segunda-feira, 25 de junho de 2012

Espinosa: o desejo como metamorfose







O mundo da arte não é o da imortalidade,
o mundo da arte é o da metamorfose.

                               Malraux


Como se sabe, Espinosa escreveu sua Ética em latim. Nesta obra ele faz uma das afirmações mais ousadas e surpreendentes que um filósofo já fez, e que confere à sua filosofia uma atmosfera de vida que toca de alguma maneira mesmo aqueles que não estudam filosofia.Não estranharíamos encontrar essa afirmação em um poeta ou em um artista. É uma afirmação de alguém que vive da melhor forma, e não apenas teoriza sobre a melhor forma de viver. “O desejo é a essência mesma do homem”. Essa é uma das sustentações da Ética de Espinosa,uma vez que o é de toda vida que se quer mais viva. Todo homem segue seu desejo, embora pouquíssimos sigam a si mesmos quando seguem o que imaginam ser seu desejo. Segundo Espinosa, o desejo nunca é cego, embora cego possa estar o homem que deseja.A cegueira em questão não diz respeito ao objeto do desejo , ela concerne ao que é o desejo: quando o desejo ignora a si mesmo, isto tem por causa a ignorância do homem acerca de sua essência , pois a essência do homem é a essência mesma do desejo.
Em latim, o termo correspondente a desejo é cupiditas.Este termo se refere ao deus Cupido .Em grego, Eros. Cupido era um daimon, isto é, um ser das fronteiras, dos limiares. O daimon guia a quem quer fazer a travessia entre o que nasce e morre e o que é eterno. O daimon é o habitante desse espaço que é travessia, meio, devir.Trata-se de um meio de passagem: não passagem de um lugar para o outro, mas passagem de uma existência a um grau dela mais potente. É por isso que Cupido possuía asas. Todavia, a maioria das representações que temos de Cupido estão impregnadas com a visão cristã do mundo. Tal visão chama de “anjo” o que os romanos designavam como daimon. A principal diferença entre o daimon e o anjo reside no seguinte: os anjos possuem asas feitas de penas, como as que possuem os pássaros, ao passo que o daimon, incluindo o Cupido, possuía asas também, mas estas eram asas de borboleta. Isso não é um mero detalhe. Há uma razão para Cupido ter asas de borboleta, e não de pássaro   . Entretanto, as representações cristãs fizeram essa adaptação, trocando as asas de borboleta pelas de um pássaro ( embora seja com asas de borboleta que às vezes é representada a ressurreição). Os pássaros já nascem com asas. Contudo, as asas da borboleta nasceram quando houve um segundo nascimento : elas são a expressão de uma metamorfose ,tal como ocorre com o garoto do filme espanhol A língua das mariposas (cuja tradução mais correta seria A língua das borboletas ): contagiado pela Natureza, ele vive a alegria de um conhecer que é metamorfose .
Foi de um ser que rasteja pelo chão, a lagarta, que as asas da borboleta nasceram. Para estas nascerem, foi preciso que a lagarta se dobrasse sobre si: é assim, dobrada sobre si, inventando para si um casulo, que a lagarta pôde desabrochar. O desabrochar é um desdobrar aquilo que nos é imanente. Isto nos mostra que a re-flexão, o dobrar sobre si, é um acontecimento da própria natureza. Este acontecimento é uma metamorfose da qual nascem asas, asas estas com as quais não nascemos em um primeiro nascimento. A metamorfose também é uma prática de paciência. A paciência não é uma passividade, ela é uma ação.Ela não significa exatamente suportar o que nos acontece, mas nos preparar para sermos o que de fato somos independentemente das flutuações dos fatos ao redor.A paciência é uma virtu, uma força da alma.A paciência não é uma espera por algo, ela é a conduta que devemos ter para produzirmos aquilo pelo qual não devemos esperar que um outro faça por nós. O casulo expressa a arte da paciência da qual nasce a autêntica autoconfiança. Padecer é tornar-se paciente de uma ação externa.Todavia, quando agimos sobre nós mesmos é com paciência que se obra.A paciência não é o tempo de espera por algo que virá, ela é o processo de afirmação e produção do que já se é.
Não se deve confundir o desejo com o prazer. O prazer quase sempre faz o desejo cessar quando o tomamos como a finalidade ou fim do desejo. Quando possuímos de fato nossa capacidade de desejar, fazemos com que o prazer esteja subordinado ao desejo, e não o inverso; de tal modo que reinventamos o prazer, ou conseguimos extrair prazer das coisas mais simples. Decerto que vivemos em uma sociedade do prazer, mas raros são aqueles que vivem conforme o seu desejo. As drogas, o consumismo e processos semelhantes evidenciam que a mera busca pelo prazer pode ser movida pela infelicidade ou alimentá-la.
Há no desejar autêntico uma potência de metamorfose. É por isso que Espinosa afirma que o desejo é a essência mesma do homem. Mas o desejo também constitui sua existência. A passagem da existência à essência não se faz em linha reta , atravessando uma porta ou percorrendo um caminho sinalizado. A passagem é, na verdade, um atravessar de fronteiras, de limiares, de zonas intensas como aquelas que apenas Cupido sabia como nos fazer atravessar, conduzindo-nos não sobre as costas dele, mas guiando-nos pelas mãos, pois é preciso que nos apoiemos sobre nossas próprias pernas, mesmo que seja para saltar. Do contrário, não há travessia, não há passagem, tampouco conhecimento e autoconhecimento. A passagem para a essência do desejo é uma metamorfose . Nós não nascemos com tais asas, e é por isso que a visão cristianizada das asas nos representa como tendo caído aqui na Terra. Além disso, o cristianismo e outras religiões tentaram reduzir a experiência da metamorfose a uma espécie de "conversão". Contudo, a conversão é um morrer para uma determinada vida para renascer em outra reputada a 'Vida Verdadeira', ao passo que a metamorfose é um potencializar a vida: é um aumentar a vida através da Vida.A visão da metamorfose não nos introduz em outro mundo : ela é um amar este mundo , é um "dizer eu-te-amo para todas as coisas", tal como acontece na experiência poética descrita por Manoel de Barros. A metamorfose é um afirmar que nasce do amor à Imanência.Em seu livro sobre Espinosa ( Espinosa e outros hereges), Yovel se refere ao terceiro gênero de conhecimento como uma “metamorfose mental”. O desejo é a causa dessa metamorfose: as asas que nascem são a expressão de um pensar e agir livres.