segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

trecho do livro





Encontramos esboçado em Gilles Deleuze um dos problemas que tencionamos desenvolver, pois nos parece que ele toca de perto aquilo que em Manoel de Barros constitui a experiência do deslimite. Afirma Deleuze que

"Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a
uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe
ou do inacabamento. (...) Escrever é um caso de devir, sempre
inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer
matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma
passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido".( Deleuze, Crítica e clínica, Ed. 34, p.11)

A Vida é renascer constantemente, a todo tempo e instante. Por conseguinte, a Vida é metamorfose, arte. A Vida nunca nasce, quem nasce são os indivíduos. A Vida sempre renasce nos indivíduos que nascem. A Vida, portanto, é puro renascer: por nunca nascer, a Vida também jamais morre (quem morre são os indivíduos). A Vida não é uma, mas muitas: são todas as que tivermos a potência de inventar e criar, conjugando nosso viver com a Vida que em si mesma é criação, Arte.
A Vida é um processo que atravessa nosso vivido e rompe os limites utilitários deste; do mesmo modo que o Sentido , quando trabalhado pelo poeta, emerge na linguagem extravasando as significações dominantes que prescrevem à palavra um limite. O deslimite é o processo que faz do inacabamento o estado sempre renovado que não deixa com que as coisas acabem, sendo então reinventadas pelo processo criativo tanto na poesia como na vida.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

o espelho de espinosa

Os espelhos côncavos e convexos alteram as coisas. Existem  ainda os espelhos de bufonaria, que distorcem as coisas, deixando-as mais feias ou ridículas do que de fato são. Há  espelhos que aumentam o que é pequeno: eles são antíteses daqueles que diminuem o que é grande. Um espelho pode ser o melhor possível, mas pouco ou nada refletirá se estiver sujo. O espelho comum, o espelho plano, é aquele no qual nos procuramos: nele vemos, com nossos olhos, os nossos olhos vendo-nos. Tal espelho reflete o que somos no momento: ele não mente,e nisto é mais confiável do que a palavra. Todavia,  ele não mostra a face de ontem ou a que será, mas sempre a face de agora,cuja constância não é confiável.O espelho mostra o rosto enquanto parte do corpo, ou pode mostrar o corpo inteiro, se grande o espelho for. 
Mas e o espírito, que espelho o mostra?Segundo Espinosa,o espírito é,ele mesmo, um espelho. Como tal, ele reflete. O espírito  pode ser um espelho de duas maneiras, cada uma delas completamente diferente da outra.
Primeiramente, na vida comum, o espírito se torna imaginação ( imaginatio que reflete  o que ele imagina que as coisas e as outras pessoas são.A imaginação está sempre a imaginar, não a conhecer. O espelho comum  reflete as coisas  porque atrás dele há o aço ou algo fosco  que impede que a luz atravesse o vidro. Na imaginação há um equivalente do aço ou do fosco: são as afecções ou paixões,sobretudo as tristes. As paixões , assim como o aço,impedem que a luz da realidade atravesse o espírito e o torne translúcido a si mesmo. A imaginatio é a opacidade que o senso comum chama de realidade, tal como a hipótese da Matrix
No espelho concreto,porém, o aço faz com que a luz retorne tal como ela tocou o vidro,para assim devir imagem; já na imaginação a paixão emite apenas a si mesma na luz que recebeu. A imaginação passional é como um espelho que recebe luz mas devolve aço, emite o fosco,de tal maneira que ela é um espelho pelo avesso: crê receber o que de fato emite, ignorando o que emite.Na verdade, quando se torna apenas imaginação, o espírito é como um espelho que a nada reflete,a não ser a sua impotência para refletir.
Mas existe ainda outra forma de o espírito ser espelho. Todo espelho se explica por aquilo que vem nele se refletir. Na imaginação, vem se refletir apenas  o que, de fora , age sobre o corpo. A imaginação reflete esse agir das coisas corpóreas sobre o nosso corpo; a imaginação  é a alma reagindo a este agir das coisas sobre nós.Contudo, ela ignora este agir e imagina que as coisas que estão nela nasceram exclusivamente dela,como se ela fosse livre e pairasse acima das coisas corpóreas. Não raro, a imaginação até mesmo despreza as coisas corpóreas e delira que a inspira uma divindade com a qual ela mantém relações privilegiadas, divindade esta que a ajuda a ver o futuro ou mesmo outras vidas, além de dotá-la de poderes que fogem à compreensão da ciência e das coisas terrenas. Todavia, a imaginação passional   ignora que aquilo que ela imagina  nascer apenas dela, nasce na verdade de causas físicas e explicáveis pela natureza, a mesma natureza que ela despreza.
Segundo Espinosa, o próprio espírito é um espelho, um espelho distinto da imaginação. E o que o  espírito, enquanto espelho, reflete?Ele reflete o que nele vem mirar-se. E o que vem nele se mirar?O infinito. O espírito é um espelho que reflete o infinito. Da mesma forma que olhamos de manhã em um espelho para conhecermos  como está nosso rosto, o espírito é um espelho no qual podemos ver/conhecer o infinito: este  é uma aurora que nunca escurece,pois não o pode turvar  o fosco.
O infinito nunca aparece ou pode ser conhecido à parte de um espírito que o reflete, um espírito singular .  Um espírito que  reflete o infinito não é exatamente o que mais livros leu,tampouco o que tem títulos acadêmicos e que tais. O espírito que reflete o infinito é aquele no qual se reflete a simplicidade, a modéstia, a firmeza , a generosidade ,a inventividade, o amor e, também, a coragem. Antes de qualquer coisa, nesse espírito se reflete o corpo do qual esse espírito é o espelho imediato. Contudo,  o corpo não surge sozinho, tampouco aparece como um corpo imaginário,vaidoso , narcísico. O corpo aparece agenciado e conectado com o universo inteiro.Não é mais apenas um corpo que sofre a ação de outro,  assim padecendo;diferentemente, quando refletido no espírito, o corpo se torna a expressão ou parte ativa da Natureza. Refletindo seu corpo, o espírito reflete/conhece a si mesmo como parte do infinito que reflete.

Para Espinosa,o homem não foi feito à imagem de Deus, pois imagem é reflexo,  imagem  não é espelho. Ser apenas reflexo é o que caracteriza a imaginatio, ao passo que ser espelho, e refletir, é o que expressa o espírito. O homem não é imagem ou reflexo de Deus,ele é o espelho que reflete o infinito, assim pensa/reflete Espinosa.  O espírito reflete o infinito não como uma imagem,  ele o reflete como afeto e  ideia. O homem livre não é o que vive à parte, ele é  o que vive ou se esforça por viver de acordo com aquilo que seu espírito reflete. O homem  da imaginação vive como um reflexo das coisas,ao passo que o homem livre se esforça por viver de acordo com aquilo que seu espírito reflete. A luminosidade translúcida da realidade que nele se reflete já o lustra e o torna apto a refletir ainda mais adequadamente, potentemente, ativamente  - assim o  libertando do aço refratário do passional  e do fosco das opiniões. 

Mille Deleuze

domingo, 24 de novembro de 2013

Espinosa: o geógrafo das paisagens da alma



Muitas traduções da obra de Espinosa perdem em clareza quando não atentam para a distinção entre dois termos : afeto e afecção. Algumas traduções, as mais danosas para a compreensão do pensamento de Espinosa, traduzem ambas por uma única palavra: "paixão". Outras ainda as traduzem por "sentimento". E há aquelas que mantêm apenas o termo afeto,reduzindo o sentido de afecção à mesma coisa que afeto.Todos esses procedimentos lançam confusão não apenas sobre o que Espinosa quer dizer, como também sobre o próprio sentido desses termos em nossas vidas diárias. Sem dúvida, a dificuldade maior para os tradutores reside no sentido do termo "afecção" ( affectio, em latim).Isso porque há um certo materialismo no sentido original deste termo, fato que os tradutores mais idealistas ou espiritualistas reputam indigno de colocar de forma essencial na compreensão de todas as coisas, inclusive o homem. Mas é um erro conceber o termo afecção apenas em sua acepção materialista.
Etimologicamente, afecção pode ser traduzido por "tocar", no sentido de que o artesão toca o barro, o pintor toca a tinta, o sol toca o nosso rosto, etc. A afecção é uma ação de um agente ( nos exemplos dados, o artesão, o pintor e o sol).Ao tocar aquilo que ele toca, o agente produz uma modificação naquilo que ele toca. Essa modificação é sempre instantânea, e modifica o corpo tocado.Nos exemplos que demos, a afecção é a modificação que um corpo sofre ( a tinta, o barro, nosso rosto) devido à ação de um outro corpo que lhe permanece externo. Esse primeiro sentido de afecção envolve a relação de determinação de um ser finito sobre o outro ( mesmo o sol, embora imenso, é um ser finito tanto quanto o nosso rosto que ele toca).Ora, toda ação engendra um resultado, um efeito. O efeito ou resultado de "tocar" é "ser tocado". O "ser tocado" é um índice ou sinal de que houve um "tocar". O ser tocado não é uma ação, como o tocar, mas um resultado, um padecer. O fato de ser tocado torna um ser paciente, no sentido de ele ser aquele que sofreu a ação.Enquanto o tocar é imediato, o ser tocado é sempre mediato: ele expressa uma ação que se fizera. O tocar envolve sempre uma percepção, ao passo que o ser tocado permanece existindo apenas na memória ou na imaginação, como uma imagem presente de uma ação ausente. Ou melhor, essa imagem se torna presente pelo esforço que nossa alma faz para recordar ou imaginar o tocar que se fizera em seu corpo, e do qual a imagem é o resultado, o indício ou signo. Na verdade, o ser tocado é a continuação do tocar persistindo na memória ou imaginação daquele que sofreu a ação. O "ser tocado" é exatamente o sentido de afeto ( em latim, affectus).
Vista da perspectiva do corpo que age, a afecção é um agir, um tocar. Entretanto, como ela nasce de um encontro de um corpo com outro, a afecção produz, no corpo que sofre a ação, uma marca, um indício, um vestígio. Esse vestígio ou marca não é um ser, ele é uma ausência do ser que agiu e produziu a marca. Então, no corpo passivo a afecção é esta marca da qual nasce a idéia que lhe é correspondente. Ora, uma ideia não nasce no corpo, ela nasce na alma. A ideia nascida dessa marca, dessa ausência, será exatamente o afeto.Tal idéia, por isso mesmo, será dita confusa, uma vez que uma idéia adequada expressa sempre a existência de um ser, e não a ausência dele. A idéia confusa também é chamada de “imagem” por Espinosa.É por isso que o afeto nascido da afecção é uma paixão.A paixão revela mais o estado do corpo que sofreu a ação do que a essência do corpo que agiu. Mas o corpo que sofreu a ação imagina que a idéia que nasce da ausência do corpo que agiu pode nos fazer conhecer o corpo agente. Essa idéia confusa se alimenta da ignorância de como ela nasceu, ela pressupõe a ignorância de que a afecção é ação de um corpo também. Quando compreendemos isso, percebemos que a afecção é uma ação inserida em uma Natureza que é Causa da ação de tudo que existe, posto que a Natureza é sempre Agente. As idéias confusas, as paixões, nos deixam reféns das imagens, dos efeitos. Sob as paixões, confundimos o efeito com a causa. Se as paixões nascem de ausências, por que elas têm tanta força sobre a alma?
Para Espinosa, é a alma que extrai de seu próprio ser a força para dar existência ao que é um mero efeito, uma imagem, um fantasma. É por isso que as paixões alienam a alma e impedem que ela se torne ativa. A alma se torna ativa pela compreensão nascida das idéias adequadas, que sempre expressam o que existe, e não a ausência do que existe alimentada pela impotência da alma para existir plenamente. Quando compreendemos que as afecções são sobretudo ações, e não o mero resultado passivo delas, conseguimos nos libertar da condição passional de sermos um mero resultado da ação das coisas sobre nós. Além disso, mesmo quando alguém se comporta movido por uma paixão, sobretudo as tristes, tal reagir também é uma ação: uma ação que pode menos do que poderia aquele que assim padece se ele de fato agisse de forma livre, alegre, potente. Quando compreendemos que tudo é ação, positividade, mudamos nossa perspectiva no entendimento daquilo que comumente chamamos de bem e mal, pois percebemos que nenhuma ação , nenhum existente, é um bem ou mal em si. Quando compreendemos a positividade da afecção, compreendemos que ser é existir, e existir é agir: mesmo na ação a mais pequena do mais ínfimo ser, intuímos a Ação da Natureza que nunca age visando outro fim que não seja sua própria Ação, sua própria Existência,que em nós se expressa como ação da alma, o compreender, e ação do corpo, o agir.Ser ativo não significa exatamente fazer muitas coisas que exigem músculos, movimentos agitados e "adrenalina", pois ouvir é uma ação, olhar também o é, e há uma virtude ativa em saber se calar ( segundo Espinosa, o "falar", o "falar muito" sem saber ouvir, é uma paixão muito comum em quem não tem realmente o que dizer).
De um certo tocar pode nascer o afeto do amor ou da amizade como resultado ou efeito ( as paixões alegres), ao passo que de um outro tocar pode nascer o ódio ou o rancor ( como paixões tristes). E o mais estranho: o afeto não é o tocar, mas o resultado acompanhado da idéia confusa ou imagem deste. É por isso que de um mesmo tocar pode nascer , em uns, o amor, em outros, o ódio . Por exemplo, o funk toca da mesma maneira, fisicamente falando, aqueles que o amam e os que o odeiam, pois o amar e o odiar não são o tocar, mas o resultado dele de acordo com a constituição ou modo de ser de cada um: de acordo com a maneira de ser de cada um, de um mesmo tocar nascerão afetos distintos; se uma pessoa se modificar, ou buscar viver de forma desalienada, o que hoje lhe provoca um amor passivo amanhã talvez não lhe provocará mais.Não podemos negar a existência de uma afecção, porém o vínculo entre a afecção e o afeto que dela nascerá dependerá do quanto somos passivos ou ativos diante daquilo que nos acontece. Não há uma causalidade férrea que determine que de uma determinada afecção nasça um afeto determinado. Quando compreendemos as razões que fazem uma afecção existir, nos tornamos capazes de desfazer os laços entre a ação das coisas e nossas reações em relação a elas, sobretudo se tais laços nos fizerem escravos ou passionais, isto é, incapazes de governarmos a nós mesmos.
Os tradutores mais apressados costumam então referir a afecção às modificações do nosso corpo causadas pela ação de outros corpos, ao passo que o afeto seria uma modificação nascida em nossa alma que espelharia a modificação gerada em nosso corpo. Todavia, essa visão dicotômica se torna incongruente quando nos debruçamos sobre um outro sentido de afecção, dessa vez referida não mais aos seres finitos, mas a Deus ou a Natureza. Tudo o que existe, segundo Espinosa, é uma modificação de Deus. Logo, tudo é uma afecção de Deus. As coisas nascem do tocar de Deus. Mas a quem Deus toca? Ora, por ser único, e tudo, Deus não pode ser tocado por algum outro ser que lhe seja externo. Se isso fosse possível, este ser teria que existir à parte de Deus. Todavia, se Deus ou a Natureza é, em Espinosa, tudo, não pode haver algo distinto dele , pois isso seria limitá-lo, o que é um absurdo. Assim, e isso parece e é poesia ( no sentido original de "poiésis", produção), Deus é um tocar que toca a si mesmo. É Deus que produz em si mesmo tudo aquilo que é uma modificação ativa dele mesmo. Deus é imanente a tudo: o que ele produz permanece nele, pois cada ser é uma maneira dele mesmo, uma modificação singular dele . Cada ser que existe é uma maneira de ser de um mesmo Ser que se expressa de infinitas maneiras. Em Deus, a afecção , o tocar, e o afeto, o tocado, são identificados à Potência divina de Existir.Todas as afecções de Deus existem de forma necessária. Em Deus, portanto, só há um afeto: o Amor. Das afecções de Deus não pode nascer outro afeto que não seja o Amor, e isto por uma necessidade que é idêntica à liberdade, necessidade esta que é imanente a cada ser singular que existe.Ser livre não é fazer o que quiser ou seguir uma inclinação, ser livre é agir de acordo com essa necessidade que produz o Amor. A identidade do tocar e do tocado, da afecção e do afeto, é o Amor que nasce do Amor: e por ele, nele e com ele nascemos nós mesmos como expressão singular de sua autoprodução.É a experiência desse Amor que leva o poeta, como afirma Manoel de Barros, a dizer “eu-te-amo a todas as coisas”.Esse Amor é uma Ação, não uma paixão ou um padecer. Esse Amor é uma Ação: ele é ação de produzir autoproduzindo-se , ele é Poiésis.
Somos uma modificação de Deus; logo, somos o resultado ou o produto desse Amor em Obra. Deus e o Amor são o mesmo, assim como são o mesmo, nele, o agente e o paciente. Ou melhor, em Deus há apenas o Amor como Agente: o paciente fica por nossa conta, quando desejamos aprender a Amar esse Amor, pois é com paciência que se o pratica. O afeto nascido assim é idêntico à idéia adequada que aprendemos a fazer de nós mesmos e da Natureza.
Deus é Ação, jamais uma paixão. Por não ser paixão, Deus jamais tem raiva ou fúria, tampouco pode modificá-lo o que os homens fazem ou deixem de fazer. Ele não espera devoção ou culto, nem obediência, pois somente os tiranos vaidosos, passionais, a isto querem.Deus não recompensa ou castiga. Ou melhor, a única recompensa é compreendê-lo, e viver de acordo com o Amor que ele é.Somos o produto desta Ação, somos uma parte dessa Ação, e compreender isso não se faz sem a Alegria que é idêntica ao Amor.Se somos um produto da Ação, é nossa essência o agir, e não o padecer ou sofrer.Deus é Perfeito porque ele é Ação de modificar-se: e é por essa razão que o homem mais sábio é aquele que se esforça para aperfeiçoar-se, e isto consiste em modificar-se. Em Espinosa, tudo o que existe é uma modificação ou afecção de Deus. Não apenas os corpos, as ideias também são afecções de Deus. Nesse sentido, há afecções que não são materiais, embora sejam tão reais quanto os corpos. Quando experimentamos e compreendemos nosso corpo e nosso espírito como afecções de Deus, dessa compreensão nasce um afeto que é a expressão de que somos tocados por aquele Amor, e a partir dele tocamos, produzimos, agimos, enfim, existimos.
Não existe o "mal em si", existe o mau em nós, não fora de nós. O mau é tudo aquilo que diminui nossa força, nossa potência.O mau é a tristeza e o ódio.Estes não existem fora de nós, eles não são ações, mas reações, padeceres.A tristeza e o ódio existem em nós como aquilo que diminui nossa existência e nos afasta de nossa saúde ( salut). Não é a partir de outra coisa, uma coisa que lhe seja exterior, que o homem age ou existe, já que toda ação se constitui  de acordo com a relação com a Potência que lhe é imanente. Não é subordinando-se a "fins externos" , teleológicos, que o homem age, pois toda ação nasce da nossa afirmação da Potência que é Ação Pura, Potência esta que não existe exterior a si mesma.É em relação com essa Potência ou Força que a alma conquista sua própria força e potência, sua confiança, sua virtu, sua firmeza, o que a torna apta para tomar posse de si mesma. Só quem dispõe de si pode exercer a generosidade.A Moral exige que a alma tenha força sobre o corpo, para assim dominá-lo e reprimir suas inclinações.A Ética de Espinosa afirma, ao contrário, que a alma só se torna potente quando conquista sua própria força,  agindo a partir desta.



   O geógrafo, de  Vermeer ( segundo alguns, é Espinosa, o próprio, que é retratado por Vermeer como um "geógrafo")

sábado, 16 de novembro de 2013

Cláudio Ulpiano





O PAPEL DA METÁFORA
(manuscritos de Claudio Ulpiano)



- Só a boa metáfora pode dar ao estilo uma espécie de eternidade



O estilo é uma questão de visão e não de técnica. A metáfora é a expressão privilegiada de uma visão profunda: que ultrapassa as aparências para atingir a essência das coisas. O repúdio ao realismo, à arte das notações, que se contenta em dar das coisas uma miserável relevância.


- Liberar as coisas da contingência do tempo pela metáfora

A metáfora não é um ornamento, mas um instrumento necessário para o estilo: para a visão das essências (não para que as essências sejam vistas, como em Platão, mas para que elas vejam, como nas mônadas).

Se o verdadeiro eu não pode viver senão fora do tempo, é que a eternidade é o único meio onde ele pode gozar a essência das coisas.

- Aqui neste escrito, a memória involuntária vai ser observada como se fosse pela primeira vez. Então nem é bom perguntar o que é a memória involuntária, mas como [ela] aparece.

"A memória involuntária só intervém em função de uma espécie de signos muito particulares: os signos sensíveis”.

As reminiscências são metáforas da vida.

As metáforas são reminiscências da arte.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

o muito


Mais importante do que o pensamento
é aquilo que faz pensar.
Proust

O Deus de Espinosa, a Natureza,  é um muito, nunca um pouco. Uma parte do muito é sempre muito, desde que se saiba ver o valor do pouco.Deus é muito porque ele precisa de pouco: pois  ser muito  é depender de pouco para se ser o que se é.Deus é muito porque ele depende apenas de si para ser o que é: cada parte dele é muito porque depende apenas de si para ser expressão dele.
Quando o muito é verdadeiramente muito,uma parte dele nunca é pouca,mesmo que seja a mais simples. O muito não é feito do mero somatório de poucos.O muito autêntico não pode ser medido por números ou quantidades. Mas se saber  parte do muito requer muito, sobretudo requer o  muito de coisas que não se pode comprar, ou herdar, ou furtar.É um muito de potência, é um muito de se deixar afetar. Quem vive como parte desse muito é sempre livre, pois inexiste prisão que possa contê-lo, seja a prisão feita de concreto ou aquela mais sutil,mas não menos tolhedora: a cela  das opiniões  e verdades prontas, sejam as verdades seculares ou aquelas mais midiáticas, das quais a cada dia o sistema lança um modelo novo.
O muito da Natureza não é um muito que possa ser diminuído ou aumentado, pois é um muito infinito ( e se o infinito pudesse ainda ser aumentado, não seria infinito, e se pudesse ser diminuído, deixaria de ser infinito). O muito de Deus é o muito da generosidade, da criatividade, da produtividade. O muito não se conquista por acúmulo de coisas poucas. O autêntico muito é ser muitos, é expressar-se de muitas maneiras, e estar inteiro, íntegro, em cada maneira, seja diante do Rei ou do simples mendigo.
Ser muito não é ser muito de uma coisa só, como o oceano que é muito apenas de água, ou o banco que tem muito apenas de moeda. Ser muito é ser composto de coisas heterogêneas, de coisas raras.O muito de Deus é que cada coisa, por menor que seja, é um muito para ele, e ele não a despreza, pois essa coisa também é ele.Deus é único,singular. Se ele fosse dois, não seria Deus. E este é seu muito: ser raro. Cada parte dele só se sabe muito se aprender a ver sua raridade,bem como a raridade das coisas que são tomadas como meramente comuns.
O muito não pode ser cercado, tampouco possui um centro. O muito não tem verso ou reverso, ele não é par ou ímpar, sim ou não. Ele está sempre no meio e é meio que leva a ele mesmo: ele é o caminho, o caminhar e aonde chegar.E quem por ele caminha nunca se perde, tampouco chega a um fim. 
O oposto do muito de Deus não é o nada, pois o muito não tem oposto ou contrário.O nada pode ser um muito de coisa nenhuma, como o castelo imenso no qual morreu o milionário  Cidadão Kane. No mito, o Rei Midas cobiçou um muito de ouro, esquecendo que o valor do ouro está em ele ser raro, como é raro um bom coração, um coração de ouro.
O muito de Deus não é alcançável por um acúmulo de saberes. Pois só há um saber, e este é raro e múltiplo.O muito é múltiplo, heterogêneo, plural , e ao mesmo tempo raro, singular. O muito não é o excesso, pois o excesso é o oposto do pouco, e o muito de Deus não tem oposto.
O muito de Deus não é um conteúdo que somente aprenderíamos aumentando a nossa inteligência ( tal como uma piscina que é aumentada para receber um volume imenso de água).O muito de Deus é um conteúdo que dá consistência, que intensifica, e não algo que  vem preencher um vazio.Vazia pode se tornar a inteligência quando reduz tudo a objetos, quantidades, cálculos,mensurações...
O muito de Deus  consiste na autêntica riqueza que se possui sem precisar acumular, que se usufrui sem ser pelo comprar , gastar e consumir.  Segundo Espinosa, essa riqueza quem mais a teve foi Cristo.Depois a tem as crianças, sobretudo as que acabam de nascer ( não importando se tem 1 dia de vida, 30, 40 ou 70 anos, quando então tal riqueza se vive como um re-nascer, um re-generar).
E pode ganhar essa riqueza quem perde tudo.E mais pobre dela pode ser quem  muitas coisas tem.


terça-feira, 12 de novembro de 2013

as infâncias do poeta




Em anos recentes, já  com mais de 80 anos, uma idéia foi apresentada a Manoel de Barros: poeticamente, escrever uma memória.Afinal, muito o poeta já havia vivido e escrito. Tanto, que nem seria uma memória, seriam memórias: da infância, da mocidade e da velhice. A primeira memória, a da infância, veio ao mundo. Ela surgiu expressa em um “inauguramento  de falas” ,  ela  nasceu singular e múltipla , pois  o poeta nos fala não apenas de uma, mas de três infâncias: a primeira, a segunda e a terceira. Parece-nos que não se trata de uma ordem baseada em cronologias, a primeira infância não é mais infância do que a segunda e a terceira. Há apenas uma infância, e esta é múltipla, heterogênea, inumerável. Primeira, segunda e terceira são distinções intrínsecas de uma mesma infância. As distinções extrínsecas são aquelas nas quais os termos distintos permanecem exteriores uns aos outros, como as partes de uma pedra que se parte, ao passo que as distinções intrínsecas expressam partes que, embora diferentes, expressam o mesmo todo que em cada uma se expressa diferentemente, como  o tema de uma polifonia. 
Cada parte é uma distinção intrínseca de um mesmo todo, e este não lhes permanece exterior, dado que  lhes é íntimo, tal como a cor verde é íntima a cada grau seu, a cada grau de verde O todo da vida do poeta é tão vário e amplo, que vai muito além de sua vida pessoal, e é por isso que este todo nada tem a ver com as vivências , perceptivas e memorativas, de um “eu”. O todo, do qual cada infância é uma parte, este todo é um nós, do qual fazem parte outros seres que não o poeta, mas que ao o lerem sentem que aquela infância os concerne e vive em seu íntimo, como Afeto não pessoal de um devir-criança:  "Vou até a infância e volto" , explica-se o poeta.
No poema “Achadouros”, Manoel de Barros afirma que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com elas: “há de ser como acontece com o amor”. E é por isso que o poeta é aquele que diz “eu-te-amo a todas as coisas” . Mais do que pela ação de algo externo que nos torna passivos, o contágio é a comunhão de cada coisa com outra pela experiência daquilo que lhes é íntimo, e que “desabre” cada coisa e as torna “pré-coisas”: matéria de poesia. 
Enfim, vieram ao mundo as três infâncias. Como as memórias da mocidade e da velhice não nasciam, o poeta foi indagado a respeito, no que respondeu: “ só tive infância”. Ele diz que em seu lápis, na ponta do seu lápis, “há apenas nascimento” , “só narro meus nascimentos”. A “velhez não tem embrião” . A velhez não é propriamente uma idade, mas a impossibilidade de se perceber como “forma em rascunho”, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa tem essa velhez jornalística, uma vez que para o jornal de amanhã, para a vida de amanhã, ela já será cadáver: “A palavra  até hoje  me encontra na infância”.

sábado, 2 de novembro de 2013

a riqueza da pobreza




A riqueza é uma coisa, já a pobreza é outra. Ninguém as confunde. Sempre desejada, à riqueza  é associada  a felicidade; já a pobreza é temida e rejeitada ,  pois lhe  são  atribuídas incontáveis dificuldades. Parece que ninguém duvida que elas se oponham. Mas é possível algo nascer da união delas?
Segundo narra Platão, que reinventa o mito à sua maneira, o filho da riqueza com a  pobreza  se chama exatamente Eros, o Amor. Foi a pobreza, a mãe do Amor, que tomou a iniciativa, e furtou da riqueza  um rebento.No mito, a riqueza (  o deus Poros) é uma divindade que se basta, ou que crê se bastar e nada lhe faltar; a pobreza ( a deusa Pênia ou Penúria)  está sempre a carecer de algo. Decidida, ela quis ter um filho com  a riqueza , a quem nada falta , de que nada carece. Houve então uma noite, um torpor, uma embriaguez, uma inconsciência, um encontro de ambos e, de repente, ela estava grávida. Desse encontro nasceu Eros, o Amor. Entretanto, o Amor não é uma média entre a riqueza e a pobreza,tampouco uma fusão; diferentemente, ele é um acontecimento que dará à riqueza e à pobreza um novo sentido.
Como o pai ,o Amor é rico, mas de uma riqueza distinta daquela que fazia de Poros o deus da riqueza. Como a mãe, o Amor também é pobreza;todavia,não se trata de uma pobreza por carência,como a da Penúria;a pobreza do Amor é a de  nunca estar completo, se a si mesmo o Amor faltar. E esta também é sua riqueza:  apenas de si mesmo precisar.
O Amor, Eros, é a riqueza de nunca se estar completo, de se ser sempre “forma em rascunho”, como diria o poeta. A pobreza do amor não é exatamente a dependência ou a mera carência, como psicanaliticamente se interpreta, pois atribuir-lhe a mera carência é confundi-lo com sua mãe, esquecendo-se  do que lhe imprimiu o pai, a riqueza.Mas a riqueza que Eros porta e oferece não é a de seu pai ( que é a riqueza que crê nada lhe faltar, a riqueza da auto-suficiência, que pode ensejar insensibilidade pelo outro, bem como arrogância e pretensão acerca de si mesmo).A riqueza do amor é que ele liga tudo a tudo por intermédio dele mesmo.Diante dessa riqueza, mesmo a riqueza do seu pai se torna pobreza. A riqueza do Amor é o próprio desejar, e não o desejado como aquilo que falta. E esta riqueza também é a de uma  pobreza : pobreza enquanto um  não depender de nada que possa causar  servidão ao luxo, ao supérfluo, à ostentação. A pobreza do amor é uma riqueza : riqueza do amor de não lhe faltar.
Assim compreendida, a riqueza do amor não é o desejo da riqueza; a sua pobreza não é a que carece da riqueza ou de meios. Sua riqueza é de ser meio para uma existência que faz do Afeto , e não da mera posse material, o seu maior recurso.
Foi essa essência  híbrida e mestiça  do Amor que fez Plotino atribuir-lhe , séculos depois, uma natureza tripla: Eros é, ao mesmo tempo, um Deus, um Daimon e um movimento da alma (em Platão, o Amor não é uma divindade, ele é apenas um Daimon).
Das três naturezas do Amor, a que mais mistério tem é a sua existência como Daimon.O Daimon é um ser intermediário que liga os homens ao divino: o Daimon  liga o que nasce e morre ao que é eterno. Já o amor enquanto movimento da alma é tido por ser algo volúvel, circunscrito às circunstâncias, como todo movimento. Para Plotino, porém, somente quando a alma não consegue encontrar ou se agenciar ao Daimon, somente nessa situação é que o amor é passageiro,volúvel, circunstancial, e se confunde com o prazer físico despertado pela beleza dos corpos. Quando  essa experiência do amor  também é guiada pelo Daimon, que não é apenas físico, os movimentos da alma se tornam consistentes,intensos,uma vez que aos movimentos que a alma sente é ligada uma experiência de se conectar ao que não depende das circunstâncias, que é a natureza de Eros enquanto divindade ou Ideia.
Assim, para Plotino o Amor, Eros, não é apenas uma divindade, tampouco apenas um Daimon, e também não é apenas um movimento  passageiro da alma ( e do corpo). Eros, o Amor, é essas três realidades ao mesmo tempo, embora Plotino  acentue que é o amor enquanto intermediário, o Daimon,que realmente cumpre o papel de metamorfose, e liga os movimentos da alma ao que só é aprendido pela parte mais imaterial de nossa alma, o pensamento. O Amor é triádico:o Amor é movimento, é caminho e é pensamento. Nesse último aspecto, pensar também é uma atividade que se liga ao Afeto. O amor também é uma forma de tornar vivo o pensamento, uma vez que o Amor, além de movimento e caminho,  também é uma Ideia.O Amor é o caminhar( movimento), o caminho ( Daimon) e o  onde chegar ( a Ideia).E sabemos se chegamos quando o caminhar se faz sem cansaço, como o do livre nômade, e nunca quer parar.Descobrimos então que a Ideia também é movimento, que o movimento também é ideia, e que a Ideia também é caminho: caminho que nos leva ,antes de tudo, a nós mesmos.
 Assim, é o Amor ( Daimon) que liga o amor ( movimentos de nosso corpo e nossa alma) ao Amor ( enquanto realidade divina ou Ideia).É o Amor que liga o amor ao Amor.Somente o Amor tem por intermediário ele mesmo, somente ele é seu próprio meio: se ele pode carecer dele mesmo, também é apenas ele que pode completar-se.
E a lição mais surpreende Plotino deixa para o final. O filósofo Plotino diz ter aprendido essa lição com Orfeu, o poeta. A referida lição, dada sem livros ou ciência, consiste em um mistério que a inteligência não compreende e jamais compreenderá: essas três expressões do Amor são, no entanto, um único ser. Movimentos da alma, Daimon e Amor enquanto Ideia   são três expressões de uma única realidade. Quem a isso descobre, e o vive, experimentará nos movimentos de sua alma a própria eternidade do que é sem fim, pois é sempre meio.


É a essa dimensão do Amor que Espinosa chama de salut ou beatitude. Em latim, não por acaso, beatitude nasce de um termo que significa exatamente “riqueza”.

sábado, 26 de outubro de 2013

artigo





Título do artigo publicado na Revista Museu: "Museologia e mitologia"

Disponível em: http://www.revistamuseu.com.br/artigos/art_.asp?id=38265

(trecho)

 Introdução
"Acervo" procede de "cérvix", que significa  "cervical", e assim é chamada a nossa coluna: coluna cervical. No corpo, a coluna cervical sustenta a cabeça.Na cabeça está não apenas o cérebro, pois nela também estão os pensamentos,as idéias, as inquietações. Um acervo não tem sentido em si mesmo, ele não é um fim em si : como a coluna cervical, ele deve ser um instrumento para servir de apoio a nossas idéias, sonhos, desejos, experimentações.É com a ajuda da coluna cervical que a cabeça se mantém erguida, para assim olhar o horizonte, e o mesmo deve nos proporcionar um acervo, para assim ampliar, de forma rica,  nosso conhecimento.Um acervo nunca deve ser um fim, mas sempre um meio : meio de descoberta, de conhecimento, de potencialização.O acervo não remete apenas ao passado: do presente ele nos interroga sobre o futuro.  
A mitologia grega é patrimônio cultural imaterial da humanidade, e não apenas patrimônio exclusivo dos gregos de outrora.Enquanto patrimônio , a mitologia não fala apenas do passado, ela toca  em questões que concernem à humanidade de não importa qual tempo.Como dissemos, a mitologia é um patrimônio imaterial. Como conservar o imaterial? Todo processo de conservação almeja dar aspecto perene ao que é conservado. A conservação é , de certo modo, uma luta contra o tempo,  para assim tentar preservar uma identidade , uma memória.
Todavia, o imaterial não é tangível: ele não pode ser pesado ou mensurado, tampouco pode ser guardado em vitrine. O imaterial somente pode ser preservado quando lhe damos vida, quando o fazemos viver. E vida é movimento, calor, afeto, espaço e tempo. A perenidade da vida é a sua constante reinvenção.
Onde vive o imaterial? Onde ele pode ser conservado? O imaterial vive em nossa alma, e esta nunca é uma vitrine. A alma é sempre abertura, encontro. Dar vida ao patrimônio cultural imaterial é , ao mesmo tempo, aumentar a vida da nossa alma, para assim fazê-la compreender que ela é parte desse patrimônio: sem ela esse patrimônio não vive e nem faz sentido.Por isso, "a preservação do patrimônio imaterial implica uma re-criação permanente"( Convenção da UNESCO para a salvaguarda do patrimônio imaterial, aprovada em outubro de 2003).A essência do patrimônio imaterial é a construção do Sentido.
 Esse patrimônio de que estamos falando não vive apenas na alma de Homero ou Hesíodo, tampouco ele reside apenas na alma grega. Esse patrimônio somente pode viver quando despertado: quando despertado na alma daquele que com ele entra em contato, pois preservar esse patrimônio é, ao mesmo tempo, potencializar a alma humana. Potencializar não apenas sua capacidade de conhecer, como também, e sobretudo, a sua potência de sentir, de fabular, de ludicizar sua existência. E este é o sentido fundamental da educação, da qual a educação museal é parte integrante.
A origem das Musas está associada a um acontecimento: a experiência de uma vitória. Não qualquer vitória, não se trata de um vencer um inimigo apenas externo, pois muitas vezes o inimigo se encontra dentro do próprio homem. Assim, não se pode compreender perfeitamente toda a riqueza que está contida nas Musas se não se atenta para o fato de que elas nasceram para co-memorar, e trazer novamente à memória, o fato de uma vitória: a vitória sobre tudo aquilo que representa a guerra, a violência, a ignorância, a incompreensão, o ódio, a avidez. As Musas celebram a destruição do ódio e a construção da cultura, do pensamento e da arte. As Musas  são, ao mesmo tempo,  preservação e criação, memória e imaginação, passado e futuro.
Em geral, é sempre citado o fato de que as Musas são filhas de Mnemósyne, a Memória. Todavia, perde-se muito do que as Musas expressam quando não se ressalta que elas também são filhas de Zeus, que é a divindade que expressa a justiça enquanto virtude ética.  Desse modo, musealizar algo também é um ato ético. A patrimonização é igualmente a construção de uma consciência ética."A dimensão política do projeto museal não se manifesta somente no nível mais elevado, aquele que envolve o Estado; pois ela se inscreve também em um contexto sócio-cultural e econômico , local e regional, e em relação ao qual o museu interfere".[i]  
1- Certa vez as Musas passaram por uma pequena aldeia. Uma das características das Musas é que elas fazem cantar. De “cantar” vem “encantamento”. As Musas transformam quem as vê. Não há quem as veja e permaneça o mesmo. Como diz o poeta Manoel de Barros: “Outra pessoa desabre em nós”. Uma pessoa melhor, posto que mais viva, mais intensa, reconciliada com o devir da vida, e que percebe que vida e arte são o mesmo.  Segundo o mito, as Musas não apareciam em qualquer lugar: elas se deixavam ver apenas onde existiam fontes, fontes já visíveis e fontes ainda por descobrir; de tal modo que muitos, sob o poder das Musas, achavam em si mesmos fontes e nascentes que nem suspeitavam existir.É o que parece dizer Manoel de Barros , quando afirma que “o poeta possui uma visão fontana”, uma visão que é fonte do que vê, pois ela não vê apenas o já conhecido, ela vê sobretudo o que ainda é apenas rascunho, e que nasce primeiro no desejo.
Encantados por aquela visita, os homens da aldeia começaram a cantar. Esqueceram as tristezas, as derrotas, as decepções, as intrigas, as invejas, a cobiça; esqueceram de si mesmos, encontraram a si mesmos, e começaram a cantar. Cantaram durante o dia e durante a noite; durante mais um dia e outra noite; e mais outro dia...e  outro...e outro...e outro...Não mais comiam ou bebiam, nada lhes faltava. Não tinham mais carências, pretensões e esperanças na felicidade prometida apenas para  amanhã. Pois eles já tinham tudo, e esse tudo não era uma coisa, mas um processo, um afeto: o cantar   a vida, o cantar tudo aquilo de que ela é feita, toda a sua multiplicidade e heterogeneidade; cantar sem motivo, sem data especial. Apenas cantar por terem visto as Musas.
Então, aos poucos emudeceram. Sem perceberem, forçaram um limite, transpuseram a fôrma humana. Morreram.
Ao verem aqueles corpos inertes, as Musas lhes concederam uma metamorfose: os transformaram  em cigarras. Quem ouve as cigarras pode sentir um pouco do encantamento que lhes gerou uma metamorfose. Ao contrário dos passarinhos, que mesmo presos em gaiolas continuam a cantar, as cigarras morrem se forem aprisionadas: elas somente cantam em liberdade, pois elas cantam a liberdade. Elas cantam de graça.
As Musas sempre eram acompanhadas pelas Graças. Estas eram três irmãs que sempre andavam de mãos dadas, nunca ficavam sozinhas. As Graças eram a alma de toda beleza. As Graças lembravam aos homens de que as coisas mais importantes não podem ser compradas. Não se pode comprar uma amizade, não se pode comprar um amor, não se pode comprar uma alegria, não se pode comprar um dom. Essas coisas ganhamos de graça, desde que nos cultivemos para nos tornar dignos delas.  Em uma conversa gratuita muitas vezes aprendemos coisas que não conseguimos aprender quando estudamos algo  de forma obrigatória. A desgraça é a ausência da graça. Não apenas recebemos uma graça, também somos capazes de ofertá-la. E quem mais oferta a graça mais rico fica: fica cheio da graça.
A razão profunda de um museu ser uma instituição sem  fins lucrativos reside no fato de que ele guarda e cuida de bens que não têm preço. Como indagam André Gob e Noémie Drouguet , "o papel econômico na gestão dos museus atualmente  não corre o risco de o fazer perder sua alma?".[ii]
Os poetas e os artistas em geral são essas cigarras nascidas da metamorfose de um encantamento. E é isso que se espera de um  museu : que ele seja um lugar de encantamento e metamorfoses.
2-Na Grécia Antiga vivia Orfeu. Poeta, Orfeu cantava suas poesias, mais do que as escrevia. E assim ele mais do que as recitava: ele as vivia. "Orfeu" significa: "o que toca a lira", o músico que exerce a arte da lira. A lira é um instrumento constituído por cordas singularmente  diferentes, cujo tocar exige sutil percepção das combinações heterogêneas, suas convergências e divergências.Muitos comparam a alma à lira : assim como esta , a alma é constituída de diferentes “cordas” ( o desejo, a imaginação, a razão, a memória...), cujo tocar adequado requer um autoconhecimento que demanda esforço e tempo.A riqueza de alma, a sua saúde,  é o seu tocar em harmonia: esta nos protege das mil formas de loucura que podem eclodir quando nosso ser de-lira ( "delirar" é , literalmente, “sair fora da lira”, o que acontece quando a alma, alienando-se, não consegue mais encontrar sua harmonia ).Era com sua lira, com sua alma, que Orfeu cantava.
A palavra "poesia" provém de "poiésis", que significa, em grego, "produção". Sob essa perspectiva ,a palavra poesia tem um sentido bem maior do que sua associação habitual a poemas.  Para os gregos , o termo “tekné” (de onde deriva “técnica”) também significa “produção” ou “fabricação”. Todavia, a técnica produz coisas em razão de uma utilidade , com ênfase no produto ( objeto) e sua função,  ao passo que a poesia revela também o produtor ( “o quem das coisas”, como dizia Guimarães Rosa) , seus desejos, seus sonhos, sua imaginação ( pois tudo  que o  homem cria é fruto do seu desejo e está inserido em um contexto, em um modo de vida). .A técnica é criatura do homem,mas por vezes também se transforma em sua senhora e dona, quando o aliena e o submete a uma visão instrumental da vida ( como o mostra Chaplin no filme Tempos Modernos).


[i]  André Gob e Noémie Drouguet, La muséologie: histoire, développements, enjeux actuels,Paris, Armand Colin, 2011, p. 76.

[ii] Ibid, p. 18.

[iii] Poema “Apontamentos”, livro: O eu profundo e os outros eus, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006.

[iv] ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição, p. 70.

[v] “Polifonia” é uma ideia da arte barroca, sobretudo a música, e significa: “múltiplas vozes”.

Outras referências:

BRANDÃO, Junito. Mitologia grega – vol. I.  Petrópolis:Vozes, 1998.

CHAGAS, Mario. Os Museus na Sociedade Contemporânea: Um Olhar Poético. III Encontro Regional da América Latina e Caribe-CECA/ICOM Museus e Patrimônio Intangível - o patrimônio intangível como veículo para a ação educacional e cultural. : FAAP, 2004, v. , p. 17-30.

GUARNIERI, Waldisa Rússio Camargo. “Exposição: texto museológico e o contexto cultural”, Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional / Org. Maria Cristina Oliveira Bruno. ICOM – Brasil, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Volume 1- 1ª Edição, 2009.


sábado, 19 de outubro de 2013

gravidade





Apesar de invisível, e de quase  não notarmos sua presença, o ar pesa, o ar tem peso. Quando ele se desloca, por exemplo, é capaz de mover corpos. Segundo os físicos, de nossa cabeça e costa até o último estrato da atmosfera terrestre há uma quantidade de ar imensa, cujo peso equivale a duas toneladas! Se fôssemos até o fundo do mar e houvesse quantidade de água semelhante sobre nós, simplesmente seríamos esmagados pela pressão , pois a água pesa mais do que o ar. Mas o ar também pesa. A criança quando começa a se pôr de pé  é a esse peso imenso que ela, pouco a pouco, ergue sobre as costas. Ela o faz porque não o levanta apenas com os músculos ou com a vontade, tampouco com o “livre-arbítrio".Ela  levanta esse peso  com a potência vital de uma crença que desconhece o impossível. A criança que se ergue expressa  uma afirmação incondicional, sem a qual a vida não venceria tudo aquilo que a desafia. Os cientistas  afirmam que o período da vida no qual fomos mais potentes corresponde àquele onde éramos fetos, embriões. E mesmo a criança nascida vence desafios que derrotariam o adulto. Somos mais fortes quando ainda somos  “formas em rascunho”,diria o poeta Manoel de Barros. E assim permanece o poeta mesmo  quando adulto: como forma em rascunho.
O filme “Gravidade”  se passa em uma paisagem incomum:  a órbita da terra, um espaço limítrofe entre o conhecido e o desconhecido, o ordinário e o extraordinário. Três astronautas se encontram na seguinte missão: consertar a lente do telescópio Hubble. Eles se acham entre duas realidades: a terra e o infinito.
Há três formas básicas de enquadramento no cinema : o close ( ou primeiro plano), o plano médio  (ou plano psicológico) e o plano americano ( ou grande plano). Neste último, em geral o personagem aparece imerso em um fundo que o engloba. No faroeste, por exemplo, há esse grande plano quando são mostradas  carruagens  atravessando  o deserto árido. Em filmes urbanos, é o anonimato dos grandes prédios que constituem o fundo onde se desenrolará a cena com os personagens. O fundo mostrado passa informações e contextualizações sociais, históricas  ou geográficas. Ele ajuda a situar a história.
Mas e quando o fundo é o “sem fundo”? E quando o fundo é o infinito desconhecido? O infinito não é histórico ou social. Ele não é uma paisagem. O infinito não é um céu que vemos da terra. O infinito é, por isso mesmo, “abstrato”, pois nele não há nenhuma codificação ou estrato. “Ab-strato” :o que existe fora dos estratos. No filme, este é o fundo: o que não tem limites e não pode ser enquadrado, em todos os sentidos. É com esse fundo desconhecido  que os personagens são confrontados. Em vários momentos, o filme mostra o close de um rosto imediatamente circundado por um mistério que não se pode conhecer, e esse mistério exterior, do lado de fora, reflete-se no próprio rosto e realça a intensidade do afeto que desfaz os mundos conhecidos, tanto o mundo físico  quanto o psicológico.
Um dos personagens vê ao fundo a terra, e nada vê de sua vida conhecida. O céu se torna um fundo abstrato que põe em primeiro plano tudo o que ocorre na terra lá embaixo. Um acidente ocorre: satélites destroçados por mísseis russos se tornam projéteis disparados que destroem tudo o que encontram pela frente. Apenas uma astronauta sobrevive. No entanto,sua alma encobre um drama vivido.O fundo eterno do céu silencioso acentuou o drama que ela vivera na terra, pois ela perdera sua filha ainda criança, e esse acontecimento a fizera  maldizer a vida. Ir para o espaço foi a forma que ela encontrou de ir “para o espaço”, de “sair do ar” , mas o sofrimento a acompanhou  e a fez perceber que ir ao espaço  foi a forma que ela buscou  de tentar  fugir  da vida. Sob o fundo eteno e escuro,tudo se fazia claro.O efeito do contato imediato com o infinito foi  um contato direto dela com os conteúdos psíquicos mais íntimos: a amplidão do espaço ampliava o que havia de pequeno em seu íntimo,como se o próprio telescópio Hubble estivesse apontado para ela.Mas olhar para esse íntimo ampliado ela não o podia como cientista, que só vê o que está diante e pode ser medido; e assim ela descobriu que sua ciência era uma forma de ignorância.
 Quando subimos ao alto da montanha, aumentamos nossa visão do horizonte. E mais ainda a aumentamos se voamos muito acima do chão.Porém,quando o astronauta sai dos limites da terra,  ele próprio adentra a um horizonte absoluto que nunca se desfaz, pois tudo se torna horizonte absoluto. E a vida cotidiana, aquela na qual  imperam os gestos, os hábitos,os costumes...tudo isso some e se torna tão ou mais distante do que as estrelas. O horizonte absoluto opera uma desterritorialização que nos faz ver a Terra. Curiosamente, a terra não aparece mais sob os pés: ela surge sempre no filme acima das cabeças dos astronautas, ela aparece mais como idéia do que como realidade tangível.A terra surge de forma inseparável da maneira  como cada astronauta a pensa.
Sozinha, presa a uma nave que ela mal sabia como  dirigir, ela decide morrer(desligando o oxigênio que nutre a cabine). Na nave  chegam apenas as ondas de um rádio amador,uma vez que o contato com a Nasa se perdeu totalmente. Sons simples alcançam  a nave:um cachorro que late, uma criança que chora e o pai que canta uma música de ninar.  Intensamente tocada por esses simples sons, a astronauta   também começa cantar, e assim ela produz para si um ritornelo.Lágrimas saíam de seus olhos e, com a ausência da gravidade,formavam pequenos espelhos esféricos e translúcidos que gravitavam ao redor dela ,como ao redor da nave gravitavam as estrelas.Nos sons que vinham da terra, e que nasciam da cena mais comum e simples,  nesses sons vinha mais do que o sentido habitual de tais fatos: nos sons  vinha o sentido da terra, cujo sentido nunca é dado, dado que ele existe para ser criado. Opera-se então  na astronauta uma clínica cuja terapia a própria  vida fornecia, e nada mais. Ela decide lutar pela vida e se arrisca a voltar à terra. O infinito fez-lhe uma clínica,o infinito que também é choro e canto do mais simples ser vivente.
 A nave adentra a atmosfera e cai no mar perto da costa . A nave afunda rapidamente , porém a astronauta consegue se soltar e sobe à superfície, e não foi apenas à superfície do mar que ela retornou .Ela sobe e respira profundamente, novamente ela respirava como quando nasceu.Ela nada de costas olhando para cima. O infinito escuro , abstrato como fundo, não pode ser mais visto: ela vê um céu azul com nuvens. Ela chega à praia e ali fica deitada de bruços, pois seus músculos estavam desacostumados com o esforço que a gravidade exige para que fiquemos de pé. Ela agarra um punhado de terra e agradece .  Com o mesmo esforço da criança que aprende a andar , ela  vai pondo-se de pé; um sorriso lhe escapa; e se ergue tendo ao fundo a natureza da qual ela faz parte.Diante dela, e dentro dela, a mesma coisa: a Pura Reserva. E é com o esforço do seu conatus, do seu desejo, que ela se encontra e se liga a ambas as naturezas ( que são, no fundo, uma só).
Enfim, ela entende com seu espírito e com seu corpo que o peso da  gravidade física  é nada diante do peso que pode ter uma existência para si mesma quando dela se ausenta ou se enfraquece  a  força vital e inconsciente   que , agindo em tudo o que é vivo, desperta o desejo de ficar de pé e andar com as próprias pernas.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Anarquismo como micropolítica



Odeio tanto seguir como ser seguido:
para me acompanhar aonde vou
é preciso aprender a amar andar ao lado.

Nietzsche


"Anarquia"= "an-arqué". Um dos sentidos de "arqué" é "comando". A anarquia é um não-comando; "não" como crítica, e não como mera reação à existência de um comando. Sobretudo, a anarquia é uma crítica a um "comando externo", que se coloca acima dos comandados. Assim, criticar o comando é criticar também os mecanismos que nos tornam "comandados", e não apenas pelo Estado.O poeta  por exemplo, como afirma Manoel de Barros,é aquele que escapa aos comandos homogeneizantes da gramática.
Mas a crítica ao comando externo é o resultado ou consequência de uma atitude que a precede.Esta atitude não é negativa, ela não é um destruir, mas um construir:"Só podemos destruir sendo criadores", já nos ensinava o anarquista Nietzsche.Então, antes da crítica aos comandos externos que, de fora, querem nos impor modelos de como viver, devemos construir uma consistência interna, uma potência, uma saúde imanente. Assim, esse procedimento de consistência exige também uma luta, um esforço, que não se faz sem as ideias e sua força, e a força das ideias nada  tem a ver com a força física.O anarquista comanda a si mesmo não como um general a um exército, não como a bebida ao dependente, não como o pastor a um rebanho; ele se esforça para comandar, em primeiro lugar , a si mesmo, e deve se inspirar no modo como um maestro comanda uma orquestra, como um pintor comanda as tintas, como o poeta comanda as palavras, posto que, tal como essas coisas, nós somos uma multiplicidade.
Por isso, o autêntico anarquismo não é preto,branco ou cinza. Ele é multi e pluri-colorido, e em cada cor ele afirma ainda as nuances e matizes, os tons, as variações.E ainda: para pintar um quadro é preciso ter uma perspectiva.
Segundo Negri interpretando Espinosa, o anarquismo não é sistema político ou proposta de governo,simplesmente porque ele não é sistema , mas rizoma, conexão. O anarquismo não é sistema político, ele é modo de vida, ontologia, estética, poética. Ele é isso porque ele é afirmação da heterogeneidade da existência, e esta heterogeneidade não pode ser representada, dado que ela pode apenas ser vivida, experimentada, produzida.A poesia vive no "antesmente verbal", escreve Manoel de Barros; a anarquia precede a política, tal como o fazer precede o produto.
Por isso, o plano do anarquismo é sempre micropolítico, o que nada tem a ver com a macropolítica dos partidos."Micropolítica" não significa política das coisas pequenas, pois política das coisas pequenas costuma ser a prática da macropolítica."Micropolítica" é a política que não pode ser separada das práticas, sobretudo daquelas práticas que a macropolítica diz não serem práticas políticas, como as práticas de ensino, as práticas artísticas, as práticas de consumo, as práticas de prazer, as práticas culturais, etc.
O anarquismo não é discurso de um partido, ele é expressão de uma parte, de uma parte sempre heterogênea que, em sua diferença, expressa um todo. Assim, o anarquismo não é pulsão de morte contra o todo, ele é a afirmação de um todo que potencialize as partes. E este todo nunca é um partido ou um Estado, pois estes também são partes. O Estado fascista é aquele que se comporta como um todo à parte, que vive à custa da sociedade.
É na micropolítica que se luta contra os fascismos e suas várias manifestações, principalmente os micros fascismos cotidianos que infestam as práticas mais rotineiras.Mas se luta com alegria, e não com ódio. Sobretudo, nunca, jamais um anarquista pode ensejar comportamentos que alimentem  a menor confusão entre suas práticas e a de um fascista.