo" também procede. "Arqué" tem por sentido "princípio", "causa" ,"fonte", "origem" ou "começo".Só arquivamos( em armários, gavetas , museus ou em nossa própria memória) aquilo que julgamos ter alguma relação com nossa existência, seja como causa , fonte ou origem.Em nossa memória não está apenas o passado, está também o que dá sentido ao presente.Em A Arqueologia do Saber, Foucault mostra que o saber é prática de construção de "arquivos" que co-existem sem se sucederem em progressão.No exemplo de Manoel de Barros, os arqueólogos descobriam que havia, naquele osso, algo arquivado: arquivado não como um papel em uma gaveta, já que , nesse caso, o que está arquivado é o próprio osso como arquivo, como signo, como sentido. O tempo estava arquivado nele, e ele, o osso, estava arquivado no tempo. E este tempo não é o passado no qual aquele osso foi esqueleto, já que se trata também do tempo no qual ele é descoberto como arquivo.Um osso não é apenas um osso, quando nele descobrimos um arquivo.Outrora ele fazia parte de um esqueleto escondido sob pele e músculo.Hoje, como arquivo, percebe-se que ele faz parte do universo inteiro, e sobre este ensina.O osso vira um documento: docere, aquilo que ensina.
O poeta escova a palavra, e a faz nos ensinar coisas que a mera informação utilitária não ensina. O poeta escova a palavra para nela fazer nascer sua alma: o sentido. Escovada, tornada arquivo, ela não designa apenas o referente que o uso consagra, pois ela passa a expressar também a origem que a inventou, e essa origem não está fora, mas lhe é imanente como ato de invenção.Esta é a fonte do sentido: a invenção. Ao escovar a palavra, não importa qual, o poeta acha a poesia, tal como o arqueólogo acha no osso o mundo no qual ele era uma parte, e  hoje esse mundo é parte dele, como mundo a descobrir. A palavra se torna mais do que palavra quando o poeta a escova, para nela fazer viver uma memória.
Nietzsche dizia que sempre nos esquecemos que nunca vivemos o que agora vivemos. Ele evoca então  uma memória singularíssima: uma memória que deveria nos lembrar que nunca vivemos o que agora vivemos; uma memória não do passado ou do que se viveu, mas uma memória do novo, do que nunca se viveu. Pois é disso que a gente se esquece: do novo. Nesse sentido, a percepção utilitária, aquela que busca sempre o "já visto" em todo ver, tal percepção também precisa ser escovada, para que assim de fato possamos deixar nascer em nós a memória daquilo que a todo tempo nasce,  e que somente pode ser visto por  uma "visão fontana" , uma visão que também é fonte do que vê.Quando olha para uma árvore, nela somente vendo o útil, o lenhador vê o possível móvel ou as folhas de papel que guiam sua percepção interessada, que se torna cega de uma cegueira ignorada. Ele não vê a árvore, muito menos a poesia que a faz e fez. Ele não vê a "arqué", ele não vê que ali há uma fonte.Em um museu, um objeto exposto deveria expressar essa poesia que faz o  objeto ser mais do que um objeto, tal como o escovar a palavra a faz ser mais do que mera informação utilitária que amanhã já será sucata, feito as informações  do jornal de ontem. O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata, o verdadeiro novo nunca vira ontem.O novo é sempre fonte:arqué.A fonte é a "origem que renova".A fonte não é como um ponto de onde um fluxo jorra, pois este fluxo que a atravessa vem de um infinito com o qual ela permanece ligada. Pois é isto ser uma fonte: nos ligar a um infinito que nenhuma metragem utilitária pode diminuir. A fonte é o que nos liga e amplia.
"Poesia": poiésis, produção. Assim, o escovar é prática de cuidado também. Mais importante do que o "conhece-te a ti mesmo" é o "cuida de ti mesmo". Em latim, "caute" é a palavra que Espinosa imprimiu em seu anel. De caute provém cuidado também, assim como "curador": aquele que cuida."Caute" também pode ser "cautela" enquanto conduta ética. Desse modo, a poesia não é um conhecer meramente  intelectual, ela é um cuidado com o sentido, um cuidar do sentido.E é por isso que a poesia é também uma ética e uma clínica, como deveria sê-lo todo conhecimento, que nada é se não for também autoconhecimento. Assim , ao escovar um simples osso, é a nós mesmos que procuramos conhecer, não como um ser à parte , mas como parte de uma Natureza que é Poiésis.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

o homem-mosca e o homem-abelha





Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo.

Manoel de Barros


Minha tia, Dona Emília, me dizia: “meu filho, existem dois tipos de homem: o homem-mosca  e o homem-abelha.O homem-mosca , ao entrar em um lugar o mais limpo que seja, sempre procurará pela sujeira, real ou imaginada, que ele supõe estar ali. Sobre essa sujeira ele vai pousar , vai construir sua casa, e daí julgará tudo por essa sujeira: a sujeira sairá pelos seus olhos de inveja, cobiça e desconfiança; sairá pela sua boca como palavra de maledicência e ódio. O homem-abelha, mesmo diante do pântano da maior sujeira, mesmo aí ele achará uma flor onde pousar e se apoiar. Daí ele olhará ao redor, verá a sujeira, mas verá também que não é nela que ele está apoiado e, por isso mesmo, será capaz de voar sem se sujar, uma vez que nesta certeza estará apoiada sua intenção e confiança. E seu viver irá de flor em flor, mesmo que raras, e seu fazer será um esforço para aumentar os pontos de apoio para aqueles que , em meio a tanta sujeira, nela não querem pousar. O homem-abelha é fecundado e se torna instrumento de fecundar beleza, vida, dignidade, poesia, invenção. Então, meu filho, se esforce o máximo que puder para ser um homem-abelha: veja onde pousa, creia que sempre você encontrará onde pousar mesmo onde se multiplicam e mandam os homens-moscas”.
Depois, ao ler os deleuzes, os espinosas, os epicuros, os nietzsches, os lucrécios, os manoéis de barros...compreendi que minha tia, em sua sabedoria que não “vem em tomos”, sabedoria esta que não está nos projetos de pesquisa que os doutos acadêmicos latteficam,compreendi que o lugar onde pousamos é o “dentro da gente”: é o que pensamos que constitui sujeira ou flor. Ao entrar dentro  dele, o homem-mosca só encontra sujeira e lama, sujeira e lama que ele imagina que lhe existem fora: e ele mesmo põe os ovos que se multiplicarão e se alimentarão  desse ódio e tristeza.  O homem-abelha, como diz Manoel de Barros, “dá o amor para que este não apodreça dentro dele”.