sexta-feira, 28 de setembro de 2012

trecho do livro





Podemos dizer que a poética de Manoel de Barros é uma original “empoética” sem regras ou cânones , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra conjuga quando perde seu limite utilitário (...).“Empoemando”, a palavra adquire a potência de expressar. Através desta potência, dá-se “um inauguramento de falas” que “insana”o significado habitual , gramatical e ordinário. Mas essa “insanidade”, ou agramaticalidade, produz uma verdadeira saúde : a de uma linguagem que redescobre a natureza extraordinária, singular, do sentido. Graças a essa poiésis da agramaticalidade,a linguagem é redescoberta como fonte de inauguramento de sentidos: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, revela-nos o poeta.
Empoemar as palavras é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Esta empoética não possui regra de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer agramática.O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.
Empoemar a palavra é torná-la despalavra, verbo-substantivo onde se pode enxergar “o feto dos nomes”. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar desde que “abra seu roupão para o poeta”, e o deixe sê-la.
A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica, consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto no final da frase.

("O menino que carregava água na peneira", livro: Exercícios de ser criança)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

jardim de primavera







O tempo não é um velho,
mas uma criança:
dentre os seus vários brinquedos,
o sempre novo é a esperança. 

***   ***   ***

Um pardal me trouxe, no bico, uma carta sua:
era uma folha de amendoeira pelo tempo amarelada.
Despida desse passado um verde novo na árvore já vai nascer.

o ponto de interrogação

A metafísica nada mais é do que a tentativa de responder as questões das crianças.
Groethuysen

O que tornou o ser humano, humano?Que fato?Que idéia? Qual acontecimento? Segundo a ciência, em tempos muito remotos, um fato transformou um determinado ser que, em postura e hábitos, mal se distinguia do que hoje chamamos de chipanzé.Este fato foi uma mudança de postura, postura esta que nunca antes tal ser ousou: ficar de pé. Ficar de pé não apenas eventualmente, como fica o urso, mas ficar de pé como acontecimento incorporado mais do que aos músculos,nervos e ossos, mas também à mente, à visão, ao espírito. O ficar de pé fez o homem. Esta atitude, o ficar de pé, também foi uma nova relação que o homem estabeleceu com ele próprio e com o mundo.
Uma nova pergunta se impõe: o que fez o homem ficar de pé?Para o paleontólogo Leroi-Gourhan, no livro O gesto e a palavra, o acontecimento que produziu o ser humano foi a lenta e irreversível transformação de nossas mãos. Embora, claro, sejam os pés que nos sustentam na postura ereta, esta foi produzida, no entanto, pelas mãos.No início, as mãos eram usadas fundamentalmente como meio de locomoção, como se fossem patas. O homem andava e corria apoiado também sobre elas, e não apenas sobre os pés.Pouco a pouco, as mãos foram sendo desterritorializadas do chão. Desterritorializar-se significa, entre outras coisas, “libertar-se”, “desfazer um vínculo”, “desfuncionalizar-se”, “fugir de um território”, enfim, “nomadizar-se”.Desterritorializadas, as mãos foram adquirindo autonomia em relação à função de locomoção, passando a serem usadas para uma nova função: a preênsil. Esta consistia em pegar, transportar e manipular os objetos que despertavam o interesse do homem, e que o ajudavam a sobreviver,seja como ferramenta ou como arma; desse modo, o homem se sobrepunha aos animais ,ou mesmo aos outros homens.
Todavia, não é a nova função preênsil que explica o deixarem de ser as mãos meras patas. Entre a antiga função e a nova há um intervalo que não se explica pelo discurso meramente funcionalista, utilitário. Este intervalo é ocupado pela invenção, pela potência da vida, pela autoprodução – que interage com o meio externo, mas não é mero efeito deste. As mãos se desterritorializaram do chão e se reterritorializaram no instrumento, pois foi isto que nasceu junto com a mão: o utensílio, o instrumento, o mundo do fazer. Reterritorializar-se é mais do que servir ou se adaptar a uma nova função: é criar um novo mundo, um novo território existencial, ao mesmo tempo técnico e simbólico.Um galho de árvore, por exemplo, deixa de ser apenas um pedaço da árvore: ele se torna um bastão, uma extensão das mãos do homem. A desterritorialização nunca incide apenas sobre um dos termos, mas de pelo menos dois: a desterritorialização das patas fez nascer as mãos, ao passo que essa mesma desterritorialização também agiu sobre o galho, que se tornou utensílio quando as mãos se reterritorializaram sobre ele, fazendo nascer um novo mundo,mundo este que não pré-existia à reterritorialização, pois foi ela, ao contrário, que o fez nascer junto com ela. É por isso que toda desterritorilização se faz para produzir um agenciamento: no caso, o agenciamento mão-utensílio.
A postura ereta produziu uma nova estrutura da abóbada craniana, arredondando-a ( na arquitetura, por exemplo, as cúpulas arredondadas , esféricas, conferem às construções um ar de controle sobre as forças desestruturantes do peso). No gorila e no chipanzé a pontiagudez do crânio resulta do maciço osso que ali se salienta , suporte que é dos poderosos músculos que dão força à mandíbula.O osso da testa, igualmente robusto e protuberante nesses animais, no homem ele se adelgou e alongou. Atrás da testa pôde nascer então o neocórtex, que é a parte mais recente do cérebro, responsável pela linguagem e outras atividades simbólicas. Com a verticalização da testa e recuo da mandíbula, nasceu a face, o rosto. Este passou a ser a superfície de expressão do mundo interno. Por ser direcionado ao outro, a rostificação daquilo que nos animais é apenas a cara indicava também a positivação da relação social e sua importância para a vida do indivíduo. Aqui, surge um novo agenciamento: mão-rosto, uma vez que as mãos, na situação social de comunicação interpessoal, também comunicam: como gesto, isto é, movimento expressivo, no qual o sentido é como que desenhado no ar. Essa é a explicação da ciência para o surgimento do homem. Mas a poesia também fornece seu sentido para o fato, e quem o narra é Fernando Pessoa.
Para o poeta, em tempos remotos o homem andava de quatro, mais ou menos como o faz, hoje, um cão.A coluna vertebral do homem era como um travessão paralelo ao chão.A cara, quase sempre direcionada para o chão, procurava avidamente por restos, pedaços, rastros, resíduos, sinais.Até que houve uma desterritorialização, uma libertação. Esta ocorreu não com as mãos, como afirma a ciência, mas com os olhos: libertando-se das algemas do chão, da gravidade e do imediato, os olhos voltaram-se para o céu.Os olhos se desterritorializaram em relação ao chão e se reterritorializaram no que não tem limites e contornos, e que existe sem que o diminuam as pequenezas, os interesses, as cobiças e posses. Reterritorializando-se no infinito, abriram-se no homem mais do que os olhos do corpo: abriram-se os olhos do espírito. Aconteceu muito provavelmente durante as noites, após o sol retirar-se e, com ele, a presença das coisas tangíveis que se podem cheirar e tocar.Sob as estrelas, os olhos se libertaram da passividade que os reduzia à ação das coisas externas, finitas, e pôde o olhar lançar-se através do olho animal que o homem ainda tinha, fazendo-o alçar-se consigo.Sobre a abóbada do crânio, o olhar se alçou à outra abóbada , que nunca se fecha, eterna fábrica de mundos.Mais do que os olhos de ver, alçaram o homem os olhos de explorar.
Se toda desterritorialização é um libertar-se, os olhos se libertaram da percepção do imediato, reterritorializando-se na apreensão do eterno.Se toda reterritorialização é um agenciamento, o agenciamento que produziu o homem tem por essência o seu caráter poético e produtivo, cuja ferramenta que potencializa o homem é o próprio pensamento, ferramenta com a qual ele produz se autoproduzindo, agenciado não com o conhecido, mas com a potência de conhecer; não com o objeto, e sim com a potência de pensar e sentir.O homem passou a ver através de um ver que sempre se renova, um ver que não constata ou mede, conta ou reconhece, uma vez que o que ele vê não é objeto ou coisa, mas abertura que a tudo amplia.Foi esse olhar que pôs o homem de pé, e não apenas de maneira física, sobre os pés. Desse olhar nasceu um afeto como experiência do homem consigo mesmo, tendo como moldura o infinito.
Etimologicamente, “afeto” significa “ser tocado”.E o que tocou o homem de então pode o homem de qualquer época experimentar, pois tal realidade se apreende com a percepção, e não com a memória. É por isso que tal realidade se renova e renova, e somente assim, como renovação, pode ser conhecida.Espinosa afirma que ela re-genera, gera novamente.Esta é a potência do homem: gerar-se novamente de acordo com a Potência que a tudo gera, e que permanece imanente ao que gera.
Então, segundo o poeta, foi assim que o homem nasceu: com a necessidade de nunca deixar de renascer. Como conseqüência, a coluna vertebral do homem deixou de ser um travessão paralelo ao chão, tampouco se converteu em linha vertical em ângulo reto, mero ponto de exclamação. O que mantém o homem de pé, sua coluna vertebral, transformou-se em um ponto de interrogação, pois é assim que se mostra a coluna quando olhada de perfil. Assim, não são os pés, mas o questionamento que dá estatura ao homem.O que mantém o homem de pé é o olhar que não apenas vê ou reconhece, mas indaga o Sentido.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

visão fontana X olhar da morte


Segundo Maurice Blanchot, no texto intitulado “O olhar da morte”, o homem da ciência, quando faz do objetivismo um credo , conduz-se como alguém que, para conhecer um quarto, põe-se fora dele, e passa a olhá-lo pelo buraco da fechadura.Escondido, oculto, “neutro”, sem ter lugar naquilo que conhece, tal homem descreve todos os aspectos do quarto, suas dimensões e propriedades, mas se ausentando, ele mesmo, daquela realidade. Tal homem empresta seus olhos, ainda em vida, para que através deles olhe para a vida a morte. E ele crê que é daí que se pode produzir a “verdade”. Fatos como respirar, transpirar, rir, afetar-se, tudo o que conota a presença do corpo, são mantidos fora do quarto, neste lugar nenhum inventado por quem se ausenta da vida.Antes de tudo, o que tal postura objetiva é eliminar o corpo e o acontecimento, em nome de uma razão ou “ego transcendental” que imagina não fazer parte do mundo que conhece.
Os livros, as doutrinas , as leis, as academias, as “especializações”, etc., muitas vezes são como a fechadura dessa porta atrás da qual se quer esconder o desejo. Para a fechadura ter seu poder, é preciso que a porta esteja fechada, e a chave fique na posse dos doutos e dos sacerdotes de toda espécie, que a guardam como aquilo que não se pode ter acesso, a não ser depois da obtenção de Títulos, unções, batismos, latifúndios no Lattes... Até crescer nas costas um fardo, que é a “corcunda” que identifica , como diz Nietzsche, os que se deixam prender tanto com algemas de aço quanto com algemas feitas de algodão, estas últimas especialmente eficazes para a servidão voluntária.
Tal visão do conhecimento mantém o conhecedor sem se conhecer, uma vez que ele está onde não se vê, e tampouco pode ser visto . Mas se ele se ignora, como pode ele conhecer qualquer outra coisa?A morte vive de cercar, compartimentar, criar muros e portas, de trancar o que vive fora da vida, o que aumenta o valor das fechaduras e dos claustros, e legitima os ritos de tudo o que se isola em celas , sobretudo na cela das disciplinas fechadas sobre elas próprias. Este lugar fora do quarto, lugar nenhum, nele se apóia a ciência que se arroga como nada mais nada menos do que a “razão pura”.
A autêntica perspectiva, enquanto atividade constituinte da diferença, nunca se produz de fora, mas de dentro, na imanência. Para o conhecimento autêntico, o mundo não é um espaço em relação ao qual devemos nos colocar de fora, pois o mundo não tem paredes: ele é processo que se conhece sem segredos ou mistérios. O mundo não tem chaves ou fechaduras, embora ele possua passagens que levam sempre para dentro dele, ele que é, como diz Foucault, o Fora: indo para dentro dele, vamos igualmente para dentro de nós mesmos, pois somos do mundo uma dobra, como a onda o é do oceano.Se o mundo é o Fora, ir para dentro dele é afirmar o agenciamento, o encontro com outras dobras de nós diferentes, mas que são dobras do mesmo mundo que lhes existe e insiste imanente.Agenciamento é o processo de produção não de sujeitos, mas de agentes. O sujeito cartesiano ou kantiano “cogita” isolado, ele é o que olha atrás da porta, através da fechadura, ao passo que o agente produz sua autonomia no agenciamento, no qual o outro agente pode ser uma música, uma pintura , uma paisagem , uma molécula , um animal.
A perspectiva é relação, não isolamento atrás da porta. A perspectiva singular é afirmação também do desejo. A visão que apreende o mundo precisa ser multi,pluri, interconectada (com a vida, e não somente com a tela de um computador), tal como, no poeta, a “visão fontana”.Os instrumentos que aumentam a perspectiva imanente são os micros e os telescópios , tanto os físicos como os simbólicos, apontados para o infinito cosmológico e para o infinito microfísico. Também potencializa nossa perspectiva o bom cinema e as artes, sobretudo as não figurativas. Ter uma perspectiva não é se isolar ou se opor a outras perspectivas, mas achar o seu lugar numa rede de relações, tal como um ponto singular, ou raiz,  de um rizoma.
Os rizomas são formações vegetais que não possuem centro, e que crescem horizontalmente. Ao contrário das árvores, que possuem uma raiz que as fixa ao solo, um rizoma é constituído por uma multitudo de raízes, e em cada uma delas o rizoma se apóia para se mover e se expandir. As raízes de um rizoma são, ao mesmo tempo, sua semente e seu fruto, uma vez que é da raiz singular que o rizoma brota, raiz esta que o próprio rizoma produz.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

entre as duas margens





Às vezes, há apenas a sensação da vida, mas não o viver. A vida não é apenas sensação da vida, ela é o viver.
Se toda sensação nasce  de algo nos tocar, a vida é também este outro lado, esta outra margem, na qual está não um chão imóvel, mas a continuidade indefinida  do que está "entre", no meio, e que é processo sem termo.